Ushuaia 2012

El Paro Nacional

Parei para dormir no Hotel El Valle, numa cidade da província de La Pampa chamada General Acha.  Não sei o que esse general achou, mas tá aí o nome da cidade argentina: General Acha.

Quando acordei, antes de sair em direção a General Acha, iniciei o trabalho de adequar todo o meu planejamento à minha nova situação.  Tinha a revisão de 60 mil quilômetros agendada na BMW de Neuquén para segunda-feira dia 26 de novembro.  Fiz esse agendamento ainda no Brasil, há dois ou três meses através de vários e-mails trocados.  Por pura obra do acaso hoje soube que dia 26 é feriado na Argentina.   Muita sorte ter descoberto isso!  Como fiquei muito adiantado no meu cronograma da viagem, pedi ao cara do último hotel para ligar para BMW e tentar alterar, reagendando e antecipando para sexta-feira 23.  Só aí percebi que se não estivesse avançado no tempo ia quebrar a cara na segunda-feira quando pontualmente no dia 26 chegasse na porta da concessionária em Neuquén.


Mas como eu vim parar aqui em General Acha?  Voltando um pouco no tempo: ontem, do dia 20 para 21 
de novembro, pernoitei em uma singular cidade próxima de Rosário depois de um dia bastante turbulento e carregado de tensão.  Logo que acordei ainda em Ituzaingó no dia 20 soube que havia sido iniciado um movimento nacional com a paralisação de todos os serviços, uma greve geral chamada por eles de Paro Nacional.  Minha missão então era conseguir passar o quanto antes de dois pontos principais: o conjunto Paraná/Santa Fé e a principal e mais difícil meta: passar por Rosário.  Sabia que a situação nas estradas seria politicamente nervosa, só não sabia o quanto.
Na entrada do túnel subfluvial que sob as águas do Rio Paraná interliga as cidades de Paraná e Santa Fé, vislumbrei as marcas de uma manhã certamente muito complicada.   Montes de cinzas negras revelavam que pneus foram queimados no meio da pista denunciando o que houve por ali mais cedo.   A polícia agitada tentando organizar a passagem do trânsito entre aqueles montes fumacentos.  Percebi que se tivesse chegado ali umas poucas horas antes o resultado de minha passagem por lá certamente teria sido outro. Na frente do pedágio do túnel mais montes negros de cinzas de pneus.  Dava para sentir o clima tenso, pesado.  Me convenci que ali houve um senhor conflito.  Deixei o túnel para trás e “enrolei o cabo” na direção de Rosário.  Minha apreensão era a possibilidade de ficar sem oferta de gasolina.   Essas manifestações são sempre mais fortes e intensas nas grandes cidades.  Eu já estava desde cedo enfrentando dificuldade para abastecer. Vários postos estavam fechados ou já não tinham mais gasolina.  De manhã, na saída de Ituzaingó já havia enfrentado uma grande fila no posto de combustíveis.  Apesar de Santa Fé ser a capital da província do mesmo nome, Rosário é uma grande cidade, a maior da província, e certamente a coisa por lá estaria ainda mais pulsante.

Saí do túnel e segui para a autopista que me levaria até Rosário.  Cruzei os quase 200 km da via expressa o mais rápido que me foi possível fazê-lo.  Nos arredores da cidade o panorama já me permitiu antever o clima: dezenas de caminhões se alinhavam estacionados ao longo de todos os espaços disponíveis: canteiro central,  acostamento, posto de gasolina, numa clara tentativa de evitar a proximidade com centro de Rosário, certamente o núcleo do conflito.  Alguns quilômetros adiante a coisa finalmente se apresentou. Centenas de caminhões formavam um surreal e estranho mar colorido que ocupou toda a extensão da autopista até onde os olhos podiam enxergar, obstruindo totalmente a via.  Pensei em parar para pegar a máquina fotográfica e registrar aquela cena com algumas fotos, mas em seguida lembrei que deveria era tentar vencer aquele ponto o mais rápido possível.  Às vezes por um breve instante ficamos retidos num sinal fechado, elevador que fecha etc.  Não tinha como correr o risco de ficar preso por lá fazendo companhia àquela infinidade de caminhões.  Eu não fazia ideia se a coisa estava quente, esfriando ou pior: ainda esquentando.  Aos poucos, à medida que me embrenhava naquele mundo de gigantes, na única passagem que encontrei, o caminho ia se estreitando até que se reduziu a um fino corredor no canto esquerdo da pista.   Inicialmente fiquei indeciso e inseguro, eu não estava no meu país, era um estrangeiro com as naturais dificuldades de comunicação.  Fiquei alguns segundos hesitando sem saber se deveria seguir ou me juntar àqueles monstros de aço, mas percebi que não havia alternativa para mim, eu tinha de tentar.  Apontei a moto para o estreito corredor.  Lentamente fui avançando em primeira marcha.  Avançando, avançando, até que cheguei ao início do estático e inusitado comboio e me deparei com vários manifestantes caminhando e gesticulando adiante de dois caminhões de lixo que foram atravessados na pista impedindo a passagem de todos.   Era um bloqueio e eu ali passando por eles na maior cara de pau.  Ainda lembro bem dos olhares de cada um deles, num misto de quem não estava acreditando na minha audácia junto com admiração pela moto.  O resultado foi uma apoplexia geral e eu fui passando… passando… e passei.


A partir dali já tinha entrado na cidade, estava em Rosário.  Podia sentir no ar e nas ruas esvaziadas o clima tenso. Cruzei ruas, avenidas, bairros, centro, com a sensação de que era um domingo em dia de final de copa do mundo.  Quase ninguém nas ruas.  Na verdade quase ninguém se atrevendo a estar nas ruas.  Subi em um viaduto que me levaria para a autopista de saída da cidade e de lá vi outros bloqueios como aquele que passei.  Me deu vontade de sumir logo daquela “panela de pressão” mas eu ainda tinha de resolver um problema: precisava abastecer.  Os postos de Rosário ou estavam fechados ou com manifestantes impedindo o acesso dos clientes.  Em Ituzaingó eu havia enchido o galão que carrego comigo como segurança, o que me garantiria combustível suficiente para me afastar dali.  Mas até onde me levaria?  Vi ao longe um posto com dois carros da polícia parados.  Diminui e fui me aproximando devagar e aos poucos me dirigindo para a bomba.  Parei ao lado dela…  Fui atendido!!!   Entendi que a polícia estava ali para garantir o abastecimento.

Eu já havia conseguido chegar até Rosário.  Mas para ter maior  tranquilidade precisava deixar a cidade para trás no meu caminho.  Essa era a minha meta quando saí de Ituzaingó naquela manhã.  Eram cerca de sete e meia da noite e já estava escurecendo, precisava achar um hotel.  Mas teria de ser adiante de Rosário.  Perguntei então ao frentista que me atendeu qual a próxima cidade com hotéis para que eu pudesse dormir.  Ele virou para um cara que vestia uma camisa amarela e repassou a pergunta.  Esse cara, muito agitado e “elétrico”, começou a falar um monte de coisas, rápido, eu entendia pouco mas via que ele estava me orientando (ou pensava que estava).   Falava muito de uma mulher de nome Cassilda.  Me parecia que ele queria que eu a conhecesse ou que só ela teria a informação que eu desejava.  De repente ele determinou que eu estacionasse a moto e fosse para a loja de conveniências com ele.   Virou para um outro que parecia ser um policial civil, sem farda e que estava com um rádio de comunicação na mão, e disse que eu pararia a moto numa área aparentemente proibida, cercada por aquelas fitas plásticas rajadas de amarelo e preto.  Levantou a fita e lá fui eu com a moto.   Já dentro da loja de conveniências outros caras conversavam e como num filme de Cowboy assim que entramos suspenderam o falatório e fizeram imediato silêncio enquanto nos acompanhavam com os olhos.  O cara de camisa amarela repassou para todos o meu questionamento.   Eles então começaram a falar entre eles.   Falavam muito da mesma mulher, essa tal de Cassilda.  Parecia que ela era a única pessoa que iria me trazer a solução.  Mas eles aos poucos foram se exaltando e agora falavam de uma forma que aí sim eu já não entendia mais nada.  Começaram a aumentar o volume de suas falas e em segundos estavam gritando e gesticulando entre eles.  Estavam brigando?  Discutindo?  Caramba!  Eu só queria o nome de uma cidade para dormir.   Fui eu que provoquei aquilo tudo?   Pensei em sair de fininho mas minha moto estava dentro da área das fitas, precisava de ajuda para alguém segurar a fita para eu sair.  E os caras ali, gritando e gesticulando.  Na minha opinião a um passo de sair um tiro, uma briga generalizada.  Repentinamente o cara de camisa amarela, no meio daquela confusão toda interrompe seu discurso, vira pra mim e me causando um sobressalto pergunta se eu queria um café.  Mas como assim?  Eles estavam ali, quase se matando e o cara quer saber se eu quero tomar café?  Eu quero é sair dali!!!

Só um deles, um que estava sentado junto da porta e lendo jornal é que não estava participando da discussão.   Ficou todo o tempo lendo o jornal, na maior calma, enquanto eles gritavam entre si.   Foi quando ele então falou uma coisa lá que todos imediatamente pararam, silenciaram por dois segundos e disseram que eu tinha GPS.  No final, de tudo que eles falaram só o que pude guardar foi o nome da cidade: Casilda.  A tal mulher que eu imaginei antes era na verdade uma cidade.  Antes de sair da loja um deles me perguntou se no Brasil também tem piquetes.  Diante de minha resposta positiva a vibração entre eles foi grande, quase como um gol.  Foi quando então percebi que eles eram piquetes que estavam ali no posto para evitar os abastecimentos quando certamente foram impedidos pela chegada da polícia. O de camisa amarela foi lá fora comigo, levantou a fita e eu finalmente fui embora dali.

Foi assim que fui parar em Casilda, essa cidade 50 km depois de Rosário.

Mas por que esse sufoco todo?   Quando eu estava tomando café da manhã em Ituzaingó, pela TV vi que foi declarado esse “paro nacional”.   Algo como (se fosse no Brasil) uma greve geral.  Onde tudo para.   Mas é tudo, tudo mesmo!   E eu lá!   Sem posto de gasolina, pedágios com cancelas abertas, sem trens, sem metrô, sem ônibus.   Nada!  Piquetes nas ruas para impedir a circulação de trabalhadores aos seus ofícios.  Nada de caminhões entregando mercadorias etc.  Na verdade me pareceu que os caminhões foram os principais alvos.   Eles então nem se aventuravam mesmo pelas estradas.


