Janeiro 2009 no Nordeste

Em outubro de 2008 fiz uma viagem pelo interior de Minas Gerais, acompanhado dos amigos Diorlando e Amora, também integrantes do Road Kings MC. Minha idéia era rodar pelas estradas ignoradas pela maioria. Nada de highways que ligam os grandes centros e não dão oportunidade de conhecer os locais por onde estamos passando. Escolhi somente pequenas estradas com cidades pitorescas e lugares bonitos. Montei um trajeto por estradas estaduais, secundárias, fugindo das grandes rodovias exatamente para apreciar o que sempre nos escapa quando nos deslocamos pelas “BRs”. Resolvemos sair sem destino certo, apenas com uma idéia geral que ia se ajustando e se consolidando a cada dia da viagem. O Amora é natural de Araçuaí (MG) e essa era a única coisa prevista: passaríamos por lá para ele reencontrar velhos parentes. Rodamos sempre por pequenas estradas costurando lugarejos, vilas e cidades com dimensões bastante reduzidas. Algumas delas com menos de 4 mil habitantes. Foram 92 cidades visitadas em mais de 2500 km. Essa viagem estava sendo tão agradável que combinamos de fazer outra em janeiro e depois a cada dois ou três meses.
Infelizmente não conseguimos chegar até Araçuaí pois a rodovia que nos ligaria de Diamantina até lá estava em obras, com mais de 50 km de terra e cascalhos, e nossas motos não suportariam esse tipo de piso. Devido a essa frustração de lá mesmo prometi ao Amora que no trajeto de janeiro 2009 eu incluiria a ida até sua cidade natal. O Diorlando por sua vez tem uma irmã que mora em João Pessoa (PB) e suspirou que um dia poderíamos programar uma outra viagem e ir até lá para vê-la.
O tempo foi passando, entramos em dezembro e estava na hora de pensar na viagem de janeiro. Gostei daquela possibilidade de ir até a Paraíba. Me lembrei que já havia prometido ao Michel, integrante do MC Rota 230, que iria mais cedo ou mais tarde visitar a sede do seu motoclube que fica em Campina Grande. O MC Rota 230 facção RJ é afilhado do Road Kings. Estavam então formados, na minha cabeça, os três pontos fundamentais que deveriam ser alcançados pelo roteiro: chegar a João Pessoa, passar em Campina Grande e ir a Araçuaí. Dos três o único aposentado sou eu então o tempo disponível não seria muito. Só poderíamos sair na segunda-feira dia 5 de janeiro. Seria mais lógico incluir no projeto o final de semana dos dias 3 e 4, ou até mesmo o dia 2 (sexta-feira enforcada pelo feriado da quinta-feira dia 1), mas justamente no domingo dia 4 de janeiro minha mãe estava completando 79 anos e eu almoçaria com ela. Como data de retorno ficou determinado o domingo dia 18. Diorlando deveria voltar a trabalhar já no dia 19 e o Amora tinha uma neta para chegar ao mundo com a data da cirurgia marcada para dia 20.
Contando com 14 dias fiz um rascunho do roteiro calculando a distribuição de distâncias a serem percorridas acomodando-as com os pernoites necessários. Marquei uma reunião em minha casa para apresentar a minha proposta inicial e bastante superficial do roteiro, onde anunciei aos dois (Diorlando e Amora) que daria para atender às aspirações de ambos. Aprovada a idéia de seguirmos até a Paraíba e passarmos na terra do Amora fiquei então de montar o roteiro definitivo com cálculo de distâncias a serem percorridas em cada dia. Esse cálculo era necessário pela escassez de tempo dedicado ao programa. No dia 19 de janeiro já teríamos de estar de volta. Então era necessário prever o tempo de deslocamento em cada trecho da estrada, cidades com atrações que mereciam uma visita mais detalhada, considerar o tempo gasto nessas visitas, escolher as cidades para pernoite etc. Ao contrário da viagem anterior ao interior mineiro que rotulamos de “Sem Destino”, essa teria de ser muito bem planejada se pretendíamos cumprir todas as etapas no tempo disponível.
Nova reunião na semana seguinte aconteceu na casa do Amora onde apresentei as planilhas de meu planejamento. A princípio percebi que ficaram assustados com a dimensão do trajeto, mas aos poucos foram se acostumando. Para irmos a João Pessoa seguiríamos pela BR 101, e para passar por Araçuaí teríamos de vir pela BR 116. Em cima dessas certezas montei um percurso de 7300 km. Logo foi descartado por eles por acharem muito extenso. E olha que eu havia deixado o dia 18 como dia de reserva para algum eventual imprevisto. Mas mesmo assim acho que assustei os caras…
Sempre que monto alguma viagem gosto de ir por um caminho e voltar por outro. Agindo assim não se tem aquela sensação de fim de festa. A impressão que fica é de que se está sempre indo.
Talvez por não ter participado da anterior para Minas, My Boy nunca demonstrou interesse nessa viagem mas a dois dias da data da saída ele aderiu ao grupo que passou a ser então de quatro pessoas. Com a participação dele não pude exercer minha condição de “sargentão” cobrando tempo e percursos destinados para cada dia. Não ficaria nada bem. Além de bom amigo ele é meu presidente… assim, todo o trabalho de planejamento anterior foi sendo diariamente remendado e algumas cidades que estavam no roteiro inicial foram sendo deixadas para uma próxima oportunidade.
Os caminhos a serem percorridos já me eram bastante familiares pois nessas quase 4 décadas sobre duas rodas já os havia usado inúmeras vezes. Nunca tinha entretanto feito tudo numa única empreitada, numa só tacada como fizemos agora.
Foram cerca de seis mil km rodados e mais de 2000 imagens registradas.
Dia 5 de janeiro de 2009. A pretensão de sair cedo ficou no espaço. Marcamos de nos encontrar num posto no Largo da Batalha (Niterói) por ser um ponto central para três de nós (eu, My Boy e Amora) e de lá sairíamos, às 7h30min, para encontrar o Diorlando noutro posto já no caminho, em Itaboraí. O dia amanheceu com um céu carregado, pesado, com chuviscos ocasionais. Fui o primeiro a chegar no posto. Algum tempo depois aparece My Boy. Comecei a ficar intrigado pois de nós três o que mora mais perto desse posto é o Amora, pela lógica deveria ser o primeiro a chegar. O tempo foi passando e nada dele aparecer. Depois de um tempo considerável recebo uma ligação dele perguntando onde nós estávamos que ainda não tínhamos aparecido. Ele estava em outro posto (em Icaraí) nos aguardando já a bastante tempo. Até Amora chegar e nós conseguirmos sair foram mais de trinta minutos. Seguimos para Itaboraí a fim de encontrar com Diorlando. Acertados os ponteiros, os quatro juntos, só saímos para estrada lá pelas nove horas da manhã.
Pela planilha o nosso primeiro pernoite deveria ser em Teixeira de Freitas – BA. O almoço era previsto para região metropolitana de Vitória – ES. Sempre que faço um planejamento considero a possibilidade de um imprevisto e monto uma outra opção mais curta. Nesse caso o nosso percurso para esse dia não seria de 880 km até Teixeira de Freitas mas de 730 km até São Mateus (150km menos).
Finalmente já estávamos na estrada. Os três com capas de chuva, menos eu. Acho que tenho qualquer trauma de infância pois tenho uma enorme aversão à capa. Só a coloco em casos muito extremos. Vale lembrar que nessa época além do estado de Santa Catarina, o Rio de Janeiro e a zona da mata mineira sofreram muito com as chuvas. Só no norte do Rio milhares de pessoas ficaram desabrigadas pelas inundações. O tempo estava chuvoso com o céu carregado. Quando passamos pela ponte sobre o rio Ururaí pudemos ver muitas casas com água ainda pela altura das janelas, uma tristeza. Paramos para o primeiro abastecimento na região de Campos. My Boy não dispensa um cafezinho e foi logo se direcionando para a lanchonete do posto após abastecer a moto. Amora “desapareceu” no banheiro e eu e Diorlando fomos encontrar My Boy que já estava sentado a uma mesa devorando várias fatias de queijo e já num segundo café. Depois algum tempo Amora aparece com um prato de almoço nas mãos dirigindo-se para a balança a fim de pesá-lo. Mas como assim, como assim? Ainda estamos em Campos! Antes de Campos! Nosso almoço era em Vitória!
Depois que tudo aquilo foi consumido voltamos para a estrada. O Rei My Boy ia puxando o comboio e eu na minha habitual função de cerra-fila. A velocidade e as paradas eram determinadas por ele. Eu ficava apenas alerta para a cada 200km ir avisá-lo que deveríamos parar para abastecer as motos de Amora e Diorlando que têm uma autonomia menor. Nessas paradas eu e My Boy também aproveitávamos para abastecer as nossas.
Passamos por fora de Vitória para não perdermos mais tempo. Seguimos direto para nossa meta que seria, a essa altura dos acontecimentos o plano B: São Mateus. Eu particularmente ainda nutria uma pequena esperança de conseguir chegar a Teixeira de Freitas (quanta ingenuidade!). Novas paradas, novos cafés, novos banheiros… não houve como evitar: anoiteceu e só estávamos em Linhares. Eu não me conformava.
Eu já havia feito tantas vezes esse trajeto e não era possível agora levarmos tanto tempo para rodar tão pouco. Não sou de correr pelas estradas. Raramente estou acima de 120km/h, e se isso acontece é sempre numa ultrapassagem. Minha velocidade padrão é 100/110km/h. Mas dessa vez foi demais, levar um dia inteiro para dormir em Linhares foi difícil de assimilar. De imediato avisei aos meus amigos e companheiros de viagem que provavelmente já estávamos gastando o dia de reserva na primeira “perna” do percurso. Lembrei que certa vez voltando do nordeste dormi em Porto Seguro e de lá vim direto para o Rio. Lembro-me que acordei às quatro da manhã e no início da noite estava passando por Itaboraí. Nessa ocasião fiz uma constante de 120km/h.
Chegamos anoitecendo. Linhares estava com chuviscos finos e esporádicos. Minha pressa em sair logo da região sudeste era exatamente para deixar esse tempo carregado para trás o mais cedo possível. Exatamente por isso quando fiz o planejamento reservei para os dois primeiros dias os dois maiores percursos. Nesses trajetos iniciais não havia nada de turístico para se ver e além do que estaríamos mais descansados por serem os primeiros dias de viagem. Seria exatamente o momento de se ganhar tempo. Mas toda essa “racionalidade” ficou pelo caminho…
Assim que chegamos em Linhares paramos num posto de gasolina e ali mesmo já fizemos novos amigos. Em pouco tempo My Boy aparece com um pratão de carne de sol fatiada. Ficamos nessa “social” até a hora do posto fechar. O dono da lanchonete foi super prestativo. Enquanto nós nos preparávamos para sair e encontrar onde dormir, ele pegou sua moto procurando hotel e depois nos guiou até o que escolheu para nós.
No hotel dividimos o grupo por dois em cada quarto. Diorlando disse que estava traumatizado com o nível sonoro emitido por Amora durante a noite e anunciou que a não pretendia passar por novo sofrimento (haviam dormido no mesmo quarto num evento em Teresópolis). Assim ficamos eu e Amora num quarto e My Boy e Diorlando em outro.
Apesar da “serraria” na cama ao lado a noite foi boa, confortável e revigorante. Realmente o cara é poderoso, deixa o rugido de um leão no chinelo.
Vale aqui fazer um parêntese sobre aquela noite no evento de Teresópolis: quando fomos dormir, como os quartos eram duplos, o grupo foi se dividindo em pares. Eu fiquei com meu filho, fiel companheiro de tantos mil km; My Boy com Fátima; Piggy com Duck e Diorlando ficou com Amora. O mais curioso é que no dia seguinte Diorlando amanheceu chamando Amora de Peludão e este chamando Diorlando de Bambi. Não sei o que ocorreu, mas esses apelidos perduram até hoje…
Em Linhares acordamos cedo, às cinco da manhã, para ver se daria para repor o tempo perdido na véspera. Diorlando que dormiu no freezer amanheceu resfriado (qualquer quarto que My Boy durma se tiver ar condicionado em poucos minutos chega a zero grau). Devido ao horário o café do hotel ainda não estava servido então fomos a uma padaria resolver esse problema. Depois de “abastecidos” saímos em direção à Bahia. O tempo estava ótimo, nublado mas firme o que não permitia que o calor nos incomodasse. A estrada estava perfeita, sem buracos, bem sinalizada, uma beleza. Mas mesmo assim logo percebi que a meta de pernoitar na Ilha de Itaparica ou em Salvador não seria fácil de cumprir. A cada parada a turma se descontraía e tudo era motivo para muitas brincadeiras e gozações. Até mesmo Peludão (Amora) que estava sentindo algumas dores entrava no clima da bagunça. Foram muitas paradas. Paradas para café, paradas para banheiros, paradas para abastecimento, paradas para café, paradas para banheiro… No nosso planejamento o local de almoço seria em Itabuna, mas só chegamos por lá a tempo de pernoitar. Resolvemos dormir numa rede de posto/hotel que “acompanha” a BR 101. Os quartos eram vizinhos e havia uma porta interna que ligava um ao outro. Mesmo sem a chave, com um pouco de habilidade, conseguimos abrir essa porta transformando os dois quartos eu um só ambiente o que favoreceu a descontração e a bagunça do fim do dia. Na hora de dormir Bambi (Diorlando), que ainda sofria com o efeito do freezer de My Boy, passou para meu quarto e Peludão ficou com My Boy. No início da noite fechamos a porta de ligação para tentar escapar dos trovões noturnos de Peludão. Depois dessa primeira noite com ele, My Boy disse que dormiu ao lado de uma serra cega cortando uma tora de madeira.
Choveu a noite quase toda. Quando acordamos o tempo estava instável porém sem chuva, mas logo começou uma garoa que se transformou numa forte chuva. Tínhamos a idéia de dar uma esticada até Ilhéus. Eu e My Boy estivemos lá no carnaval de 2008, mas Bambi e Peludão não conheciam Ilhéus. Seria um desvio de 70 km, ida e volta, saindo da BR 101. Mas como chovia entendemos que seria improdutiva uma visita turística naquela cidade. Optamos por deixar a visita para outra oportunidade e aguardar o fim da chuva jogando conversa fora. Por volta das 11h30min a chuva parou e saímos com a intenção de dormir na Ilha de Itaparica. My Boy pediu que eu guiasse o grupo por conhecer bem a Bahia. Nesse primeiro trecho pegamos duas ou três fortes pancadas de chuva de poucos segundos cada. Quando se aproximava o momento do abastecimento das Shadows entrei num posto de gasolina e logo ouvi um longo barulho característico de acidente. Enquanto avançava olhei para a estrada e não vi nada de anormal. Olhei então para o retrovisor e não acreditei: vi My Boy estatelado no chão embaixo da moto. Quando ele reduziu escorregou e caiu no asfalto engordurado da entrada do posto e se arrastou por mais de vinte metros, ele e a moto. Graças a Deus e às proteções usadas por ele como cotoveleiras, colete, calça de couro, luvas e botas só sofreu pequenos arranhões e uma possível fratura ou luxação no dedo mindinho. A moto sofreu alguns pequenos danos, mas depois da intervenção do Didi Bambi (Diorlando) as coisas foram acertadas para que pudéssemos seguir em frente. Mas o ritmo havia sido quebrado então resolvemos almoçar por lá mesmo. Depois da certeza de que nada de sério havia ocorrido com My Boy, começamos uma nova sessão de brincadeiras e gozações que contagiaram a todos e terminamos por fazer mais amigos.
Depois do almoço saímos em direção a Itaparica onde pretendíamos fazer nosso pernoite. O caminho para o nordeste brasileiro, se for feito pelo litoral (BR 101), tem como opção mais econômica para se chegar a Salvador a passagem pela Ilha de Itaparica. O trajeto natural é pelas redondezas de Feira de Santana, usando-se a BR 324 (conhecida como Bahia/Feira) para chegar a Salvador. Mas se em Santo Antônio de Jesus deixarmos a BR 101 e pegarmos a BA 028 em direção a Nazaré e depois a BA 001 para Itaparica economizamos mais de 100 km além de passarmos pela Ilha, um paraíso da natureza.
Devido ao tombo de My Boy a nossa média horária ficou ainda mais prejudicada. Toda vez que eu acelerava mais um pouquinho, tentando estabelecer algo em torno de 100 km/h como padrão, o comboio ia ficando para trás o que me obrigava a diminuir novamente. E foi assim que por volta das oito e meia da noite chegamos em Mar Grande, na ilha de Itaparica. Como sempre acontecia a cada parada nossa, logo fomos cercados por várias pessoas. Umas para admirar as motos e outras para nos ajudar e oferecer pousadas. Depois de muita divergência entre as opções e seus respectivos valores de diária, eu avisei que um primo meu mora lá e é dono de uma pousada. Me prontifiquei de ir falar com ele mas uma parte do grupo queria garantir logo o lugar. Então eu disse que o que ficasse resolvido estaria bom pra mim também e saí para fazer uma visita a meu primo. Minha moto é muito pesada e quando passei por um piso mais arenoso atolei com meu “caminhão”. Descobri que não existe a menor chance de se desatolar uma Electra Glide sozinho. Esperei que percebessem que eu estava demorando demais e depois de um bom tempo vi o Diorlando à minha procura. Depois de desatolarmos voltamos e a pousada já estava alugada por My Boy e Peludão. Banho tomado fomos para a praça onde comemos em um restaurante regional. Nessa descontração mais brincadeiras e gozações entre nós. Aí um rapaz se aproximou achando que éramos um grupo de boiolas e veio com uma conversa estranha pedindo a My Boy uma camisinha emprestada. Notamos logo a intenção do cara e nos aproveitamos da situação para tirar um sarro da cara dele, que acabou entendendo e se afastou do grupo. Nem é preciso dizer que isso foi motivo de mais gozações entre nós. Estávamos na Bahia e já passava do meio dia…
Fomos dormir por volta das onze e meia e levantamos no outro dia às oito horas. Essa pousada que My Boy na véspera queria tanto garantir a vaga terminou por não nos servir o café da manhã. Saímos então à procura de uma padaria. Peludão como sempre fazendo das suas artes: tomou café de canudinho enquanto comia um queijo no palito. My Boy reclamando porque não encontrava café sem açúcar. Eu e Diorlando nos divertimos muito apreciando a atuação dos dois. Depois do café fomos dar uma volta a pé pela praia e na volta viemos pelas ruas internas. Visitei locais onde parentes meus tinham casas. Fiquei muito impressionado com o tamanho de uma amendoeira que ficava no jardim da casa onde nasceu meu avô paterno. Quando eu era garoto brincava de subir nessa árvore e agora vendo o quanto ela estava enorme tive a certeza de que muito tempo se passou desde aquela época.