Mas por que Ituzaingó?  Se voltarmos ainda mais, eu estava em Santa Helena na casa do amigo Amir, vindo da 7a CNIBR que aconteceu em Bonito e que foi o motivo de eu fazer esse parênteses em minha viagem.  Eu já estava no Chile pela região do Atacama e voltei ao Brasil para estar presente na CNIBR do Brazil Rider’s.  Agora estava tentando retomar a viagem, voltando para aquele país.   Saí de Santa Helena pela manhã já na intenção de “enxugar” um pouco meu trajeto até Neuquén onde faria a revisão da moto.  Só não sabia que iria enxugar tanto, chegando 4 dias antes.

noticiário informando o “paro nacional”
Pukara de Quitor em San Pedro de Atacama

caminho para SONCOR
arte na montanha do deserto do Atacama
cabañas em Taltal
mirante do Aconcagua

Puente del Inca
dique de Potrerillos quase seco.  Aqui se represam as águas do degelo das montanhas e abastecem a cidade de Mendoza
Luján de Cuyo – próximo a Mendoza
por do sol em Miramar – Mar Chiquita
monumento ao Índio – caminho pata Tafí del Valle


General Acha

Amanheceu um lindo dia de sol depois da véspera com um fim de tarde chuvoso em General Acha.  Vibrei por trás da janela do meu quarto quando abri os olhos e vi tudo iluminado pelo astro rei.  Previ uma travessia tranquila pela Ruta del Desierto, caminho que faria naquele dia.  Na véspera um frentista de um posto de gasolina lá em Casilda havia me advertido que a travessia dessa estrada não é bom se fazer sozinho pois é “una ruta muy desamparada” e pensei que iria cruzá-la sob chuva.

No dia anterior assim que cheguei ao hotel em General Acha logo começou a chover e a temperatura caiu muito.  Até comentei com o funcionário do hotel que provavelmente eu iria percorrer a ruta del desierto debaixo de chuva no dia seguinte.  Mas ao contrário do que imaginamos o dia amanheceu claro e brilhante.  Tomei meu café (duas media lunas e café puro) e fui botar a bagagem na moto.  Claro que nem tudo poderia ser perfeito: o carioca aqui saiu do hotel de camiseta e quase congelou.  Lá fora estava um frio danado.  Fazia um sol brilhante, mas também muito frio.

Paguei o hotel e fui abastecer a moto.  Já de cara olhares atravessados e murmúrios.  Comecei a ouvir reclamações do jogo que acontecera na noite anterior.  O Brasil ganhou no La Bombonera o Superclássico das Américas, venceu da Argentina nos pênaltis.  Eu era tudo que os argentinos não queriam ver naquele dia: um brasileiro.

Finalmente rodando sobre asfalto, iniciei o percurso do dia: seguir até Neuquén.  Aos poucos, a cada km rodado, o frio foi aumentando e fui fechando as aberturas da roupa que são feitas exatamente para circular o ar.  Depois de tudo já mais que fechado, punho bem justo para evitar entrada do vento etc., tive de parar no acostamento para pegar na mala de tanque uma proteção para o pescoço.  Eu só pensava: Tudo bem, eu sei, eu já estou na Patagônia, mas se aqui já está assim imagina lá pra baixo…


Por falar em Patagônia, na véspera quando vinha pela estrada e entrei em La Pampa, havia uma placa de “Bienvenidos a Patagonia Argentina”.  O clima estava quente, até meio abafado.  A estrada vazia e eu ia a uns 130km/h.  Lembro que pensei: “se isso já é Patagônia vai ser moleza…”.  Baixei os olhos para o painel e procurei a indicação da temperatura ambiente: foi só o tempo de ler 32,5 e levar uma passarinhada pela cara.  O bicho explodiu na minha viseira!  Imagina o tamanho do susto que eu levei…


Mais adiante vi que o tempo estava fechando lá pela direita.  Sabia que em algum tempo, 
lá pelos arredores de Santa Rosa, eu iria virar numa estrada para esquerda e fiquei na torcida para isso acontecer antes da chuva me alcançar.  Mais uns trinta minutos e nos encontramos, eu e a chuva.  Ela chegou mas não molhou.  Eram pingos de chuva seca.  Sabe aqueles pingos secos?  Não?  Nem eu, mas eram assim, não molhavam.  O negócio mais esquisito, caia na viseira e escorria, mas era só.  Nem a pista ficou molhada.  Comecei a achar que eu estava alucinando, olhei para os carros que vinham em sentido contrário e vi que estavam com o limpador de pára-brisas ligado.  Mas não me molhava.  Acho que fumei um cigarrinho do demônio sem perceber porque juro que era assim: pingo seco!

Finalmente virei na tal estrada à esquerda, que liga Santa Rosa à General Acha.  O vento que me acompanhou o tempo todo, não deixando que eu me esquecesse dele, agora ficou de frente.  O cara é feroz!  Para conseguir me manter a 120 por hora a moto fez 12km/l.  Quando fui chegando em General Acha o céu ficou escuro e pesado.  Ainda faltavam cerca de trinta km e percebi que o bicho ia pegar.  Mais uma curva e o asfalto apontou para o único pedaço do planeta cujo céu ainda estava claro.  Finalmente cheguei e escolhi o hotel.  Tirei a bagagem e brrrruuuuummmmm…. começou a chuva.  Fui jantar a pé mesmo, num restaurante vizinho ao hotel e, como não podia deixar de ser, me molhei com pingos bem molhados, daqueles que parecem ter um litro cada um.


25 de Mayo

Hoje, 23/11/12, minha moto ficou pronta da revisão de 70000 km que fiz aqui em Neuquén.  Não fui buscar porque no hotel que estou não tem garagem.  Amanhã pego.  Mas já paguei e foi a metade do que paguei na revisão de 60000 em Yerba Buena.  Acho que o cara da Berlim Motos nos assaltou Caipira!

Desde que saí da casa do Amir em Santa Helena, passei pelas províncias de Missiones, Corrientes, Entre Rios, Santa Fé, Buenos Aires, La Pampa, Rio Negro e agora Neuquén.  Com exceção de Missiones e Neuquén, a impressão que deu é que a Argentina não está afundando só politicamente, mas fisicamente também.  Geograficamente falando mesmo.  É água por todo lado!  As estradas passam literalmente como ilhas no meio de tanta água.  Cercas, pastos, portões de fazendas, tudo dentro d’água.  Há momentos em que a água vem até à beira do asfalto, o acostamento é totalmente alagado.  Quando tem uma elevação a coisa melhora um pouco, mas logo vem aquela interminável planície e a água novamente se espalha.  Só em Rio Negro que a coisa melhorou desde Corrientes.

Intrigante o negócio, parece que está afundando…

Saindo de General Acha em La Pampa o negócio é plano e igual: deserto.  Você anda, anda e parece que não saiu do lugar.  Teve uma hora nessa tal de Ruta del Desierto que eu mais uma vez pensei que estava sofrendo de alucinações.  Andava e andava e olhava em volta e era tudo igual, não mudava.  Eu comecei a ficar em dúvida se estava mesmo andando ou se a estrada era uma grande esteira ergométrica.  A aparência era de que não havia saído do lugar porque nada em volta mudava, era tudo igual.  A única coisa que mudava era no painel da moto a indicação da quantidade de gasolina no tanque.  Mais de trezentos km acelerando para não mudar nada.  Só avisos e mais avisos para parar e descansar, e incontáveis carcaças de carros acidentados.


No final da Ruta Provincial 20, a Ruta del Desierto, há a RN 151 e a localidade de 25 de Mayo que faz divisa da província de La Pampa com a província de Rio Negro.  Há ali um posto de gasolina e obviamente parei para abastecer moto e corpo.

Acho que todos param ali.  Parecia uma feira livre em manhã de domingo.  E é claro que um brasileiro sozinho de moto, moto grande e carregada, não poderia deixar de virar o centro das atrações.  Foi quase impossível sair de cima da moto.  Devem ter sido umas 5480 fotos e umas 8000 perguntas.  Mas as 8000 perguntas divididas sempre entre: de onde sou, para onde vou, quanto custa a moto e quanto corre a moto.  Imagina um ser vivente quase “morrente” de sede, tendo de repetir 8000 vezes as mesmas respostas.  E ainda sorrir para as 5480 fotos!  Teve uma hora que eu tive de dizer que se eles não me deixassem passar eu ia urinar na calça.

Foi ruim mas foi bom…

Saindo do banheiro vi que ainda estavam olhando a moto e me chamaram para mostrar um vazamento.  Vi então que se tratava da minha almofada de gel que mais uma vez se rompeu sujando a moto e minha calça.  Ali mesmo no posto providenciei mais um remendo com uma bisnaga de “La Gotita” uma espécie de Super Bonder e uma fita isolante.  Tudo comprado ali mesmo no posto.  A aparência da cirurgia na almofada não ficou lá um primor, mas deu certo resultado.  Só não sabia até quando ela iria durar…


Logo a seguir, saindo do posto está a entrada em Rio Negro e há ali um controle sanitário semelhante ao que existe no ingresso ao Chile, com revistas às bagagens em busca de frutas etc.  Por sorte fui atendido por um cara que não quis encrencar e antes mesmo que ele perguntasse eu já fui dizendo que era tudo roupa pois sou carioca e estava morrendo de frio!  Ele riu e me mandou passar entre os cones e ir embora.


Em Rio Negro finalmente começaram a aparecer algumas elevações, moderadas, pequenos relevos.  E a rodovia é marcada por incontáveis engenhocas daquelas que ficam subindo e descendo aquele “martelão”, acho que algum tipo de mecanismo de bombear petróleo.  Mas mesmo assim a água na beira da estrada ainda se fez presente de vez em quando.  Aí não dá para não pensar: “esse petróleo já vai sair batizado desde a origem”.


uma pequena amostra da água nos campos.  Em muitos lugares até casas estão submersas

Ajuda providencial

Logo que entrei em Neuquén percebi que sem ajuda não chegaria à BMW Cordasco Austral para deixar a moto na revisão agendada.  Neuquén é uma cidade grande se comparada (em sua maioria) às outras por onde passei.  Infinitamente maior por exemplo que a pequenina General Acha de onde havia saído naquela manhã. O Sebastian Lopes (chefe de oficina da concessionária) nunca me passou o endereço da loja nos e-mails que trocamos.  Nem eu lembrei de perguntar.  Agora estava ali sem saber para onde seguir.  Andando meio que sem rumo passei por um motociclista que andava calma e lentamente numa Vulcan que como as Harleys-Davidsons era tracionada por correia dentada e não por corrente.  O cara estava vestido com aquele típico uniforme de bancário: calça social, camisa social, sapato social, colete de lã etc.  Reparei isso porque também vi que tinha nele um outro lado que contrastava muito com essa indumentária.  Ele usava um capacete nazista, cavanhaque daqueles mais compridos e bicudos, por baixo do capacete dava para ver que a cabeça era raspada e se não me engano usava algum brinco ou outra coisa do gênero o que me fez pensar que ali estava um motociclista que depois do trabalho assumia seu estereótipo de “biker old school”.
Mais adiante paramos num semáforo, lado a lado, e tive a oportunidade de perguntar se ele sabia onde era a concessionária.  Depois de uma breve explicação segui com a certeza de que teria de fazer a mesma pergunta muitas outras vezes adiante.  Novamente nos emparelhamos no semáforo seguinte quando ele espontaneamente se propôs a me levar até lá.
Chegando vimos que estava fechada para o bendito almoço argentino, quando tudo para.  Eram cerca de duas horas da tarde e só abriria às quatro.  Agradeci e o cara seguiu seu rumo no mesmo compasso lento de quando o abordei momentos antes.  Agora eu estava com duas horas disponíveis para encontrar o hotel que o cara lá de Casilda havia feito a reserva para mim.  Sabia que o nome da rua daquele hotel era Tierra del Fuego então informei-me com um cara que passava e que me pareceu ser uma espécie de guarda municipal.  Eu estava a uma quadra do hotel!  Pura sorte ter ficado num hotel tão próximo da BMW.
Deixei as bagagens (muitas!!!) e fui dar uma volta pela cidade.  Perto das quatro estava parado numa sombrinha na frente da concessionária.  Me acomodei na moto, pés no apoio avançado de pés, cabeça no baú traseiro e… dormi.  Ali no meio da rua.  Mais tarde ouvi ao longe alguém dizendo: “senhor…”.  Olhei e vi um cara sorridente com uma camisa que indicava trabalhar na BMW.