Voltamos para a pousada, pegamos nossas motos e seguimos viagem. Passamos por Itaparica que é a parte mais antiga da ilha. Conquistamos novas amizades por lá, visitamos a parte histórica e então paramos para um refrigerante num barzinho de frente para o mar. Dali rumamos para o terminal de Bom Despacho para pegar o Ferry-Boat para Salvador. Finalmente estávamos no nordeste. Estava começando nossa aventura por aquelas terras.
Chegando a Salvador fomos passeando pela cidade. Como já havia morado lá pude levar o grupo com facilidade pelas ruas que me são bastante familiares. Tiramos algumas fotos na cidade baixa com o Elevador Lacerda ao fundo, depois rodamos um pouco e fomos então para o Farol da Barra, cartão postal de Salvador. Logo que chegamos foi um alvoroço só. Todos queriam fazer perguntas sobre nossa viagem e sobre nossas motos. Encontramos outros motociclistas de motoclubes locais que logo se aproximaram e foi uma boa troca de experiências e informações. Mais amigos conquistados nessa nossa viagem. Eles fizeram questão de nos convidar para o 0800 de um deles. O administrador do museu que fica no forte sob o farol apareceu e nos franqueou a entrada para o gramado do largo em frente. Disse para subirmos com nossas motos para que fotos fossem tiradas. As pessoas ficavam em nossa volta, muita gente, muita gente mesmo. Foi uma situação nunca vivida por nenhum de nós. As fotos eram tiradas e as pessoas se amontoando para nos ver. Éramos o centro total de todas as atenções. Coisa de louco. Ficamos nessa até as 16h.
Saindo do Farol da Barra fomos passeando pela orla de Salvador apreciando as praias desde a da Barra até a praia de Itapuã. As mais famosas e conhecidas que estão entre essas duas são as praias de Ondina, do Rio Vermelho, de Amaralina e da Pituba, mas existe uma que vale a pena fazer um breve comentário que é a praia de Placaford. A Bahia, salvo engano, é o estado brasileiro com maior extensão de litoral, de praias. O norte do município de Salvador era muito pouco desenvolvido na década de 60. A estrada litorânea era usada apenas como acesso ao aeroporto da cidade. Naquela época não havia quase residências nem comércio. Mas as praias estavam lá, muito bonitas. A extensão desde a cidade até Itapuã é grande, composta de muitas praias interligadas entre si formando uma única faixa de areia. Um trecho desse enorme litoral, no bairro de Piatã, é particularmente agradável por situar-se num local abrigado por recifes o que proporciona águas calmas e mornas com piscinas naturais na maré baixa. Muitos coqueiros e dunas altas completam o cenário. Mas naquela época, devido ao precário desenvolvimento local, não havia muita coisa para se usar como ponto de referência para localização dessa parte da praia a não ser um grande painel publicitário da Ford. As pessoas então marcavam de ir à praia em frente a placa da Ford, na placa Ford. Daí veio o nome da praia de Placaford.
Chegando em Itapuã viramos à esquerda e pegamos a Estrada do Coco. Nossa meta agora era chegar em Arembepe onde pretendíamos pernoitar. Arembepe ficou conhecida por ter sido ali que surgiu a primeira comunidade hippie do Brasil. Lá o movimento da Sociedade Alternativa sobrevive até hoje. A vila hippie ainda está lá onde não há circulação de carros nem o uso de eletrodomésticos. São casas rústicas feitas de madeira e palha. No auge do movimento hippie, na década de 70, famosos como Janis Joplin, Roman Polanski, Mick Jagger, Caetano Veloso, Gilberto Gil e Renata Sorrah passaram longas temporadas por lá.
Logo que chegamos a Arembepe fui para a praça principal a fim de sondar com os moradores locais os preços e condições das pousadas. Obviamente a praça estava repleta de hippies cabeludos alguns vendendo artesanato outros apenas olhando a vida passar. My Boy quando viu aquilo pareceu ter tido a visão do inferno. Ficou paralisado sobre a moto já devidamente parada no recuo da praça. Titubeando balbuciou algo que me pareceu uma pergunta: – São favelados? Quase tive uma crise de tanto rir. Eu já estava esperando encontrar aquelas figuras, já conhecia o lugar, mas apesar de ter prevenido antes acho que para ele o choque com aquela realidade foi maior. Bambi e Peludão em segundos se misturaram e já estavam tirando fotos abraçados aos hippies. Peludão que tem escassez de telhas tirou até uma foto com a cabeleira de um hippie sobre sua própria cabeça. Foi uma farra na praça. Saí a pé para ver duas pousadas que nos indicaram mas não gostei. My Boy parecia uma mosca de padaria presa no balcão de vidro, pra lá e pra cá procurava incessantemente um lugar para tomar um café. Peludão ficou que nem pinto no lixo de papo com os hippies enquanto Diorlando Bambi foi a uma loja pedir novas indicações de pousadas. Quando nos reuníamos novamente na praça uma morena que passava pela praça aproximou-se e perguntou se estávamos à procura de pousada. Ela tinha uma indicação e nos deu o cartão. Ligamos para lá e o dono, um alemão careca apreciador de belas morenas, veio de carro nos buscar e ensinar o caminho. Chegando lá ficamos deslumbrados com o lugar. Uma pousada linda com uma bela piscina, quadra de esportes, uma beleza. Ficamos num chalé de dois ambientes com ar refrigerado central. Nem é preciso dizer que logo a algazarra entre nós começou. My Boy brigando com o controle remoto do ar refrigerado tentando chegar a zero grau e nós três apreciando com muito humor essa peleja particular entre o homem e a máquina. Nisso o Max (dono da pousada) aparece perguntando se nós iríamos querer comer alguma coisa. Esse cara deve ser paranormal e leu nossos pensamentos. Como o clima era de total descontração logo o alemão “entrrrou no roda do bagunça” e foi logo sendo chamado de Hans Donner, apelido que perdurou até nossa partida no dia seguinte.
Só conseguimos ir dormir às 23h. Era muita gozação um com o outro. Bambi teve de dormir com a cabeça envolvida por um lençol para tentar não ouvir as risadas e mais tarde a serraria de Peludão. Parecia um filhote de múmia com baiana do acarajé. A noite foi boa e revigorante. No dia seguinte tomamos um farto café da manhã à sombra de um gigantesco caramanchão. A buzina da minha moto que já vinha “morrendo” um pouco a cada dia emudeceu totalmente na véspera então depois do café meu amigo Diorlando fez mais uma das suas mágicas e restabeleceu o bom funcionamento dela. Arrumadas as bagagens pagamentos feitos e então, com tristeza, nos despedimos de Max. Certamente mais um amigo que fizemos nessa nossa viagem. Gente muito boa esse alemão. Passando novamente por aquelas terras certamente vou repetir a dose.
Novamente na estrada agora rumo a Aracaju. Passamos por lugares lindos como Praia do Forte, Costa do Sauípe, Porto Sauípe entre outros. Na entrada da Costa do Sauípe há um trevo onde paramos para fazer fotos e filmagens. My boy foi muito zoado pois ficava o tempo todo segurando as calças para elas não caírem. O suspensório que as sustentava havia se rompido naquele tombo que levou em Gandu. Não vai aqui quase nenhuma conotação maldosa, mas acho que devido à proximidade estabelecida nas noites em que dividiram os quartos, Peludão se encheu de compaixão e comprou agulha e linha em um armarinho de Porto Sauípe e costurou o suspensório de seu fiel companheiro de quarto enquanto almoçávamos…
Dali continuamos na Estrada do Coco que depois vira Linha Verde e finalmente entramos no estado de Sergipe.
Num determinado trecho dessa estrada os três estavam com combustível na reserva e minha moto ainda tinha meio tanque. Com o habitual clima de gozação iniciou-se uma espécie de barganha por um litro de gasolina do meu “caminhão pipa”. Eu entretanto sabia que estávamos próximos de um posto. Eles bastante apreensivos pediram para parar a fim de conferir no mapa se o caminho estava certo. Não adiantou eu insistir de que não havia erro nenhum e que estávamos perto de um posto. Pararam e me intimaram a mostrar o mapa. My Boy aproveitou a parada no acostamento para sua “regada” costumeira numa árvore. Ele dizia que assim estava contribuindo para irrigar a terra e diminuir a seca no nordeste. Depois de convencidos de que nossa rota estava certa voltamos para estrada e com pouco mais de 10 km o primeiro posto apareceu. Nunca vi olhos tão arregalados para um simples postinho de beira de estrada. Aproveitamos para beber alguma coisa pois o calor era imenso e precisávamos nos manter hidratados. Desde que saímos de Salvador havíamos abandonado a BR 101 e seguimos pela BA 099 que meio que acompanha a 101 só que vai pelo litoral. O visual é fabuloso e as cidades muito interessantes. Em Indiaroba está a divisa com o estado de Sergipe e 28 km mais adiante, em Estância, essa estrada acaba e encontra a BR 101. Dali até Aracaju foi um pulo, cerca de 65km. Chegamos na nossa meta daquele dia por volta das 19 horas. Apesar de no Nordeste não existir horário de verão ainda estava claro por lá. My Boy queria ir até a praia de Atalaia e a vontade real foi atendida. Paramos num restaurante de frente para o mar onde ficamos curtindo o lugar. Bebemos e comemos por lá mesmo até que apareceu um garoto que ficou nos fazendo perguntas e mais perguntas. Todo o tempo que passamos naquele restaurante o garoto ficou ao nosso lado fazendo perguntas. Peludão que já vinha sucessivamente reclamando de dor na bunda virou para o garoto e perguntou:
– Quanto você quer pela sua bunda? Você quer me vender sua bunda? O garoto fechou a cara, ficou todo desconcertado e respondeu qualquer coisa negando. Aí Peludão percebeu que havia falado besteira e tentou consertar:
– Não você não entendeu, eu te dou a minha e você me dá a sua. O garoto novamente disse qualquer coisa já demonstrando irritação. Quando eu vi que a coisa estava virando um grande mal entendido expliquei que o que ele queria na verdade era trocar a bunda dele por uma que não estivesse doendo pela longa viagem e consegui contornar a coisa sem que fôssemos todos parar na delegacia…
Depois de aproveitarmos aquela localidade de Aracaju saímos para ver onde seria possível dormir. Rodamos muito sem achar vagas pois era alta temporada. Já quase meia noite quando achamos um hotelzinho na saída da cidade. Só conseguimos dormir depois de uma hora da madrugada. No dia seguinte após o café saímos em direção a Alagoas. Diorlando Bambi estava cada vez mais ansioso por estar se aproximando o momento de rever sua irmã. Nossa meta era dormir em Maceió e fomos curtindo cada trecho da estrada desde Aracaju. Cinco quilômetros depois de São Miguel dos Campos, já no estado de Alagoas, saímos da BR 101 e pegamos a rodovia estadual AL 220 em direção a Barra de São Miguel e a Praia do Francês. Quem for por aqueles lados não deve deixar de visitar esses lugares. Coisa de cinema. O litoral é cercado por um cinturão de pedras, um tipo de quebra mar natural de recifes o que faz com que se forme uma gigantesca piscina por onde circulam barcos e jet skis além dos banhistas naturalmente. A distância entre esse cinturão e a beira da areia é de trezentos metros ou mais e a extensão é de muitos quilômetros acompanhando toda a praia dando toda condição de segurança para todos dividirem aquele espaço com civilidade. O lugar é tão mágico e aprazível que sem que percebêssemos ficamos por ali até o anoitecer. Maceió já estava bem perto o que nos deixava mais tranqüilos. Entretanto por mais que quiséssemos adiar o momento de sair dali havia chegado. Ainda tínhamos um trecho de estrada até Maceió, cidade onde pretendíamos pernoitar.
Chegamos por lá já eram mais de 20h30min. Paramos num quiosque na praia de Pajuçara onde a atração principal era tapioca. Tinha tapioca doce, salgada, mais de 50 sabores, de tudo que é tipo. Ficamos na tapioca até tarde quando então partimos para nossa habitual romaria em busca de pouso. Procuramos onde dormir ali por perto mesmo mas não encontramos nenhuma pousada ou hotel com vaga disponível. Começamos então a aumentar a área de busca. Procuramos em tudo que foi canto e não encontrávamos onde ficar. Saímos então eu e My Boy para um lado e Diorlando e Amora para outro, mais para os lados da saída da cidade. Íamos nos falando pelo celular, quem achasse primeiro avisaria aos outros. Eu e My Boy não conseguimos nada, já eles dois acharam um motel distante mas que não tinha boa distribuição e acomodações piores ainda, mas por garantia eles deixaram meio que reservado dizendo ao funcionário que iriam nos chamar. Em matéria de achar onde dormir essa foi a nossa pior noite em toda a viagem. Por ser alta temporada, Maceió, janeiro, verão, estava tudo lotado. Até os motéis estavam cheios. E ainda coincidiu de chegarmos por lá num sábado. Voltamos todos ao ponto de encontro marcado, na praia de Pajuçara, a fim nos reunirmos e decidirmos o que fazer. Estávamos chegando a conclusão mais que óbvia de que só nos havia restado a opção do tal motel ruim. Nisso aparece na nossa frente a Rosa, a Mulher Gato, uma velha freqüentadora de eventos. Ela nos disse que seu motorhome estava num estacionamento próximo e nos convidou para irmos até lá. Depois de um bom papo trocando as novidades motociclísticas nos ofereceu suas instalações pois iria dormir no apartamento de uma amiga local. Entretanto como a devolução das chaves ficou complicada pela hora prevista de nossa saída no dia seguinte, optamos por não aceitar essa impagável cortesia. Continuamos então nossa peregrinação agora já na direção norte, ainda em Maceió mas já no sentido Pernambuco. Passamos por Cruz das Almas onde há maior número de motéis mas não tivemos sucesso. Rumamos então para aquele motel distante que Diorlando e Amora haviam deixado meio que reservado. Quando chegamos por lá o alagoano do tal motel nos diz que já havia alugado as “nossas” vagas. Pronto: estávamos na rua. Só nos restavam as nossas barracas ou o banco da praça. Esse motel ficava no fim de uma rua sem saída e de terra. Manobramos as motos e quando voltávamos de lá fomos parados por um homem que bebia cerveja com outros na beira da calçada de um boteco. Esse cara era o gerente de uma bela pousada na beira do mar e ficou consternado de nos ver voltando do motel. Ele disse que percebeu que estávamos sem ter onde dormir. Ofereceu então, ao preço de trinta reais, a sala principal da pousada incluído o café da manhã. Ele colocaria colchonetes no chão para nós. Nem foi preciso falar a segunda vez. Fomos direto para lá. O lugar era lindo, de frente para uma praia repleta de coqueiros, coisa de propaganda turística, um paraíso.
Depois de “instalados” ficamos no deck da piscina num caramanchão com mesas e redes jogando conversa fora. My Boy descobriu um banheiro dentro desse caramanchão e foi fazer uso dele. Peludão logo se prostrou numa das redes. Diorlando percebeu que My Boy estava sentado no trono do banheiro e pela porta entreaberta ficou tentando fotografar o rei naquela tarefa, mas não obteve sucesso na missão. Essa foi uma noite de muita descontração e gozações mútuas. Acho que pelo alívio de finalmente termos achado um lugar para dormir. Mas depois de muito papo apesar do momento muito agradável fui me deitar. My Boy veio em seguida e Peludão e Bambi ficaram nas redes pois fazia muito calor. Lá dentro havia um banheiro que dava para essa sala e um outro com chuveiro numa área reservada aos empregados. Peludão quis tomar seu banho e foi usar esse banheiro. Nisso, sem que percebêssemos, o vigia (ignorando que o chuveiro estava sendo usado) trancou a porta de acesso ao salão. Depois de algum tempo começamos a ouvir gritos e batidas na porta. Era Amora que havia ficado preso lá dentro. Assim que conseguimos que o vigia lhe devolvesse a liberdade, ele voltou para sua rede onde pretendia passar a noite. Nem é preciso dizer que isso foi motivo de grandes e longas gozações. Por volta das quatro da manhã caiu uma forte chuva, daquelas brabas mesmo (apesar de rápida). Os dois que dormiam lá fora nas redes vieram correndo, expulsos pela água. O gerente que também estava nas redes lá fora terminou dormindo na sala como nós. O hotel estava tão cheio que até o dormitório dele fora alugado. Ele deitou num dos sofás e em pouco tempo começou a sinfonia, um dueto, ou melhor, um duelo entre ele e peludão. Coisa de doido, até os vidros das janelas vibravam com a potência do som…
Quando amanheceu pudemos realmente ver a beleza do lugar o que nos deu muita vontade de ficar por lá. Mas mesmo assim sabíamos que tínhamos de seguir viagem. Tomamos um farto café da manhã e logo que vagou um quarto o gerente nos transferiu para lá para que pudéssemos tomar banho, trocar de roupa, escovar os dentes etc.