Deixei a moto e voltei para o hotel.  Agora eu estava com um novo problema: era quinta-feira e só teria de estar em Temuco no Chile na terça.  Tinha então cinco dias para preencher sabe Deus como e onde.  Decidi então que sairia de Neuquén no sábado.  Minha moto iria ficar pronta na sexta-feira final da tarde e a pegaria no sábado.  Só aí já gastaria dois dos cinco dias.

Pedi ajuda à recepcionista do hotel explicando minha situação de adiantamento no cronograma.  Disse que estava pensando em quando saísse de Neuquén seguir para Zapala, uma cidade próxima e que já me deixaria na cara do gol para a aduana.  Mas a recepcionista me desaconselhou, dizendo que eu iria ficar três dias numa cidade que não há nada para fazer pois Zapala não é uma cidade turística.  Ela me indicou Villa Pehuenia, uma pequena localidade no meio de lagos.  Fez as ligações para reservar algo para mim e achou em Moquehue, vizinha à Villa Pehuenia.  Estávamos num fim de semana com feriado na segunda-feira, o modelo argentino dos nossos feriadões.


Caminho para Villa Pehuenia

Saí de Neuquén sábado 10h, sabendo que iria encontrar 92 km de rípio para chegar ao meu destino do dia.  Para quem não sabe o rípio é uma espécie cascalho, mais ou menos como aqueles pisos de estacionamentos em pedra brita, só que composto por pedras redondas.  O caminho passa por Zapala e é todo asfaltado até Primeros Pinos.  A partir dali começa então o rípio.  Minha moto está com muito peso de bagagem e os pneus que estou usando são 100% para asfalto.  O traseiro então bastante gasto apesar da ajuda ímpar dos amigos do Brazil Rider’s do oeste do Paraná, Amir, Sampaio e Elói Gambá.  Inclusive os caras da BMW de Neuquén queriam anotar na minha ficha que foi identificada a necessidade de troca e eu não aceitei trocá-lo.  Ou seja: eu não estava com o equipamento ideal para aquele piso que iria enfrentar.  Ainda no Brasil fiz contato com a MotoAventura, concessionária BMW de Osorno, agendando a troca dos pneus para a ocasião em que passasse por aquela cidade.  São pneus que não são comercializados no Brasil ou na Argentina.  Eu ainda teria muitos quilômetros de rípio pela frente, mas também muitos mais em estradas asfaltadas.  Os pneus para utilização no rípio que são comercializados no Brasil e na Argentina se deteriorariam muito rapidamente no asfalto.  Esses que encomendei no Chile não.  São pneus alemães, Heidenau Scout K 60, próprios para uso misto.  50% off road e 50% asfalto.  Eu teria de “aguentar” até a minha chegada em Osorno.

Assim que passei por Primeiros Pinos deixei o asfalto e entrei no trecho de rípio.  Segui com cautela e tudo foi correndo como esperava.  Por vezes a moto dava uma escorregadinha mas nada que chegasse a assustar, pelo menos não muito.  Depois de algum tempo “peguei a mão”, identifiquei mais ou menos o comportamento da moto naquelas condições e ganhei mais confiança.  Comecei então a andar um pouco mais rápido que no início.  Ao contrário do que vinha acontecendo, agora eu é que passei a ultrapassar os carros que também seguiam naquela estrada.  Sei que normalmente, por experiência própria, é aí que as coisas inesperadas acontecem.  Tudo ia bem, faltavam menos de trezentos metros para terminar o rípio e iniciar o asfalto quando numa descida surge uma curva toda de areia.  Sabe aquela areia fofa sobre um piso duro, socado?  Não sabe?  Eu sei, agora mais do que nunca eu sei.  E sei de perto, bem de perto.  Nem deu pra ver o que aconteceu, quando vi estava me esparramando e deslizando no chão.  Não sei, vou chutar, mas acho que perdi a frente da moto, sei lá.  Só que ela caiu para dentro da curva e não para fora.  A curva era para direita e eu cai do lado esquerdo.  Muito doido o negócio.  Acho que a moto perdeu aderência escorregando pelo próprio peso na natural inclinação do piso da curva (para dentro).  Seria normal, numa curva para direita, que uma queda fosse com o lado direito da moto voltado para o chão.  Mas essa não, apesar de ser curva para direita foi o lado esquerdo que ficou em contato com o chão.  Só sei que arrastei no chão por cerca de 10 metros.  Creio que devia estar a uns 40 km/h, não mais.  Mas foi o suficiente para deixar uma marca de uns 10 m no chão.  No final a moto rodou e ficou de frente para o sentido contrário, virada para o lado de onde eu vinha.  Como era na saída de uma curva fiquei com receio de vir um carro e nos acertar, eu e a moto.  Eu estava bem, não sentia nada, mas era preciso sair dali.  A agonia de ter caído e a pressa de sair logo dali não me fez lembrar de tirar fotos da situação, uma pena.

Tentei levantar a moto e tudo que consegui foi uma fisgada na minha lombar.  A moto nem se mexeu.  Me posicionei de novo e nova tentativa: outra fisgada ainda maior.  Vi então que só haviam duas alternativas: ou eu esperava alguém passar para me ajudar ou teria de esvaziar toda a moto para tentar levantá-la.  Optei pela primeira e logo passou um carro para o qual fiz sinal.  O cara veio e tentou me ajudar, mas não havia onde segurar na moto, era tudo bagagem.  Orientei a ele que tentasse pelo baú traseiro que eu tentaria pelo guidão e banco.  Tentamos uma vez e a moto deslizou no piso e não subiu nem um milímetro.  Nova tentativa e a mesma coisa, a moto arrastava sobre o piso coberto pela areia mas não subia.  Vimos então a esposa dele sair de dentro do carro e vir em nossa direção numa clara intenção de se unir à nossa “força tarefa”.  O cara então pegou uma pedra e pôs na base do pneu traseiro e pediu à mulher que pisasse na pedra.  Nova tentativa, a moto foi subindo, subindo, subiu e minha lombar detonou.  Puxei o descanso lateral da moto e tentei baixá-la de volta para a esquerda a fim de apoiar a bicha no mesmo.  Quanto mais força eu fazia para a esquerda mais o cara fazia para a direita achando que ela estava voltando para o chão.  Eu tentava descer a moto para o descanso e ele fazendo força para o lado contrário.  Eu estava vendo a hora da moto dessa vez cair para o outro lado.  Eu dizia: ”para cá, para cá!!!!”  E o cara fazia força para lá.  Até que a mulher dele entendeu e disse a ele o que fazer.  Finalmente voltei a ver minha moto de pé, solta, sozinha apoiada no descanso lateral.  O cara foi embora com meus sinceros e profundos agradecimentos e eu fiquei ali, olhando para a moto com as mãos na lombar.  Acho que minha posição arqueado para frente com as mãos apoiadas nas costas fazia lembrar o “Véio Zuza”, personagem de Chico Anísio.
Subi na moto e fiz a volta pois meu destino era no sentido oposto ao que ela apontava.  Mesmo para fazer a volta a coisa foi complicada e difícil.  Eu ainda estava nervoso, cansado e “travado” pela lombar.  Lembro-me que naquele momento ali tão distante de casa me senti um tanto desamparado e solitário.  Parecia para mim que eu era o único habitante do planeta.   Percebi que além de fisicamente abatido estava também psicologicamente abalado.  Foi um instante muito marcante para mim…
Verifiquei que estava realmente muito solta e espessa a camada de areia sobre a pista.  Devagar e com cautela e pés ajudando pude sair daquele ponto e em menos de 15 segundos estava no asfalto.
Momentos que ficam para virarem histórias…

O lugar é realmente fantástico.  Deus fez essa parte do mundo num momento de muita inspiração.  O céu estava totalmente azul com sol brilhante.  Lagos de água muito azuis, cercados por montanhas nevadas e muita vegetação.  Paisagem de cartão postal e cenário de filme romântico.  Só que agora eu estava ilhado pelo rípio e com a moto nas já conhecidas e impróprias condições para esse tipo de piso.  Em Villa Pehuenia há asfalto, mas só lá.  Todo o entorno e acessos são de rípio.  Minha escolha é muito rípio ou pouco rípio.  Parece óbvia a resposta, mas é que o rípio mais curto é também o menos “tratado”, e o mais longo é o mais “conservado”.  Esse mesmo que passei para chegar até lá é tido como “tratado”.


Tinha a troca de pneus agendada (desde setembro) para quinta-feira em Osorno, e a esperança que isso me desse melhores condições para esse tipo de piso, até porque nessa época do ano chove o tempo todo em Ushuaia.  E pegar rípio debaixo de chuva, com a moto pesada e pneu impróprio é masoquismo demais…


Ok.  Eu agora estava em Villa Pehuenia, mas tinha ainda de seguir para Moquehue onde está o hotel que me foi reservado.  Fui seguindo pelo asfalto aproveitando cada centímetro do mesmo, como se fosse o último pedaço asfaltado das américas.  Pensava enquanto andava, como o equipamento pode fazer tanta diferença.  Esse piso que me derrubou eu passaria com “os pés nas costas” se estivesse com minha moto de trilha.  Porém com essa, com esses pneus e carregada como está, foi essa dificuldade.