Despedidas feitas, muitos agradecimentos ao gerente Araújo com a nossa promessa de retorno por lá na próxima viagem e às nove horas estávamos novamente na estrada. Seguimos pela litorânea AL 101 que é menos movimentada e muito mais agradável e bonita. Entretanto quando se chega ao estado de Pernambuco essa estrada vira a PE 060 e vai se afastando do litoral e se embrenhando sertão adentro. Nossa meta era ir direto para João Pessoa, capital do estado da Paraíba. Já saímos do Rio de Janeiro com a intenção de não pernoitarmos no estado de Pernambuco.
Fazia muito calor e várias vezes ficávamos ansiosos pela “chegada” de um posto para beber alguma coisa. Estava realmente muito abafado e quente aquele dia. Numa dessas paradas Peludão não se sentiu bem e entendemos que, visando ao conforto e à segurança, seria melhor prolongar um pouco o tempo daquela parada à sombra de algumas árvores que existiam ali ao lado do posto. Em pouco tempo a cena se traduzia num pequeno dormitório: Peludão achou alguns papelões e não teve dúvida, se espalhou sobre eles dando início a sua habitual “sinfonia”; eu peguei na moto o meu colchão inflável e deitei, mesmo com ele vazio; Diorlando se ajeitou em cima da moto mesmo.
Em poucos minutos nós três estávamos curtindo um descanso numa deliciosa sombrinha. Para nós esse foi um dos pontos altos da viagem, que recordamos com alegria e satisfação. Enquanto isso, lá no sol, My Boy fazia a corte para a moça que vendia café no posto, relatando as suas proezas motociclísticas, a viagem à Rota 66 etc. De vez em quando ele de lá gritava que nós estávamos parecendo um cemitério de velhos, ali deitados no chão, que ele sim era o tal que não precisava descansar… De cá nós gritávamos para ele ficar quieto, nos deixar em paz e vir descansar também mas ele estava mais interessado em provar sua resistência do que vir se unir ao grupo que a essa altura já estava no terceiro sono. Peludão parecia que estava em casa, com aquela habitual produção de trovões e rugidos que deixariam qualquer leão africano humilhado.
Não sei ao certo quanto tempo dormimos, mas foi o tempo necessário para acordarmos novos depois de um sono restaurador. A noite anterior tinha sido confusa, tensa com aquela busca por onde pernoitar, e mal acomodada em colchonetes no chão da sala da pousada. Esse descanso no período mais quente do dia foi uma das coisas mais inteligentes que fizemos, seria muito arriscada a nossa jornada para esse dia se a fizéssemos cansados. Quando começamos a nos levantar, My Boy que ainda permanecia lá no sol ainda jogando conversa fora com a moça do café, percebeu que acordamos e começou a gritar de lá que o cemitério de velhos abriu a porta e as assombrações estavam fugindo. Tudo muito engraçado, mas estabeleceu-se uma diferença: ao contrário de nós três somente ele não havia descansado.
Voltamos para a estrada e My Boy seguia puxando o grupo. Apesar do intenso calor daquele dia rodávamos tranqüilos observando as paisagens do sertão brasileiro. Deixamos Alagoas e entramos em Pernambuco. Pouca coisa mudou, sinceramente nem dava para perceber que estávamos em outro estado, a pobreza era a mesma. Depois de passarmos pelo município de Cabo de Santo Agostinho finalmente chegamos pela BR 101 nos arredores de Recife. Aquele clima provinciano e tranqüilo aos poucos foi desaparecendo. O fluxo de veículos foi ficando cada vez mais forte. As placas de sinalização indicando as saídas e entradas de acesso para as vias secundárias iam se multiplicando nos trazendo à realidade urbana. Para completar o quadro começou a chover. Em um determinado ponto, numa bifurcação de pistas, My Boy ficou indeciso, na dúvida para que lado seguir e para não entrar na pista errada optou por dar uma freada forte abrigando sua moto bem no “bico” da divisória, naquele “triângulo” pintado no chão. Peludão que vinha logo atrás dele assustou-se pois não esperava por aquela repentina freada e quase caiu, chegando a travar a roda dianteira de sua moto no piso sujo com a areia que normalmente fica acumulada naqueles pontos da pista. Eu e Diorlando que vínhamos ainda depois dele ficamos “de fora”, parados literalmente no meio da pista, expostos ao trânsito intenso da rodovia BR 101. Foi um momento de muito perigo e tensão.
Depois de alguma argumentação saímos daquela situação voltando ao nosso destino do dia que seria João Pessoa. Passamos direto por Recife e já na saída da cidade My Boy parou para abastecimento e, claro, um cafezinho. Essa parada levou muito tempo. Muito mais tempo do que era necessária. Comecei a suspeitar de que My Boy estava sentindo os efeitos da noite anterior que foi muito mal dormida. Ele só desgrudou da garrafa térmica de café depois de consumir a última gota. Nós três estávamos ali a postos, apenas esperando por ele para seguirmos a nossa viagem. Depois de muito tempo por conta do café, agora foi a procura de um banheiro o motivo de nova protelação do momento da saída. Quando finalmente começamos a nossa última movimentação do dia já era também o último movimento do sol em direção ao ponto poente.
Em menos de 30 minutos estávamos naquele ponto do dia que dizemos ser o lusco-fusco. Logo a seguir chegou a escuridão da noite.
My Boy nessa hora já demonstrava sentir os efeitos da noite mal dormida e do desperdício daqueles tão proveitosos momentos de descanso que nós três desfrutamos enquanto ele contava vantagem para a moça do café.
A estrada ficou infernal, em pista única, em mão dupla e sem acostamento devido às obras de duplicação. O fluxo de trânsito era incrível, com um veículo atrás do outro numa atividade incessante. Parecia uma eterna e infindável composição ferroviária com todos os seus faróis nos incomodando sobremaneira e de forma contínua. Na nossa pista estávamos também “encaixados” numa outra “composição” e não podíamos nem acelerar nem reduzir devido ao risco de sermos derrubados pelo tráfego. A coisa foi feia e muito tensa. Era nítido que My Boy estava exausto o que nos deixava também muito tensos e preocupados pois além daquela situação que por si só já é muito complicada ainda tínhamos o agravante de saber que ele estava além do limite razoável de segurança para guiar uma motocicleta devido ao seu estado. Entretanto ali, naquela situação, não havia nada que se pudesse fazer. Tínhamos de seguir junto com o excessivo trânsito daquela estrada. Não havia nem onde pararmos, não havia acostamento. À nossa esquerda estava o fluxo contrário e à nossa direita, quase raspando em nossas pernas, centenas de placas com setas e avisos de pista em obras além de um contínuo monte de entulho que fazia as vezes de muro para delimitar o fim da pista.
Para piorar ainda era início de final de semana, sexta-feira à noite, o que fez com que cada vez mais a estrada se superlotasse de veículos aumentando o tempo para que finalmente chegássemos a João Pessoa.
Esse foi um dos momentos mais tensos e marcantes dessa parte da viagem.
Finalmente quando chegamos em João Pessoa, My Boy logo ligou para o Álvaro Lucena, presidente do MC Rota 230 e avisou que estávamos num determinado posto na entrada da cidade, um posto que tinha uma grande churrascaria, para que ele fosse nos ajudar a achar um hotel. Nós ainda não o conhecíamos pessoalmente, apenas por telefone, e ficamos aguardando por uma abordagem pois seria mais fácil ele nos reconhecer: quatro motociclistas juntos com as motos cheias de bagagem etc.
Passados alguns minutos vem uma figura em nossa direção e começa a falar com My Boy. Ele achando ser o Álvaro falava sobre nossa viagem, comentou a dificuldade que havíamos passado na estrada entre Recife e João Pessoa etc. Ficaram os dois em altos papos até que ele aponta para nós e vem trazendo o cara em nossa direção. Quando os dois param na frente de nós três My Boy fala para nós: – Este aqui é o Álvaro, presidente do Rota 230, e vai nos auxiliar aqui em João Pessoa… quando o cara interrompe e diz que ele não se chamava Álvaro não, e que não era presidente de nada, que ele era o motorista daquele rabecão que estava abastecendo ali no posto. Ele apenas veio falar com My Boy por admirar nossa coragem além de gostar muito de motos…
Depois de nos despedirmos do motorista do rabecão e após as inevitáveis gozações e risadas My Boy volta a ligar para o Álvaro que por sua vez diz já estar no posto da entrada da cidade, que tem uma grande churrascaria, mas que não estava conseguindo nos achar. Depois de muito procurarmos por ele, e ele por nós, foi que a coisa se esclareceu: nós estávamos em João Pessoa e o Álvaro em Campina Grande.
O jeito foi nos virarmos por nossa conta mesmo e deixarmos esse encontro para a noite seguinte.
Diorlando ligou para a irmã que mora naquela cidade e pediu que o Bandeira (marido dela) fosse nos auxiliar na busca por um hotel. Já era noite alta, quase madrugada, e estávamos querendo uma noite de sono decente a fim de recuperarmos o descanso não conseguido na noite anterior. Rodamos seguindo o carro do Bandeira e quando vimos estávamos parados em frente a um pequeno hotel na zona de João Pessoa. Não era a zona boêmia ou a zona hoteleira, era a zona zona mesmo. Cercado de bonecas e “primas”. Questionamos com o Bandeira por que ele nos levou a um hotel justamente ali, se era para fazermos serviço completo. Ele argumentou que nós havíamos pedido um hotel baratinho…
Mais alguns minutos cruzando a cidade e fazíamos o check in no Hotel JR, um bom hotel de João Pessoa. Diorlando foi dormir na casa da irmã.
No dia seguinte eu, Peludão e My Boy fomos de ônibus à praia de Cabo Branco onde encontraríamos Diorlando e a família. Foram bons momentos à sombra de um quiosque onde por fim almoçamos.
Mas, como era mesmo o nosso propósito, tínhamos de voltar para a estrada. Nossa meta para o dia estava a pouco mais de 100km de distância: Campina Grande.
Bandeira nos deixou no hotel e seguiu com Diorlando para que todos nós nos aprontássemos. Saímos de João Pessoa depois das 18h. Era verão, janeiro de 2009, e o sol ainda estava brilhando.
A BR 230, que liga João Pessoa a Campina Grande é uma beleza. Muito bem conservada, com asfalto em ótimas condições. O que pouca gente sabe é que, apesar dessas excelentes condições desse trecho da estrada, a BR 230 corta o norte do Brasil do leste ao oeste, passando inclusive pelo estado do Amazonas onde lá recebe o nome de Transamazônica. É isso, a Rodovia Transamazônica é uma parte da BR 230.
Já era noite quando chegamos em Campina Grande. Paramos na entrada da cidade numa pequena lanchonete e aguardamos pela chegada do Álvaro, que agora iria finalmente nos encontrar.
O Álvaro Lucena é o presidente do MC Rota 230 e como todo bom motociclista muito atencioso e prestativo com os companheiros. Rodamos pela cidade na escolha de hotéis e finalmente aprovamos o Titão Plaza Hotel. Como já estava tarde deixamos para estarmos juntos com mais calma no dia seguinte.
Após o café da manhã fomos para a loja do Álvaro onde My Boy trocou troféus dos moto clubes com nosso anfitrião e depois ficamos num papo muito gostoso. Se não fosse o fato de eu ser o único aposentado essa viagem teria sido muito mais tranqüila, menos corrida, mas os outros três companheiros tinham data de retorno para retomarem as atividades, sendo assim tínhamos de seguir em frente.
No projeto que fizemos, Campina Grande era a nossa cidade limite, a partir dela já iniciaríamos a nossa volta. Mesmo com muita coisa ainda para ser vista e muito lugar para ser visitado. Como disse anteriormente, quando eu planejo uma viagem raramente volto pelo trajeto da ida pois assim tenho sempre a impressão de estar sempre indo, mesmo quando estou voltando.
O nosso caminho de volta já não seria mais pelo litoral, com base na BR 101. Atravessaríamos o agreste nordestino e perto de Feira de Santana chegaríamos então ao nosso novo eixo que agora seria outro: a BR 116.
Mas ainda estávamos distantes daquela rodovia, nossa meta para aquele dia era a cidade de Paulo Afonso na Bahia. O Álvaro ligou para um integrante do MC Cavalo Doido naquela cidade e avisou da nossa chegada por lá no final do dia.
Descemos pela BR 104, passamos por Caruaru onde pegamos a BR 232 até São Caetano e de lá entramos na BR 423 que corta o sertão pernambucano, passando por Garanhuns (terra do Lula) e depois cruza em diagonal o agreste alagoano.
Ainda em território pernambucano fizemos uma parada para abastecimento em Iati. Da mesma forma que ocorreu em outras paradas nessa viagem, de pouco adiantou a minha insistência de que deveríamos sair logo, abreviando a nossa pausa já que ainda tínhamos muito chão até Paulo Afonso na Bahia. Estávamos ainda em Pernambuco e faltava cortar todo o estado de Alagoas, em sentido oblíquo, o que aumenta muito a passagem por aquele estado. O que eles não estavam sabendo é que estávamos entrando nos arredores do famoso Polígono da Maconha, onde nem a polícia se aventura muito, não existindo nem posto policial por aquelas bandas. Eu estava tentando evitar que ficasse muito tarde para não aumentar ainda mais o nosso risco. Mas não houve argumento capaz de afastar My Boy do balcão da lanchonete e do décimo copinho de café. Depois ele ainda foi fazer graça com um burrico que puxava uma pequena carroça até que finalmente subimos nas motos para seguirmos adiante. Passava de quatro horas da tarde.
Sempre que situações desse tipo ocorriam eu enfrentava um dilema: My Boy é o presidente do moto clube e na verdade ele é quem deveria determinar o tempo de cada parada. Não ficava nada bem eu ficar cobrando dele maior rapidez. Mas quem fez o planejamento fui eu e só eu sabia se estávamos ou não no tempo ou atrasados. E para piorar quando eu percebia que ele estava enrolando para voltar para a estrada eu entendia isso como uma necessidade dele de descontrair e descansar. Se eu insistisse muito poderia botar a segurança em risco, mas se demorasse mais um pouco também incorreria em aumento do perigo pois passar por aquelas bandas de dia já não é muito tranqüilo imagine à noite. E simplesmente não havia a menor chance de parar no meio do caminho para pernoite. Naquele trecho da nossa viagem a única opção era Paulo Afonso, se por ventura parássemos em qualquer outro lugar entre o ponto em que estávamos e aquela cidade seria uma espécie de suicídio coletivo. Todos que passam por essa parte da rodovia e a conhecem, sabem que furar um pneu por ali é um risco muito grande de, no mínimo, ficar abandonado e a pé na pista apenas com a roupa do corpo.
Finalmente, com um pouco de insistência velada, já estávamos rodando sobre o asfalto grosso porém em boas condições. Depois de algum tempo deixamos Águas Belas para trás e logo estávamos cruzando a divisa entre Pernambuco e Alagoas. A paisagem era triste, somente terra árida e sem vegetação quase nenhuma. Parecia um outro planeta.
Assim que passamos pela entrada de Ouro Branco, já em terras alagoanas, a velocidade do comboio foi caindo aos poucos. Faltava pouco mais de 100 km até a divisa com a Bahia. Entretanto pouco a pouco o ritmo da viagem ia diminuindo e quanto mais perto ficávamos de Paulo Afonso mais devagar íamos. A noite veio chegando exatamente na parte mais crítica do trajeto. A escuridão noturna nos alcançou e fez com que My Boy diminuísse ainda mais a velocidade. Os poucos veículos que transitavam por ali naquele momento passavam rápido por nós, ninguém queria “dar mole” de passar devagarinho por aquelas bandas àquelas horas. Num determinado momento um veloz comboio de três carretas em sentido contrário ao nosso nos “metralhou” com uma chuva de pedras levantadas pelo deslocamento de ar causado pela passagem delas. Foi uma coisa muito surrealista, muitos segundos de muitas pedradas no pára-brisas, nos faróis e em nossos corpos e capacetes. Parecia que não ia parar aquela saraivada de pedradas. Depois da passagem das três a coisa se acalmou, mas não foi o suficiente para retomarmos o ritmo ideal, mantivemos a velocidade (ou a falta dela) determinada pelo líder.
Saímos daquele posto em Iati pouco depois das quatro e chegamos em Paulo Afonso depois das oito horas. Levamos quatro horas para rodar 170 km. E justamente na parte mais violenta do agreste alagoano, mas graças a Deus tudo terminou bem.
Quando chegamos na entrada de Paulo Afonso avistei uma placa de bem-vindo e pedi para pararmos para fazer umas fotos. Foi difícil vencer a resistência mas acabamos conseguindo umas fotos com os quatro junto à placa.
Quando finalmente entramos na cidade fomos interceptados pelo Joel Torquato, do MC Cavalo Doido, que nos aguardava há quase duas horas. Torquato logo nos levou a uma praça onde existem vários barzinhos e pizzarias, local cheio de gente onde pudemos nos abastecer com alimentação e bebidas. Foi muito legal aquele momento.
De lá nos levou a um hotel de acomodações novas e limpas para que pudéssemos enfim descansar.
No dia seguinte pela manhã ele passou pelo nosso hotel para nos levar para visitar e conhecer as instalações da CHESF – Companhia Hidro Elétrica do São Francisco, mais precisamente o Complexo de Paulo Afonso que é composto de cinco usinas: Paulo Afonso I, II, III, IV e Apolonio Sales (Moxotó). Mas Peludão reclamava de dores nas costas. Isso não representou problema para o amigo Joel Torquato: de imediato pegou o celular e em poucos minutos uma massagista entrava pelo quarto. Algum tempo depois Peludão saía com um largo sorriso no rosto e já sem sinal de dores. Fomos então para a usina onde visitamos todos os pontos relevantes, apontados pelo companheiro do Cavalo Doido que também é funcionário da CHESF. Foi uma manhã muito interessante e extremamente agradável e descontraída. Seguramente não teria sido dessa forma se não fosse pela presença e ajuda do amigo Torquato. A ele dou o crédito dos bons momentos vividos por nós na nossa estada em Paulo AfonsoDespedidas feitas, eram 13 horas quando seguimos rumo sul pela BR 110 com destino previsto para Feira de Santana, cerca de 380 km de lá. Descemos a BR 110 passando por Jeremoabo no cruzamento com a BR 235. Mais adiante em Cícero Dantas paramos num posto na beira da estrada para abastecer as motos e beber algum líquido pois o calor estava fortíssimo. Estávamos cruzando o alto sertão da Bahia.