Mais adiante me deparei com a aduana argentina.  Cones estavam impedindo a passagem.  Um militar da Gendarmeria me atendeu e lhe expliquei que não iria sair da Argentina ainda, que estava querendo apenas ir para Moquehue.  Ele me orientou a voltar na aduana quando fosse sair, pediu para ver meu passaporte e desejou boa viagem.  Antes de sair perguntei a ele se seria asfalto até lá e ele respondeu: 18 km de rípio.  Para quem já tinha rodado 92km, com “maestria e acrobacia”, completar mais esse percurso não era nada demais.


Moquehue

Assim que cheguei pude ver que na verdade o hotel é uma casa de fazenda.  O lugar é lindo.  Gelado porém lindo.  É, muito lindo… mas é gelado.  Mas é gelado gelado mesmo.  E bota gelado nisso!  Ambiente acolhedor, lareira acesa o tempo todo mas mesmo assim: gelado.
A senhora que me atendeu me levou escada acima e me apresentou meu quarto.  A primeira coisa que procurei ver foi se tinha cobertores na cama.  Isso mesmo, no plural: cobertores.  Eu queria me garantir, vários, muitos, montões de cobertores!  Ela mostrou que havia aquecimento a gás ao lado da cabeceira da cama e isso me tranquilizou um pouco.  Disse-me que já iria ligar para ir “temperando la habitacion”.
Claro!  Não deu outra!  O treco estava com defeito!  Ela desceu e subiu umas cem vezes, cada vez com uma ferramenta diferente na mão.  E eu com medo que aquele negócio explodisse pois não era elétrico, era a gás!  No final de inúmeras tentativas ela murmurou que necessitava de ajuda e abandonou a faina.

Tomei meu banho e eram cerca de cinco da tarde quando desci para o salão onde tinha a lareira.  Escolhi o lugar mais próximo ao fogo.  Jantei ali mesmo e fiquei por lá até meia noite e trinta.  Quando subi olhei para o aquecedor e vi que o treco estava aceso e chegando bem pertinho dele deu pra perceber um pequeno aquecimento.  Mas o negócio é muito fraco.  Não dá nem pra saída, está longe de atender às necessidades deste carioca friorento.  Entrei sob as cobertas e só fui me mexer pela manhã para levantar e sair da cama.  Naquela noite eu não dormi, eu desliguei.  Acordei na mesma posição que deitei…


Dia seguinte no café da manhã uma surpresa: não haviam medias lunas!  Mas apesar de um pouco mais favorecido a matéria era a mesma: o argentino e econômico desayuno de sempre.  Uma cestinha com algumas fatias de pão (a mesma que na véspera fora colocada na minha mesa de jantar a guisa de couvert), um pires com manteiga, outro com uma espécie de geleia, um bule com café e a xícara.


Depois de tanta fartura (não sei como não tive uma indigestão!), fui lagartear ao sol do lado de fora na varanda da frente.  Olhando a vida passar, cheguei a conclusão de que aquele lugar é uma espécie de hiato no tempo.  Pela rua de rípio em frente à Hosteria La Bella Durmiente (o hotel onde eu estava), quase não havia movimento mas passaram alguns carros durante o tempo em que fiquei por ali.  Todos (ou quase todos) antigos porém ainda muito novos e conservados, como se ainda estivéssemos na época deles.  Os hábitos por lá também são outros.  Não há nem internet nem tv no hotel.  Nem celular funciona.  Enquanto pensava isso, sobre esse hiato no tempo, como que para consolidar essa minha tese passa tranquila e lentamente um antigo e emblemático Alfa Romeo 2000, carro que teve a nossa versão brasileira, o FNM JK.  Veículo do início da década de 60.  Foi como uma viagem ao passado, muito legal.


Entretanto volta e meia eu me pegava pensando em como sair daquela ilha terrestre: um pedaço de terra cercado de rípio por todos os lados.  Minha melhor opção ali era o Paso de Icalma, com 55 km de rípio.  O nome desse passo já é bem sugestivo: Icalma…


Eu não queria deixar a região sem dar uma volta para tirar fotos e conhecer um pouco o lugar.  Mas também não queria ter de vestir toda a roupa de cordura só para isso, e qualquer outra roupa ficaria imunda de poeira.  Perguntei então à senhora Sonia, dona da hosteria se havia um carro para alugar ou um taxi ou um serviço parecido.  Questionado por ela revelei minha intenção.  Ela então disse alguma coisa como um pensamento alto que entendi ser algo que dizia que ela iria me levar.  Voltou-se para mim e perguntou se poderia ser mais à tarde.  Concordei com tudo e quando foi lá pelas três, quando estou novamente lá fora lagarteando, ela me grita em tom meio que cantado: “estoy lista!”  Ou seja: “estou pronta!”.  Olhei para ela e vi que estava em pose holywoodiana, me olhando um pouco por cima do ombro, assim meio de lado com uma das pernas um pouco dobrada, e usando um chapéu redondão, que também só tinha visto na cabeça das mulheres daqueles filmes americanos antigos.  Pensei comigo: “essa não… será?”


aqui acabou o asfalto e começou o rípio

difícil sair de perto da lareira

Tour particular

Depois de nos instalarmos no carro, ela iniciou um tour pelos locais mais interessantes.  Foi até bom ir com alguém que conhece o lugar pois já vai na parada certa evitando “passeios” errôneos naquele rípio infernal.
Vimos coisas incríveis.  Rochas com erosões naturais porém obedecendo padrões com uma simetria tão apurada que pareciam feitas pelo homem. Vimos também uma rocha que está (segundo ela) “se erosionando”.  O fato é que esta rocha está se desmanchando e com isso se forma uma espécie de rio de pedras.  Muitas vezes esse “rio” vem até a pista chegando a encobri-la impedindo a circulação.  Os residentes do local usam essas pedras para compor a camada de rípio das vias por onde passamos.  Vimos também uma quantidade enorme de paisagens à beira dos lagos da região.  Os lagos Moquehue, Aluminé, Poicahue, Pulmari, Ñorquinco e Pihue.  É realmente um lugar que merece mais tempo para se esgotar as atrações locais (ou chegar perto disso).

Na volta, quebrando o natural sossego, começamos a nos deparar com algumas motos vindo em sentido contrário.  A senhora Sonia não entendia o motivo de tanto movimento mas eu logo vi que se tratava de algum tipo de competição pois todas as motos tinham números aplicados nos locais próprios.  Elas passavam em grupos, aos montes de cada vez.  A certa altura chegou a ser impossível continuar devido a tanta poeira que as motos levantavam, fomos obrigados a parar o carro.  Já eram dezenas delas em cada onda, todas BMW.  Com atenção pude identificar o emblema do GS Trophy South America 2012
 numa delas que passou mais lentamente.  Estava então explicado o motivo de tanta bagunça: estávamos dentro e em sentido contrário de uma competição motociclística internacional, o BMW GS Trophy South America 2012.

Dia seguinte, dia de seguir viagem.  Tudo arrumado na moto e voltei a Villa Pehuenia para dar a última olhada na vila.  Foram mais 18 km de rípio até o asfalto, o mesmo caminho por onde já tinha passado dois dias antes.  Passando pelo soldado da Gendarmeria, avisei que estava em Moquehue e que iria até a vila para na volta fazer a minha saída daquele país.


Dei uma pequena voltinha (também não dá para ser maior devido ao tamanho da vila), comprei uma garrafa de água mineral para levar comigo e fui fazer o trâmite de saída.  Na Gendarmeria tudo tranquilo.  Na aduana uma pequena dificuldade com a saída da moto pois o cara não sabia onde relacionar a mesma no sistema.  Ligou para outra pessoa que pelo que entendi o chamou de burro dizendo que para veículos de países do Mercosul não há campo para discriminação, a saída é livre.  Ouvi mais uma vez um “buen viaje” e lá fui eu.



Voltando ao Chile

Exatamente na divisa entre os dois países, Argentina e Chile, termina o asfalto e se inicia o rípio.  Fui bem devagar para não fazer também uma análise microscópica do solo chileno como fiz no solo argentino.  Depois de uns 5 ou 8 km surge um pueblo onde está a aduana de entrada no Chile.  Esse passo que chama-se Paso de Icalma fica às margens do lago Icalma, que certamente lhe empresta o nome.  Tudo tranquilo na imigração, mas quando cheguei na aduana o cara me pediu o papel de saída da moto da Argentina.  Argumentei que veículo brasileiro não recebe esse papel por serem (ao contrário do Chile) países integrantes do Mercosul.  Pelo menos como foi assim que o cara da aduana argentina havia me dito, repeti.  O chileno me olhou e disse “- esses argentinos…”.

Tudo resolvido, era hora da inspeção sanitária na bagagem.  Mais uma vez dei sorte pois era também um cara de bom humor e me disse que só queria olhar o “top case”.  Abri e ganhei mais um “buen viaje”.  Foi então que perguntei por que caminho deveria seguir.  Todos eles me disseram que o melhor seria pelo mais longo, contrariando as informações que havia recebido no hotel em Moquehue.  Como eles são chilenos e a rodovia é deles optei por seguir o conselho deles.  Um virava para a esquerda imediatamente depois da aduana, que era o caminho indicado pelo pessoal da Argentina; o outro virava para a direita, no mesmo ponto, e era o indicado pelos chilenos.  Com a informação de que pela esquerda era mais curto porém com muitas curvas e subidas e descidas e o da direita era mais tratado, fui pelo da direita.  Vim descobrir depois que essa é a estrada que liga o Paso de Icalma com o Paso de Pino Hachado, fronteira esta por onde passaria se tivesse mantido a minha ideia de pernoitar em Zapala como inicialmente havia planejado até ser convencido do contrário pela menina do hotel em Neuquén.


Pois bem: lá fui eu seguindo a estrada.  A princípio ela se manteve em boas condições para o trânsito do meu pesado conjunto: piloto e equipamento.   Todo mundo sabe que nesse tipo de piso o ideal é se manter sobre o “trilho” formado pelos pneus na circulação dos carros, pois esse movimento além de compactar o piso tende a retirar as pedras mais soltas.

Mas como nem tudo acontece como desejamos, de vez em quando a coisa se apresentava, como direi… um tanto fofa.  A camada de pedras soltas ficava mais espessa me obrigando a não desviar nem um pouco do que já não era nem mais um “trilho” mas uma pequena marca de onde os carros provavelmente haviam passado.  E claro, como não podia deixar de ser, exatamente nesses momentos surgiam veículos em sentido contrário.  Isso me obrigava a ceder espaço e abandonar a parte mais compacta da pista.  Numa dessas saídas do “trilho” já não foi possível voltar e mesmo não desejando isso fui descendo para a parte lateral ficando literalmente atolado sobre a vala que margeava a via, composta por uma profunda camada de pedras.  Com uma moto leve a manobra é simples:  roda dianteira para cima, pés no chão e gás na moto que ela sai.  Mas naquele “caminhão” carregado e com pneu impróprio e já liso a coisa era outra.  Primeira tentativa: nada.  Segunda: a moto quase foi para o chão do lado oposto ao da pista, tive de me esticar todo para evitar que ela caísse.  Vi que não dava pra errar pois se ela tombasse eu sabia que só sairia dali com ajuda.  Desativei o controle de tração e tentei mais uma vez.  A moto começou a patinar e cavar dentro das pedras.  Fui então dando um balanço na moto, indo e vindo fazendo ela ficar em sentido diagonal, meio que atravessada, para uma tentativa final.  O perigo dessa manobra é que quando a roda dianteira sobe para a pista, o pé “falta” porque o meio fica longe do chão e se a moto patinar e não subir, é tombo na certa.  Voltei a ligar o controle de tração e fingi que estava na minha CR de trilha e dei gás na moto.  Seja o que Deus quiser…  com um certo cheiro de embreagem parei atravessado na pista, já no topo da mesma.  Havia saído da vala…

Segui um tanto ofegante e ainda mais alerta (para não usar a palavra assustado).  Subidas, descidas, curvas… tudo aquilo que o cara da aduana me disse que havia na outra estrada não recomendada por ele.  Foi então que pensei:  “se isso aqui é sem curva, sem subida e sem descida como será a outra estrada, uma montanha russa?”

Já seguia mais descansado quando avistei de longe, após uma sequência de curvas, uma longa subida em reta.  Tudo isso com o rípio naquela camada mais espessa.  Fui atento e vi que vinha um carro bem lá longe, mas se aproximando bem devagar.  Um pouco mais adiante vi que o carro havia parado e tinha aquelas luzes na capota.  Reconheci ser uma pickup dos Carabineiros, a polícia chilena.  Iniciei a subida e quando fui me aproximando deles, a cerca de 300 metros, saltaram e se colocaram no meio da pista me mandando parar.  Eu pensei: “esses fiduaégua (não exatamente isso) não têm idéia do sufoco que vai ser para sair daqui depois…”.
Atendi ao comando e parei.  Vieram sérios perguntando quem mais estava comigo.  Disse-lhes que estava só.  Perguntaram de onde era, de onde vim e para onde ia.  Apertavam com as mãos as bolsas presas à moto e perguntavam o que tinha dentro, pareciam nervosos, falavam os dois ao mesmo tempo num comportamento quase agressivo.  Queriam que eu levantasse o banco da moto, perguntaram o que havia em baixo dele.  Disse-lhes que eram só ferramentas e a bateria da moto.  Para ter acesso ao meu banco seria necessário desamarrar a bolsa que estava sobre o banco traseiro (garupa) para ser possível tirá-lo e dar então condições de retirar o meu banco.  Era muito trabalho para ser feito aparentemente por um capricho do policial, sem um motivo real.  Ignorei solenemente.  Mandaram-me abrir as malas para verificar o conteúdo das mesmas.  Eles faziam perguntas umas sobre as outras e davam ordens absurdas como essa de desmontar e expor toda a minha bagagem.  Isso tudo literalmente ali no meio da rua.  Aí eu já achei demais, foi a minha vez de mudar o tom e falar sério.  Perguntei por que isso tudo pois eu era um cidadão estrangeiro com entrada regular no país deles e que havia passado pela aduana de Icalma onde a revista já havia sido feita.  O outro policial circundou a moto e foi novamente apertando as malas que estavam do outro lado da moto e perguntando o que tinha dentro.  Disse que eram roupas e já irritado insisti em saber o motivo de tantos questionamentos já que a vistoria havia sido feita na aduana de Icalma onde tinha cumprido todos os procedimentos de entrada no Chile.  Então, talvez pela minha postura e inflexível resistência, deram-se por vencidos e desistiram da ideia de me fazer desmontar toda a bagagem ali no meio da estrada e me autorizaram a prosseguir.  Talvez pela minha indignação ante a possibilidade de ter de desarrumar tudo nem me lembrei em que piso estava e fui imediatamente vencendo aquela subida e saindo dali.  Andei mais uns 500 metros e cheguei ao asfalto e em seguida ao complexo fronteiriço do Paso de Pino Hachado.  Creio que os policiais estavam achando que eu teria entrado no Chile por um caminho clandestino, sem passar por controle aduaneiro nenhum.  Como viram que eu insisti muito que havia passado pelo Paso de Icalma entenderam o motivo de eu estar chegando por aquela estrada e desistiram da investida.

Já no asfalto não havia mais preocupação com o piso e então pude voltar a apreciar a natureza que fluía ao meu lado à medida que avançava pelo país.  Interessante como a vegetação muda completamente quando entramos no Chile e começamos o caminho do topo da cordilheira para o Pacífico.   O Chile é um estreito país, confinado entre a cordilheira e aquele oceano.  A não ser quando chegamos por mar ou pelo ar, o acesso terrestre vindo da Argentina é sempre de cima para baixo.  C
om exceção apenas à pequena parte do país onde estão Puerto Natales, o Parque Nacional Torres del Paine e a parte chilena da Terra do Fogo que estão do lado oeste da cordilheira, a linha divisória entre Chile e Argentina acompanha o topo da cordilheira.  Os Andes ali não têm vias com a mesma altitude da região do noroeste argentino onde alcançam brincando os 5000 metros.  Mas apesar de estarem a cerca de 1600 m no máximo têm também sua própria identidade.  Fui seguindo e apreciando o caminho quando logo a seguir vejo um aviso de pedágio e um túnel de pista e mão única.  É o túnel Las Raices, com pouco mais de 4,5 km de extensão.  O fluxo do trânsito interno é monitorado por um funcionário que controla um pequeno semáforo.  Se eu já não tivesse um pouco de moeda chilena comigo teria passado sufoco ali com dificuldade para pagar o pedágio…
O túnel é uma descida interminável e muito gelada, esfriando ainda mais à medida que se avança cada metro.  Lá fora estava fazendo cerca de 20° quando entrei.  Já no meio da descida naquele tubo infinito fazia 8° e o frio aumentava cada vez mais.  De volta à luz, uma fila em sentido contrário aguardava minha saída para então subir túnel adentro.

Eu havia feito o pagamento do pedágio meio apressado e senti que o dinheiro estava bem na beirada do bolso da calça, tinha entrado pouco e poderia cair.  Seguia pela habitual pista chilena de excelente qualidade.  Mas não havia acostamento, não tinha como parar para arrumar a grana no bolso.  Segui quilômetros e quilômetros com a perna imóvel até encontrar a entrada de uma fazenda onde parei e pude então resolver o acondicionamento da grana para relaxar a perna.



Batalha por hotel

Chegando na cidade de Temuco dei início à procura do hotel que havia reservado.  Pus no GPS o endereço e lá fui eu certo de que em breve estaria de banho tomado e roupa trocada, almoçando em algum restaurante.  Mas o GPS me levou a uma rua onde não existia o hotel.  Dei uma segunda volta no quarteirão e nada.  Eu havia feito a reserva pelo Booking.com mas chegando lá vi que naquele endereço não tinha esse hotel.  Iniciei então uma busca por outro hotel.  Se tem uma coisa que me chateia numa viagem como essa, desse tamanho, é ter de achar hotel todo dia.  Para a moto, salta, tira capacete, entra e pergunta, volta, bota capacete, anda, para e começa tudo novamente até achar um que tenha garagem e com preço aceitável.  É um saco!  Por isso eu costumo usar o Booking.com na véspera, antes de sair da cidade onde estou.  As vezes não se encontra um bom preço, mas na maioria das vezes dá certo.  O risco é que é preciso dar o número do cartão de crédito como garantia, acho que para evitar trotes.  Se você não aparece e não avisa cobram uma diária.  No meu caso que só ia passar um dia em Temuco, se não avisasse ao Booking a tempo pagaria dois hotéis naquela mesma noite.  Mas graças a Deus mais tarde tudo se resolveu com uma ligação (Skype).  Dia seguinte Osorno era meu destino.  Havia a troca de pneus agendada para aquela cidade.  Assim que acordei segui para Osorno.  Fazia frio naquela manhã em Temuco e já saí preparado, evitando ter de ir me abrigando aos poucos pela estrada.
Minha parada em Osorno tinha como meta a troca dos pneus.  Como não havia feito reserva prévia, assim que entrei na cidade iniciei a habitual busca por hotel.  Mas creio que por impaciência fiquei logo no primeiro.  Depois de descarregar as bagagens da moto decidi sair para fazer o serviço na MotoAdventure, que vim a descobrir depois que na verdade é uma concessionária da BMW em Osorno.  O endereço da loja estava guardado no fundo de uma mala e me daria muito trabalho para pegar então pedi ajuda à recepcionista do hotel que ligou para o auxílio à lista telefônica.  De posse do nome da empresa obtivemos os dados.  GPS novamente em ação e em dez minutos eu estava entrando na loja.

Acertos feitos, eu aguardava que o funcionário levasse minha moto para a oficina quando vi
 chegar um casal em duas motos iguais, GS Adventure como a minha.  Entraram no recinto onde eu aguardava e começaram a tentar uma conversa com a atendente em busca de hotel.  A conversa não fluía pois ela aparentemente só falava espanhol e eles tentavam no inglês.  Ela ligou para um hotel e tentava passar o valor para eles aceitarem ou não.  Mas isso em espanhol e eles respondiam em inglês e conversavam entre si na língua deles que me pareceu alemão.
Mas a coisa estava empacada.  A atendente com o telefone ligado com o hotel, que esperava por uma resposta e o casal que titubeava em aceitar o que não estava compreendendo.  Diante daquilo, eu que mal falo tanto o inglês quanto o espanhol me senti na obrigação de participar daquela Babel.  O básico dá para eu entender, coisas como número etc.  Então eu fui passando em inglês para o casal o valor que a atendente falava em espanhol.  No final aceitaram, agradeceram minha intervenção e iniciamos uma conversa, aí sim digna de Babel.  São Branko e Ingrid Pokorny, holandeses que em Antuérpia botaram as motos em um container e as desembarcaram em Miami.  De lá seguiram para o Alasca, desceram pela América central e estavam agora indo para o Ushuaia.  Depois vão subir em direção ao Brasil e então seguir para Buenos Aires, seu destino final.
Indicaram-me exatamente o mesmo pneu que estava botando na minha moto, era o que eles também usavam.  Conversamos ainda um pouco e ficamos de nos encontrarmos mais tarde, depois de deixarem as bagagens no hotel.  Mais uma vez deixei passar outra oportunidade de fazer fotos.  A Ingrid ainda chegou a fazer algumas e o Branko me mandou duas por e-mail.