Minha idéia era seguir até Ribeira do Pombal, onde entraria à direita na pequena BR 410 que interliga a BR 110 com a BR 116, e de lá seguir até Feira.
Quando chegamos na entrada da BR 410 tomamos um susto, eram tantos buracos que eles se agrupavam transformando tudo numa grande tragédia, parecia o interior da cratera de um vulcão. Não dava para saber onde era rodovia e onde não era. Mas foi possível perceber que aquela situação era só ali no início, nos primeiros 100 metros pois podíamos ver que logo adiante o asfalto era novinho. Vencida aquela imensa cratera seguimos no rumo da BR 116. O dia estava claro, sem nuvens e com o sol brilhando. Enquanto rodávamos por aquele asfalto perfeito e visivelmente novo, alguns buracos foram aparecendo no meio da pista. Eram buracos grandes em sua maioria, do tamanho dessas tampas de bueiros redondas. À medida que passávamos pelos buracos ficava perceptível que aquele asfalto recente fora feito direto sobre o leito de barro, sem nenhuma camada de preparo anterior. Não podia dar em outra coisa: o próprio trânsito fazia com que o asfalto se descolasse do piso inferior e as “panelas” iam se formando. Em menos de cinco minutos já eram dezenas, centenas de crateras. Nossa tarefa era ir serpenteando pelo asfalto liso entre os buracos como num campo minado. Toda a extensão da BR 410, essa estrada de ligação, é de 35 km mas garanto que nos pareceu muito mais.
Chegando finalmente chegamos na BR 116 eram cinco horas e faltavam ainda 165 km até Feira de Santana. Fazendo uma média de 80 km/h em duas horas estaríamos lá. Seguimos tranqüilos pela estrada e mais uma vez ocorreu aquele episódio de desaceleração do comboio. A coisa foi se repetindo e quando chegamos no meio do percurso, em Serrinha, perguntei se agüentariam seguir até Feira. Ninguém, absolutamente ninguém foi claro o suficiente para se formar uma opinião que representasse a vontade coletiva. A coisa foi ficando estancada e tive de pedir novamente uma posição clara pois cada vez ficava mais tarde e logo iria escurecer. A situação não seria a mesma da ocasião anterior, pois estávamos numa rodovia movimentada e com bastante edificações em suas margens, mas de toda forma teríamos de decidir pois ficar ali parado é que não podíamos. Então, não sei se por acanhamento de reconhecer seus próprios limites perante o dos outros, ninguém vetou a idéia de continuarmos até Feira de Santana.
Estava faltando algo em torno de quarenta minutos para chegarmos quando começou a escurecer. Nesse ponto eu puxava o comboio e já vinha tentando manter uma média mais coerente com o nosso propósito do dia, mas não conseguíamos manter o comboio unido devido às constantes ultrapassagens pelos caminhões que fazem uso rotineiro da BR 116. Nessas situações é cada um por si. Eu ultrapassava e aos poucos, um por um, cada um fazia sua própria ultrapassagem. Seguíamos na seguinte ordem: eu puxando, Peludão em segundo, My Boy em terceiro e Diorlando fechando. Já estava quase totalmente escuro, naquele ponto em que os faróis ainda não iluminam direito tampouco há claridade do sol. Estávamos entre o chamado lusco-fusco e a noite propriamente dita. O trânsito de caminhões era muito intenso e não dava para se ter uma perfeita visão do nosso comboio através dos espelhos retrovisores. O que dava para perceber é que esperávamos muito tempo para My Boy aparecer quando eu e Peludão fazíamos uma ultrapassagem e em seguida tínhamos a pista livre adiante. Muito tempo mesmo. Era nítido que ele estava dividindo o comboio em duas duplas, o que traduzia uma situação de extremo cansaço por parte dele. A luz dos faróis dos veículos ultrapassados me impediam de entender e decifrar quem era quem naquele panorama, eu estava confiante na atuação do cerra-fila que, por força da função, viria até mim para me avisar se ocorresse algum problema. A cada ultrapassam era a mesma coisa, Peludão logo aparecia atrás de mim e uma longa espera para que o farol de My Boy surgisse à frente do recém ultrapassado.
Eu me perguntava: por que não houve a manifestação clara e explícita de que preferia ficar lá em Serrinha quando a questão foi colocada? Por que não assumir um cansaço natural e inerente ao ser humano? É uma condição própria e individual que deve ser anunciada ao grupo sem constrangimentos ou acanhamento, pois varia de indivíduo para indivíduo ainda em resultado de como foi seu descanso prévio etc. É preciso ser muito franco para não botar a segurança própria em risco ou até mesmo a do grupo todo. E não deu outra: numa dessas longas esperas pela aparição de My Boy, quem surge em velocidade é Diorlando avisando que havia acontecido alguma coisa com My Boy. Ele nos alcançou e se limitou a gritar – My Boy! My Boy! Fez a volta e disparou em direção a onde My Boy deveria estar. Eu imaginei o que qualquer um imaginaria diante desse dramático anúncio: que havia ocorrido um grave acidente com My Boy. Eu e Peludão fizemos o retorno ali mesmo e seguimos no encalço do Diorlando que já tinha desaparecido na escuridão. Depois de algum tempo avistei um pequeno farol parado no acostamento à esquerda. Pude perceber que era a moto do Diorlando e iluminava a moto de My Boy que estava parada à sua frente. Vi ainda que os dois estavam de pé junto às motos. Uma onda de alívio me invadiu como um sopro gelado na coluna, foi uma sensação muito forte e estranha, mas ver que My Boy ali de pé mexendo na moto foi muito tranqüilizador perto do que vinha imaginando ter acontecido. A aflição do Diorlando quando veio nos avisar, sem dizer nada além de “My Boy! My Boy!”, numa estrada de trânsito intenso de caminhões, nos deu margem para imaginarmos muitas coisas… mas graças a Deus parecia estar tudo bem.
Paramos no acostamento à nossa direita aguardando uma oportunidade de cruzarmos a pista a fim de nos unirmos a eles. Quando finalmente paramos atrás deles pudemos então saber que algo havia batido na mão esquerda de My Boy e ele teve de parar a moto. Eu não sabia se agradecia a Deus pela pouca gravidade final do ocorrido ou se “matava” o Diorlando pela forma com que ele nos avisou. A dúvida foi tanta que deu tempo suficiente para que eu simplesmente a ignorasse. Fui ver se estava tudo bem com My Boy. Ele estava nervoso e com a mão doendo. Um dedo parecia ter sofrido uma contusão mais grave, estava muito vermelho e já um pouco inchado. Ele dizia que tinha sido um pneu de um caminhão que havia estourado ao lado dele e um pedaço da borracha o havia atingido. Eu particularmente não acredito muito nessa possibilidade, apesar de ser possível. O espelho esquerdo e o manete da embreagem foram atingidos. O espelho trincou o vidro e o manete amassado de forma que mesmo todo apertado a ponto de encostar no punho, a embreagem não era suficientemente acionada para aliviar a tração da moto. Foi preciso que o Diorlando fizesse um ajuste no cabo para que ela pudesse voltar a atuar convenientemente.
Nós procuramos pelos pedaços de pneu do caminhão e não achamos nada. My Boy insistia na história do pneu, mas eu fiquei achando que o que havia acontecido não tinha nada a ver com pneu. Para mim foi um contato com um caminhão que vinha em sentido contrário. Quem roda muito pelas estradas brasileiras já deve ter visto várias vezes caminhões com pontas das cordas que amarram as carga serpenteando livres e dando verdadeiras chicotadas no ar. O que eu acho que aconteceu foi que uma chicotada dessas acertou a ponta esquerda do guidom que fica exatamente voltada para a pista contrária. Normalmente essas cordas ainda têm um nó na extremidade evitando assim que ela vá se desfiando. Uma chicotada dessas faz um senhor estrago se pegar em alguém ou mesmo num veículo que vem em sentido contrário. Mais tarde Diorlando me confidenciou que My Boy vinha muito na beirada da pista, quase invadindo a pista contrária quando espreitava para ultrapassar, chegando a rodar sobre a faixa divisória pintada no asfalto. Essa informação veio reforçar a minha descrença na versão do pneu estourado. Eu já tive a oportunidade de ver um pneu externo de caminhão estourando dessa forma, explodindo mesmo. O deslocamento de ar é enorme, faz um estrago muito grande capaz até de derrubar quem está ao lado, além de deixar rastro e vestígios espalhados pelo chão. Nós não achamos nada. Não se pode descartar também a possibilidade de em virtude do extremo cansaço ele ter dado uma “apagadinha” e esbarrado no veículo que vinha em sentido contrário.
Mas isso também pouco importava naquele momento, e aderimos à hipótese do pneu defendida por My Boy. Assim que foi possível seguimos para Feira de Santana.