Pneus trocados, balanceados, segui para o hotel e relaxei.  Meu medo nos últimos dias era exatamente não dar certo, por qualquer motivo, essa troca de pneus.  Na situação que eu estava era realmente fundamental para o desenrolar de minha viagem.


túnel Las Raices
pista sem acostamento
Branko e eu na concessionária BMW de Osorno, Chile

Alimentação difícil

Vou voltar um pouquinho no tempo para comentar uma coisa que ocorreu por um longo tempo:  desde que voltei ao Chile, vindo de Moquehue, que enfrentei dificuldade para me alimentar.  Não encontrava restaurantes, só lanchonetes.  Acho que eles são mais escondidos em Temuco e Osorno.  O fato é que fui obrigado a recorrer às praças de alimentação de shoppings.

Em Temuco foi aquele sufoco para tentar achar o hotel que o endereço não existia então terminei ficando numa hosteria familiar.  Funciona como um hostel normal, mas na verdade é um anexo da casa da proprietária.  São vários quartos numa respeitável edícula no fundo do quintal.  Só que a determinada hora a senhora se fecha na casa e não temos mais comunicação com ela, apenas no dia seguinte quando o café é servido na copa da casa principal.  As chaves dos quartos e do portão da rua ficam com os hóspedes todo o tempo.  Eu fui parar nessa hosteria por um equívoco.  Quando vi que não seria mais possível achar o tal hotel onde havia feito a reserva pelo Booking.com, pesquisei no GPS e o botei para me levar para um hostel chamado Pewmanruka, localizado na calle Francia.  Segui pela cidade seguindo as orientações e quando ele me indicou a chegada vi que o nome era Hosteria Paris, diferente do que constava no GPS.  Mas isso já me aconteceu várias vezes e não faz diferença alguma no final.  O importante é o lugar para ficar.  Parei a moto e fiz o check in.  Tomei um banho e fui dar uma volta a pé para tentar comer alguma coisa.


Ainda estava claro mas já era tarde, cerca de oito horas.  Tentei chegar a uma rua onde achei que tinha visto vários restaurantes mas não a encontrei.  Haviam várias placas indicando um tal de Portal Temuco e fui seguindo imaginando ser um centro ou um bairro.  Na verdade era um shopping desses que têm um supermercado em baixo.  Decidi investir ali mesmo e aplacar a fome que já me consumia.  Afinal a última coisa que eu havia ingerido tinha sido o café da manhã em Moquehue e aquela garrafa de água que eu comprei na rápida visita a Villa Pehuenia.

Achar a porta de entrada desse tal Portal Temuco foi uma dificuldade.  O negócio é escondido, não é como os nossos shoppings que têm portas amplas e às claras.  Acho que pelo clima eles fazem projetos pensando já no inverno ou então eu entrei pelos fundos.

Não consegui nada de bom e terminei no velho e certo McDonald’s.  Depois de comer percebi que somente a praça de alimentação ainda funcionava, no resto do shopping estava tudo fechando, eram nove horas.  Saí em busca da entrada para o supermercado que fica em baixo.  Eu queria comprar uma garrafa de água mineral para passar a noite.  No Chile eles bebem água da torneira numa boa, mas os sites de turismo sempre advertem para que evitemos esse costume pois nunca se sabe como nossos organismos irão reagir por não estarem habituados à essa prática.

Não achei a entrada do mercado.  Saí do shopping e já estava bem gelado lá fora.  Rodei tudo, dei uma volta no prédio e não vi a entrada.  Só os carros saindo.  Ainda pensei em entrar por ali mas depois pensei que seria mesmo barrado lá na chegada à loja.  Então decidi procurar um bar ou alguma mercearia, qualquer lugar onde eu pudesse comprar uma garrafinha de água mineral.  Rodei as ruas próximas e os quarteirões vizinhos ao meu e nada.  Todos os estabelecimentos, mesmo que de outros ramos de comércio estavam fechados.  Vi acesa ao longe uma geladeira dessas automáticas com latas de refrigerante.  Me aproximei e vi que estava dentro de um hospital que também me pareceu fechado, não havia movimento nenhum e tinha as portas de grade abaixadas por fora do blindex.  Vencido voltei à hosteria.  Fiz o caminho de volta ainda com redobrada atenção.  Já me aproximando, vi que o hostel que o GPS me indicava estava lá, na verdade duas casas adiante da que eu parei.  Eu havia era errado de estabelecimento e não o nome que foi alterado.  Quando finalmente cheguei em frente da hosteria correta, percebi que exatamente ao lado, no sentido oposto ao que saí, havia um restaurante.  Passei direto e fui me dirigindo à porta do mesmo mas também já estava fechado.  Fiquei intrigado e na dúvida se o mundo tinha acabado e só tinha sobrado eu,  era muita desolação.  Conformado com minha sorte usei minha chave no portão e entrei na hosteria.

Já dentro do terreno, enquanto caminhava ao lado da casa principal para chegar ao meu quarto vi pela janela da cozinha que haviam duas mulheres usando a pia.  Lembrei-me da minha garrafinha de água que havia comprado em Villa Pehuenia e que mesmo depois de vazia eu a havia prendido na moto para aguardar um local apropriado para descartá-la.  Era a minha chance!  Acelerei o passo, peguei a garrafa e voltei até a janela onde elas estavam.  Bati e pedi se poderiam me ceder um pouco de água.  Sorriram educadamente e uma delas esticou o braço e pegou a garrafa de minha mão.  Destampou, abriu a torneira, encheu, tampou e me devolveu.  Parece piada… E de mau gosto…


Na manhã seguinte lá estava eu de volta à Ruta 5, rodovia que me acompanhou desde outubro no norte do Chile ainda lá pela região do Deserto do Atacama.  Agora cerca de 2500 km mais ao sul, em direção a Osorno para tentar finalmente trocar os pneus da moto.



Um desvio com pedigree

Meu mais recente amigo, o internacional Hugo Plotkin, havia me recomendado conhecer Frutillar, uma pequena cidade entre Osorno e Puerto Montt, meu destino atual.  Posso dizer que se fiz um desvio que valeu a pena foi esse para conhecer Frutillar.  Que cidadezinha encantadora!  Na entrada a coisa é um tanto feiosa, mas depois que se chega ao lago o panorama muda completamente.  É uma mistura de  Lago di Como com Baden-Baden.  Teria sido uma pena não ter ido até lá.  A imagem do vulcão Osorno junto com o lago é de jamais se esquecer.  Gastei menos de duas horas por lá e foi um tempo muito bem empregado.  Essa parte bonita é uma espécie de bairro às margens do Lago Llanquihue chamada de Bajo Frutillar.  A cidade foi fundada em 23 de novembro de 1856 por colonos alemães.  Apesar da atividade agrícola e da agroindústria local, Frutillar tem tradição musical também.  Nessa parte à beira do lago existem vários adornos, esculturas e vitrines com motivos musicais.  Não sei se a cidade foi maquiada para comemoração de seu 156º aniversário que aconteceu cinco dias antes de minha passada por lá, mas a impressão de esmero na manutenção de tudo foi impressionante.  Conhecendo um pouco da cultura alemã, sinceramente creio que tudo é sempre assim por lá.

Valeu amigo Hugo, boa dica!



Frutillar

Seguindo pela água

A entrada em Puerto Montt foi tranquila.  É uma cidade muito interessante, arrumada, conservada, diria mesmo até bonita.  Afinal é a capital da X região, a Região de  Los Lagos.  Teria dois dias para conhecer melhor já que meu embarque só seria no dia 30 e ainda era dia 28 de novembro de 2012.  Dei uma pequena volta pela cidade e fui em busca do hotel onde tinha reserva feita através do Booking.com.  Hotel Seminario na Av. Seminario.  Fácil!  Mas apesar de muito bem ajeitado, com bom preço, boas instalações, boa cama de casal, tv led, excelente calefação, banheiro amplo e tudo limpo ou seja: muito bom apartamento.  Mas apesar disso tudo fica numa ladeira tão acentuada que é quase impossível deixar a moto sozinha, sem ficar em cima dela acionando o freio e dando equilíbrio ao conjunto.  E não tem calçada!  Isso mesmo, não tem calçada do lado do hotel.  Só há uma estreita calçada do outro lado da rua e mesmo assim não passa de 60 cm de largura.  É uma movimentada via de mão dupla o que dificulta ainda mais para quem vai parar no hotel.  Eu tive de subir e descer duas vezes estudando a situação até decidir como fazer.  Havia uma caminhonete usando o ínfimo recuo em frente ao hotel.  Como esse recuo não era suficiente para abrigar todo o veículo, me possibilitou para atrás dela e ficar “na sombra” em relação ao fluxo da rua.  Parei a moto engrenada e fui pedir para abrirem o portão da garagem.  O negócio é tão íngreme que fiquei com receio de entrar subindo e fui até a curva acima e fiz a volta para acessar a garagem descendo.  Se não fosse por essa condição (e levando em consideração de que estava no Chile), eu daria nota dez para o custo benefício do Hotel Seminario de Puerto Montt.  Paguei US$ 98 por duas diárias (R$ 210,00).

A cidade é muito agradável.  Ruas amplas e bem cuidadas.  Tem uma praça super badalada na beira do mar.  Na verdade a cidade toda está voltada para o mar, o próprio nome já diz ser uma cidade portuária.  Fez sol a maior parte do tempo mas isso não quer dizer que não estivesse frio.  O mais quente que peguei por lá foi uma tarde que fez 15°c.  Na maior parte do tempo fazia algo perto dos 11 a 13 durante a tarde.  Depois naturalmente a temperatura ia caindo só voltando a esse ponto na tarde do dia seguinte.  Mas isso não era o mais chato.  O vento é que incomodava.  Ele sim era muito frio.  Mas pode estar parecendo que não gostei da cidade: impressão errada.  Eu realmente gostei muito de lá.  Só que nem tudo é perfeito…  Lembro que numa tarde estava passeando e passando pela praça, me abrigando do vento gelado, e vi uns estudantes de camisa do colégio tomando sorvete.  Olhei com mais atenção e vi que todos ali estavam vivendo um dia de verão.  Carrocinhas de picolé e outras guloseimas.  As crianças menores brincando com bolas, os um pouco mais velhos correndo e brincando, os adolescentes em pequenos grupos conversando e os idosos tomando sol sentados nos bancos.  Eles viviam ali um dia de pleno e alto verão.  Mas seria mesmo possível, eu não estava sonhando?  Eu ali com frio do cão e eles tomando sorvete?  Acho que eles devem ter feito transfusão com sangue de pinguim!


No dia seguinte fui caminhando até o escritório da Navimag, empresa de navegação que me levaria de Puerto Montt a Puerto Natales.  Longe, muito longe.  Mas me senti bem de ter feito aquela caminhada, estava devendo
 ao meu esqueleto essa pequena e breve atividade.  Soube lá o horário para me apresentar no dia seguinte e o portão que deveria entrar com a moto. 