Quando chegamos por lá Diorlando precisava ir ao banco fazer um pagamento. Procuramos uma agência para ele executar sua tarefa e em seguida fomos atrás de um hotel. Rodamos muito auxiliados por um guia turístico local, que com sua própria moto nos conduzia de hotel em hotel mas não achávamos vagas. Finalmente ele nos levou a dois que dispunham de vagas. My Boy gostou de um e Diorlando de outro. Terminamos ficando em hotéis separados. Peludão que habitualmente dividia o quarto com My Boy ficou com ele em um e eu e Diorlando em outro.
Fomos nos instalar em nossos aposentos, mas não sem antes combinarmos de sair mais tarde para comermos alguma coisa. Ainda estava cedo, eram cerca de oito horas quando eu e Diorlando estávamos em frente ao hotel deles aguardando para sairmos. Peludão surge sozinho e diz que My Boy não ia, que ia ficar descansando e pediu para levar um pedaço de pizza para ele.
Rodamos um pouco pela cidade e finalmente fomos a uma boa pizzaria. Foi uma grande e muito gostosa descontração enquanto comíamos a nossa pizza. Muitas risadas e muitas histórias. Tão agradável que nem vimos a hora passar e quando percebemos já estava fechando a pizzaria. Voltamos para nossos hotéis. Eu e Diorlando deixamos Peludão no hotel dele e fomos para o nosso.
No dia seguinte foi a minha vez de pagar contas. Fui a pé para a rodoviária onde haviam alguns caixas eletrônicos. Na passagem vi uma especializada em troca de óleo de carros e fui perguntar ao baiano se ele tinha óleo Motul pois eu gostaria de fazer a troca na minha moto:
– Bom dia, vocês têm óleo Motul?
– Mutum?!?!
– Não meu amigo mutum não, Motul.
– ????
– É um óleo sintético, da marca Motul.
– Olha seu moço esse aí nós num tem não, mas tem aquele Lubrax ali, num serve não?
Agradeci e sai sorrindo sozinho.
Quando eu e Diorlando chegamos no hotel dos outros dois para seguirmos viagem encontramos Peludão arrumando a bagagem na moto. Ele nos disse que na noite anterior quando chegou da pizzaria com o jantar de My Boy, não conseguiu entrar no quarto. Disse que bateu, bateu e bateu e nada de My Boy abrir a porta. Esperou pensando que ele poderia estar no banheiro e repetiu a tentativa um pouco depois. Nada, não houve nenhuma movimentação lá dentro do quarto. Preocupado, achando até que ele pudesse ter morrido lá dentro, Peludão desceu até a recepção e contou ao funcionário o que estava acontecendo. Ele por sua vez subiu junto e esmurrou a porta sem sucesso. Desceu e depois voltou com a chave reserva do apartamento. Quando abriram a porta My Boy estava “desacordado” no décimo sono. Peludão disse que ainda o chamou algumas vezes para que ele pudesse comer, mas depois desistiu vendo que ele estava realmente muito cansado e precisando daquele sono.
De repente surge My Boy, de cara nova, descansado, voltando àquele ar zombeteiro que só ele sabe ter. Ali de cara limpa como se nada tivesse acontecido na noite anterior. Rimos mais um pouco e fomos abastecer as motos para continuar nossa viagem.
Quando já estávamos de saída do posto uma equipe da TV local nos abordou e fez uma longa entrevista com cada um de nós. My Boy quase chegou ao êxtase, ele não consegue disfarçar a euforia que sente quando tem a oportunidade de relatar sua história motociclística. Encerrada a entrevista pudemos então seguir rumo ao nosso destino do dia que seria Jequié, localidade conhecida como a Cidade Sol.
Era um bonito dia, ensolarado e tranqüilo de tráfego na BR 116. Seguimos sem problemas e num excelente astral. Quando chegamos em Milagres parei no posto Elite a fim de abastecermos as motos e apreciarmos a pequena montanha rochosa com uma formação que nos dá a impressão de estarmos vendo uma santa rezando.
Já dentro da loja de conveniência do posto percebo My Boy disfarçando alguma coisa. Ele não saía de perto do balcão do caixa. Na hora pensei que ele já estivesse jogando conversa fora na menina que o atendia. Fui até ele e perguntei o que fazia ali e como resposta veio a afirmação de que ele era homem, preferia ficar perto das mulheres do que ficar admirando outro homem.
Não entendi nada e fiz uma cara de interrogação. Ele por sua vez falou: “Olha ali, olha o Peludão!”. Me virei e vi Peludão ao lado de um gigante. Um cara com bem mais de dois metros de altura. Peludão parecia uma criança careca ao lado do cara. Ele estava atônito, impressionado com o tamanho do cara de quem ele em altura alcançava no máximo o ombro. Confesso que tive uma certa dificuldade de convencer Peludão a sair de perto do cara, parecia uma criança diante da vitrine de uma loja de brinquedos.
Depois de muitas risadas e gozações voltamos para a estrada. Jequié não estava longe e chegaríamos cedo mesmo tendo saído de Feira de Santana pouco depois do meio-dia.
Faltava pouco para as cinco da tarde quando paramos num posto na entrada da cidade. Como de costume logo fomos cercados por curiosos que sempre perguntam a mesma coisa: de onde viemos, para onde estamos indo, qual o consumo da moto e quanto custa a moto. Apareceu um cara com um desses triciclos a pedal vendendo picolés. Fizemos a festa. Devido ao calor e à variedade de sabores foi um picolé atrás do outro. O cara foi ganhando intimidade e em pouco tempo Peludão estava pedalando o triciclo do cara pra lá e pra cá.
Terminado o nosso descanso saímos então em direção ao centro da cidade em busca de local para nosso pernoite. Lá no posto um funcionário havia nos indicado um determinado hotel. Entramos na cidade e fiz o trajeto indicado para vermos o tal hotel, entretanto quando passamos em frente a ele não deu tempo de parar na porta e fui obrigado a passar um pouco. Mas imediatamente enquanto passava apontei para o hotel e Diorlando e Peludão que vinham atrás de My Boy conseguiram parar a tempo. Eu e My Boy subimos na calçada à direita e ficamos esperando os dois que foram ver se havia disponibilidade de vagas para nós. Cheguei a pensar em fazer um retorno para me juntar a eles, mas estava difícil, era uma curva de uma rua muito movimentada. Achei melhor aguardar os dois ali mesmo junto com My Boy.
Após um longo período de espera eles apareceram com tudo acertado, com dois quartos duplos reservados. My Boy não gostou, achou que o hotel estava longe da praça principal da cidade e queria procurar outro hotel. Peludão e Diorlando se entreolharam sem entender direito. Não lembro qual dos dois argumentou que já tinham acertado tudo e que não ficaria nada bem simplesmente ir embora, até porque haviam algumas pessoas na recepção desejando alojamento. Diante da habitual colocação de My Boy de que “se quiserem ficar aqui tudo bem, ninguém é obrigado a ir, só acho que deveríamos procurar outro…”, optamos por sair à procura de outro. Nós já conhecíamos bem essa conversa e sabíamos ler nas entrelinhas.
Decidiram então que iam avisar ao cara que quando vieram nos informar da reserva, que nós dois tínhamos resolvido em outro hotel, inclusive já pagando.
Segundo eles o cara percebeu que era mentira mas ficou por isso mesmo.
Rodamos um pouco na busca de onde ficar. Tudo cheio. Rodamos mais um pouco. Cheio, sem vagas. Na praça só tinha um hotel com vaga mas era muito caro e sem garagem. Diorlando resolveu sair em busca de outras opções enquanto aguardávamos por ali. Voltou depois de algum tempo com a informação de que havia um hotel duas ruas atrás da praça que parecia ter vaga. Nisso Peludão fala que se era para ficar fora da praça então poderíamos ter ficado naquele primeiro. My Boy responde para então irmos para lá. Peludão retruca que para lá não volta porque depois de reservar eles tiveram que mentir para o cara fazendo aquele papelão. My Boy então diz que não tinha mandado ninguém reservar nada, que eles fizeram por conta própria e porque quiseram. Foi a centelha na pólvora, o tempo fechou. Aquele clima agradável deu lugar a uma pesada nuvem negra sobre nós. Depois de trocas de “amenidades” entre My Boy e Peludão, após as coisas serem botadas pra fora, ficou aquele clássico silêncio que só foi quebrado quando um de nós falou para irmos ver o tal hotel. Optamos por ficar lá mesmo, àquela altura dos acontecimentos até o banco da praça estava servindo.
Da mesma forma instantânea que teve seu início, o entrevero entre os dois chegou ao seu final e fomos então nos acomodar. O hotel tinha quartos simples mas uma boa garagem e, como disse, seria ele ou o banco da praça.
Depois de instalados, banhos tomados, fomos dar uma volta até a praça onde pude apresentar aos três o acarajé. Gostaram tanto que teve até repeteco. Ficamos conversando ali sentados até o momento do fechamento dos quiosques da praça às dez horas da noite quando então voltamos para o hotel. No dia seguinte finalmente seguiríamos para Araçuaí, em Minas Gerais, terra do Peludão.

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– em breve continuará…

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