Na sexta-feira lá estava eu entrando no porto em direção ao navio no qual passaria quatro dias, cruzando mares internos, uma parte externa no Pacífico, glaciares e estreitos canais de fiordes, para então desembarcar em Puerto Natales.  Quando entrei no porto uma fiscal veio puxar conversa sobre esse estilo de vida.  Ela disse que também gostaria de levar a vida assim como eu, essa vida de viajante.  Achei engraçado como o que pode parecer tão normal para uns é visto com tanta admiração por outros.  Eu estava ali esperando o meu momento de ser chamado pela administração portuária para então iniciar o procedimento de embarque.  No decorrer de nossa conversa ela me perguntou se eu já tinha passado pela Romana.  Não compreendi bem e pedi para que ela repetisse a pergunta.  Novamente perguntou se passei pela Romana.  O que é Romana?  Foi difícil entender mas depois de alguns minutos vi que se tratava de uma balança.  Como disse que ainda não tinha feito nada, estava apenas esperando instruções, ela me orientou a ir na Romana 2, que fica no outro lado do pátio do porto.  Liguei a moto e fui lentamente andando pelo porto até que avistei uma placa “Romana 2”.  Fui me aproximando e vi enormes caminhões em fila para serem pesados.  Tomei meu lugar naquela fila e em poucos instantes estava como uma formiguinha entre elefantes, com caminhões adiante e atrás de mim.  Algumas dezenas de minutos depois era a minha vez de subir na balança.  Assim que parei a moto o operador me mandou sair de cima da plataforma para pesar apenas a moto, sem a adição do meu próprio peso.  Feito isso ele imprimiu uma ficha de controle para ser entregue na administração.  A moto sem mim deu 340kg.


O tempo embarcado é quase todo preenchido por emoções das obras de Deus (ou da natureza para os mais incrédulos).  É realmente inimaginável, só estando lá para conferir.  Foi caro mas com toda certeza valeu!  Lembro que quando fui comprar minha passagem li em algum lugar que era considerado ou eleito por alguma entidade o cruzeiro mais bonito do mundo.


Desembarcando em Puerto Natales fui procurar o Hostel Melinda onde havia feito reserva.  Difícil tarefa então pedi ajuda num posto de gasolina.  O frentista não conhecia mas um cara da TvRed que estava abastecendo a viatura disse que me levaria até lá.  Merrrmão!!!!!  O que é isso?!?!?!  Uma espelunca, fiquei com medo da minha moto enferrujar toda só de estar parada em frente e saí rapidamente dando uma desculpa esfarrapada com receio de pegar um tétano.  E  ainda me seriam cobrados US$ 126 por três diárias!  Resultado: estava literalmente na rua, tinha de achar onde ficar o mais rápido possível.  Passei em frente ao Hotel Martin Gusinde, um bom hotel.  Parei, fiz preço, chorei e fiquei.  Mas também fiquei espalhado num quarto melhor que aquele de Puerto Montt.  A calefação chegava a fazer calor.  Um verdadeiro paraíso naquele universo gelado.


Tomei um gostoso e civilizado banho, bem diferente dos que tomei no navio onde era necessário ficar apertando toda hora com a lateral do joelho o botão para sair água.  E lá a água é muito quente para meu gosto.  Não há controle de temperatura e apesar de ser friorento não gosto de banho muito quente.


Depois do banho fui dar aquela básica volta de reconhecimento.  Procurei pela agência indicada pelo pessoal da Navimag e contratei um Tour Full Day para o dia seguinte.  As sete e trinta estariam me pegando no hotel.


Hotel Seminario (sem calçada no lado do hotel) 

repare no peso da moto: 340k
aguardando no porto para embarcar no navio

apesar do frio um instante de sol.  Repare no canto direito da foto uma figura “quarando” aproveitando o sol

Puerto Natales

Tour Full Day

Alguns meses antes (em final de julho e começo de agosto) estive no deserto do Jalapão.  Até decidir optar por um guia, a cada saída ficava todo sujo, empoeirado, e batendo cabeça sem encontrar os lugares certos das atrações locais.  Para evitar passar pela mesma situação assim que cheguei em Puerto Natales comprei um tour Full Day para conhecer as maravilhas das redondezas.  A experiência com a senhora Sonia em Moquehue tinha sido boa, objetivando bastante a coisa.  Achei que seria muito mais proveitoso ir numa van com quem já conhece do que ir sozinho de moto.  E realmente foi, a ajuda do guia Huber, Uber, Hueber, sei lá… não consegui guardar (aprender) o nome dele, só o sobrenome que é Da Silva.  Como ele mesmo diz: tem de ir conhecer o Brasil pois tem nome de brasileiro.  Pois bem, com a ajuda do Da Silva fomos apresentados às fantásticas atrações do sul chileno, mais precisamente da região do Parque Nacional Torres del Paine.  Eu fui o penúltimo a ser abduzido pela van.  Ela ia de hotel em hotel pegando cada um dos nove turistas que compuseram o passeio junto com o Da Silva e o Marco (motorista).

Passamos em vários locais interessantíssimos.  Cova del Milodon, diversos lagos, vimos uma região com muitos Condores, uma outra parte repleta de Guanacos, rios, cachoeiras, montanhas rochosas etc.  Paramos para um café numa parada de 15 minutos.  Comprei apenas um café.  Dali fomos para o Parque Nacional, onde estão as tão famosas Torres del Paine.  Depois quando tudo já estava mais que visto e fotografado fomos nos encaminhando para um restaurante onde faríamos a parada de almoço.  Mas lá é tudo distante, quilômetros e quilômetros entre uma coisa e outra, levando as vezes trinta minutos ou mais pelas estradas de rípio (todas) para chegar na próxima parada.


Aí aconteceu o que eu nem me lembrei mas que seria mais do que certo de acontecer… onde eu estava com a cabeça quando comprei esse tour?  Claro, eu sou assim há 55 anos: simplesmente enjoei.  Comecei a ficar com aquela sensação de suor frio e a boca “aguando”.  Vi que um final trágico estava iminente.  Chegamos então no restaurante.  Parada de 45 minutos.  Entrei, peguei o cardápio, li um pouco… mas minha fisionomia não devia estar das mais amistosas e o Da Silva veio falar que poderia pedir a la carte ou o buffet etc.  Foi quando eu disse a ele que estava “mareado”.  Achava melhor nem botar nada no estômago.  Ele me recomendou ir lá pra fora respirar bastante ar, aquelas coisas que sempre se fala numa situação dessas.  Mas o meu medo, ou melhor, o meu pânico era que eu sabia que ainda estávamos no meio do dia e eu ali a léguas de distância do meu hotelzinho.  O que eu ia fazer da minha vida???  Pensei em pedir carona em alguma outra van que estivesse voltando direto para a cidade, mas mesmo assim eu estava longe e não resistiria por muito mais tempo.  Fui a uma pequena lojinha do lado de fora do restaurante e expliquei ao cara o que estava acontecendo comigo, perguntei se ele teria algo para me ajudar.  Ele recomendou um chiclete pois segundo ele o fato de ser doce ajudaria.  Comprei e cheio de medo comecei a mascar um.  Claro que não fez efeito nenhum.  Procurei os banheiros e vi que ficavam distantes, bem retirados dali o que me dava bastante condição de privacidade.  Fui então para lá na intenção de antecipar o que seria inevitável no decorrer do nosso tour.  Fiz até força para acontecer, mas estava com o estômago vazio e nada aconteceu além de umas cuspidas no vaso.  Sai do banheiro desolado, o que eu ia fazer agora?  Voltei caminhando para o restaurante.  O Da Silva estava lá fora e me perguntou como estava.  Diante da minha resposta ele decretou que eu iria no lugar dele, no banco da frente.  Isso realmente surte efeito comigo.  Parece coisa de menino mimado, mas desde garoto que se eu ando no banco traseiro eu enjôo.  Só que ali eu já estava enjoado.  A coisa funciona para que eu não fique enjoado porém eu já estava.  E muito!  Claro que aceitei.  Venci meu constrangimento de destronar e afastar o guia de seu lugar, junto ao microfone e em lugar de comando para tentar evitar constrangimento maior.  Quando entramos ainda brincamos que a partir dali teríamos novo guia etc.  Mas apesar da encenação a situação não era nada descontraída para mim.  O fato é que eu consegui controlar um pouco o negócio.  Não melhorou, mas também não foi naquele crescente habitual que eu já tão bem conheço.  De vez em quando dava aquela apertada e eu fechava os olhos, respirava fundo e pedia a Deus que me ajudasse.


E fomos assim, a cada nova atração parávamos, saltávamos, tirávamos fotos, e voltávamos cada um para o seu lugar: o Da Silva no penúltimo banco e eu no da frente.


Até que chegamos na área da visitação ao lago Grey.  Nessa parada o Da Silva não nos acompanhou.  Nos levou até uma espécie de púlpito com um mapa afixado a ele e explicou todo o nosso trajeto.  Era necessário caminhar por uma hora.  Passaríamos por uma ponte molenga sustentada por cordas, dessas de filme das selvas, por uma trilha que nos levaria até o início da praia, de onde depois caminharíamos até a sua outra extremidade.  De lá poderíamos ver o famoso glacial Grey.  Além (naturalmente) dos icebergs boiando no lago Grey.  Na verdade já era possível vê-los desde o início da caminhada na praia.


Logo que cheguei na ponte havia uma placa que alertava para o máximo de 6 pessoas.  Outros turistas atravessavam a ponte e achei prudente evitar um banho naquela temperatura.  Esperei ela esvaziar e dei início à minha travessia.  A bicha foi balançando muito e no meio deu um ventão que eu pensei que ela não ia resistir. Mas felizmente passei e comecei então a caminhada pela trilha.  O Da Silva tinha dito que teríamos trinta minutos para ir e mais trinta para voltar.  Já não uso relógio há quase um ano, mas na minha cabeça era só acompanhar o grupo que tudo estaria sob controle.  Mas o negócio é longe, muito longe.  Haviam muitas vans e muitos ônibus no estacionamento, o que indicava que também seriam muitos turistas por lá.  Dito e feito.  Na praia eram vários grupos, uns ainda indo e outros já voltando.  Chegou num ponto em que eu já não sabia mais quem era quem, qual era o meu grupo.  Eu andava e andava e o fim da praia nunca chegava.  Eu levava comigo de um lado a bolsa com a máquina fotográfica e a filmadora.  Do outro uma garrafa de água mineral que eu havia trazido já imaginando sentir sede numa situação dessas.  Parece pouca coisa mas àquela altura tudo isso já pesava uma tonelada.


E o fim da praia não chegava.


Eu enjoado, andando que nem um condenado numa praia fofa feita de pedrinhas, há pelo menos 30 minutos, ventando pra cacete, frio pra cacete, o que mais de ruim poderia acontecer pra piorar?

Conta aí até três.  Isso mesmo conta até três… contou?  Um, dois, três.  Pois é: foi esse o tempo que levou para vir galopando lá dos infernos uma nuvem e começar a chover.  Quando dei por mim eu estava sozinho na praia, todo mundo já tinha voltado e o retardado aqui ainda andando no sentido contrário.  Fiz meia volta e iniciei todo o martírio de andar tudo de novo.  A bolsa e a garrafa de água já pesavam agora uma tonelada cada uma.  Na saída para o início da caminhada o Da Silva alertou para não esquecer de proteger os ouvidos do vento frio mas o capuz do meu casaco não parava no lugar.  Estava tudo uma beleza!!!  Andei, andei e andei.  Só me dei conta que na ida a trilha foi em descida agora na volta quando me deparei com ela em subida.  Enjoado, com frio, no vento, chovendo e subindo carregado, que ótimo.  Melhor impossível.  Quando finalmente cheguei na ponte vinha um monte de gente vestida com aquelas capas de chuva náuticas amarelas.  Umas quinze ou vinte pessoas.  No barato!  Alegres, dando rizadas e brincando entre eles.  Tudo retardado!  Para estar sorrindo numa situação daquelas só retardado.  Esperei um pouco do meu lado para ver se eles iam se dividir em grupos e me dar a chance de cruzar antes do batalhão acabar a travessia.  Mas como vi que isso não ia acontecer fui caminhando e a ponte balançando ainda mais.  Eles paravam para tirar fotos, fingindo cair da ponte e eu ia ficar ali esperando aquilo acabar?  Aos poucos eles iam se deslocando metro a metro.  Eles vindo e eu indo.  No meio do caminho olhei para frente e vejo o Da Silva me olhando com cara de apavorado.  Os olhos pareciam maiores que o próprio rosto dele.  Sabe aquilo que acontece em desenho animado?  Que o olho sai do rosto e fica grandão?  Pois é, foi essa a impressão que eu tive…  Quando passei por ele falei “I’m the last one…”  Ele respondeu: “Don’t worry”.  E veio caminhando atrás de mim até a van.  Estava mais do que consolidada a minha condição de ancião prejudicado e sob cuidados…  Entrei na van e nem olhei para os que estavam na parte de trás.  Fiquei calado por pelo menos 40 minutos.  Só fui falar quando eles fizeram mais uma parada para fotos.  Ao abrir minha porta a garrafa que estava no meu bolso caiu fazendo um barulhão no estribo do carro.  O Da Silva correu pensando que era eu que estava caindo eu acho.  Olhei para ele ainda sentado no carro e ele desconversou disfarçando dizendo que pensou que tinha sido a máquina fotográfica que havia caído.  Ele pensou é que era eu que estava desmontando mesmo…


Da Silva e uma turista do México

Condores

Guanacos
Cascata Del Paine
Torres Del Paine

Lago Grey

Onde o vento não fez a curva

Dia seguinte, ainda em Puerto Natales antes de seguir para Punta Arenas, fui a uma agência dos correios e enviei para o Brasil um pouco do meu excesso de bagagem.  Coisas que já não usaria como roupas para temperaturas mais altas etc.  Se na volta quando estiver subindo para latitudes menos negativas sentir falta dessas tralhas dou um outro jeito e resolvo a situação.  O que não dá é para ficar levando tanta coisa que só faz a moto ficar pesada e instável nos caminhos sem asfalto.

Resolvida a remessa fui para o hotel, paguei e deixei Puerto Natales.

Boa estrada, bom asfalto mas muito vento, muito!  Incrível a força que o vento exerce sobre a moto (e sobre mim!).  Quando é lateral faz com que a moto vá o tempo todo inclinada ao contrário, compensando a pressão dele.  Frontal a coisa é um pouco alternante: ou faz força oposta ao motor, diminuindo a velocidade, ou fica oscilando de um lado para o outro, mas sempre frontal.  Isso faz com que a cabeça da gente fique igual àquele braço do boneco do posto: sem controle balançando de um lado para o outro.  Delicioso…
Há momentos em que você não sente o vento mas isso não significa que ele não esteja lá.  É que está vindo pelas costas.  E isso causa um efeito ainda mais perigoso pois faz com que a moto freie menos e ande mais rápido sem você sentir ou querer.  Houve uma hora em que o vento veio por trás e aconteceu uma coisa impressionante:  eu estava a uns 120 ou 130 km/h e senti a minha cabeça sendo empurrada para frente.  Sabe quando a garupa bate capacete contra capacete e te empurra para frente?  Pois é.  A 130 km/h o vento vinha com rajadas que empurravam minha cabeça para frente.  Que velocidade seria essa?  Chega a ser assustador…

Já quase chegando em Punta Arenas fui parado por dois Carabineros que estavam medindo a velocidade dos veículos na rodovia com um radar de mão.  Me mandaram encostar e o que estava com o radar disse logo que eu estava a 113 km/h.  Eu já havia diminuído a minha média em virtude do vento, estava perigoso ir mais rápido.  O segundo policial veio então me pedir os documentos.  O do radar alertou que não deveria ir tão rápido porque o vento poderia me lançar fora da estrada.  Confesso que achei um exagero mas aproveitei para concordar dizendo que ele veio por trás empurrando meu capacete para frente, e inclusive a todo momento eu tinha de reduzir porque ele me fazia ir mais rápido do que eu pretendia.  Claro que isso foi já uma tentativa camuflada de justificar meu excesso de velocidade.  Aquele trecho da rodovia era de 100 km/h e segundo eles eu estava a 113.  Comentei sobre a força do vento que eu jamais havia visto coisa assim, que no Brasil esse vento não existe.  Voltaram a me alertar que ele poderia me derrubar ou me lançar fora da estrada.  Mais uma vez fingi acreditar, mas eu estava mesmo era preocupado em parecer um tanto refém daquele vento e dos efeitos dele para minha condução acima do limite de velocidade.  Depois de um papinho com eles perguntei: o que vocês querem mesmo, meu passaporte?  Me mandaram seguir, escapei dessa…


Entrei em Punta Arenas e como de costume fiz aquele meu pequeno tour de reconhecimento inicial.  Mas o danado do vento não me deixava em paz, estava lá o tempo todo atrapalhando meu equilíbrio.  Resolvi então seguir para o Hostal Patagonia pois tinha reservado duas diárias a US$ 134 as duas.  Parei a moto no canto da rua e botei o hotel no GPS.  Andei cerca de 50 metros e um semáforo vermelho me fez interromper a marcha.  Quando já ia parando veio um vento tão forte que vi uma mulher na esquina, tentando andar para frente, totalmente inclinada, e sendo empurrada para trás.  Impressionado observei isso por poucos segundos pois foi o tempo necessário para esse mesmo vento me derrubar.  Fui ao chão eu e a moto.  Imagina você parando no sinal e duas pessoas te empurram a moto de lado.  Mas não é empurra e para não!  É empurra, e empurra, e empurra.  Constante, sem interrupção até você cair.  Parecia que tinha uma corda amarrada no guidão da moto e um carro saiu puxando para o lado.  Impressionante.  Caí estatelado.  Dessa vez, ao contrário do tombo na areia chegando em Villa Pehuenia, doeu… Achei que tivesse quebrado a mão direita.  Doía muito.  Atrás de mim vinha um pequeno caminhão com três pessoas que imediatamente saltaram e vieram me acudir.  Deve ter sido bonito de ver de camarote como eles viram.  Eu caí apartado da moto, um metro eu acho.  Fui meio que lançado de cima dela.

Os caras correram para mim e enquanto eu me levantava dizia que nunca vira um vento desses.  Pedi ajuda para erguer a moto, agradeci e saí com extrema cautela e atenção.  Mas ainda com a certeza de que alguma coisa de ruim tinha acontecido com a articulação da base do meu polegar direito.  Doía muito, e a unha do mesmo dedo também doía.  Virei a esquina e lá estava meu hotel.  Parei no cantinho da rua, junto ao meio fio e fiquei um tempo ali, “curtindo” a dor e esperando melhorar um pouco antes de entrar.  Naquele momento tive plena convicção de que minha viagem estava acabando ali.  Bom e contumaz conhecedor da dor de uma fratura, intimamente imaginei que estava ali mais uma vez aumentando minhas estatísticas.  Lembrei do meu amigo Gilson Miranda que também interrompeu uma viagem à Ushuaia por uma situação de queda.  Foi aí que me veio à mente o alerta dos Carabineros na estrada a respeito da força dos ventos.  Nunca se deve desprezar a experiência alheia…

Depois de assumir meu quarto no hotel, saí para dar uma volta a pé, precisava cortar meu cabelo pois já estava fazendo mais de dois meses que havia saído de casa.  O vento realmente faz parte do cotidiano daquela cidade, mas aquele dia era um dia especial.  Comprovei isso no dia seguinte pelos diários que traziam a notícia de rajadas de até 140 km/h.  Eu mesmo passei, a pé, pela mesma situação daquela mulher que me tirou a atenção na esquina que caí.  Em mais de um momento fui empurrado para trás e as vezes com a nítida sensação de que seria derrubado.  Mais uma situação que não dá para descrever, só ao vivo.


Antes de descer do hotel para dar essa caminhada passei um Gelol na articulação da mão que ainda estava doendo.  Cheguei realmente a me conformar achando que minha viagem estava acabando ali.  Mas depois de mais ou menos uma hora a dor foi amenizando até que passou a só incomodar quando tocava na articulação atingida.  Por mais de uma semana ainda doía quando encostava no local, mas felizmente e graças a Deus não atrapalhou em nada na condução da moto.


No dia seguinte peguei um “colectivo” e fui conhecer a Zona Franca de Punta Arenas.  Para quem está habituado a visitar  Ciudad Del Este no Paraguai, essa zona franca não tem vantagem nenhuma.  Mas valeu como curiosidade e conhecimento.  Na saída peguei um taxi para voltar ao hotel e pedi ao motorista que antes me levasse até a estação do buque que vai para Porvenir.  No dia seguinte teria de estar lá e para evitar possíveis imprevistos já queria entender e conhecer o local.  Ao contrário da travessia pelo norte da Terra do Fogo que é ininterrupta, aquela de Punta Arenas só ocorre uma vez por dia.  O motorista ainda me orientou a estar 45 minutos antes da hora da saída da balsa para comprar o bilhete.  Foi bom esse alerta, porque quando cheguei havia fila na bilheteria e foi o tempo de eu comprar e embarcar com a moto.

O tal do “colectivo” nada mais é do que um taxi que vai fazendo uma linha fixa, mantendo o itinerário, e lotando de passageiros como num ônibus.  Funciona como um ônibus, tem o numero afixado na capota com o itinerário e vai parando, pegando e deixando passageiros.

No hotel pedi ao recepcionista que ligasse para o Hotel España em Porvenir e fizesse minha reserva.  Resolvido isso, no dia seguinte lá estava eu embarcando no barco com destino àquela cidade.



O tempo e o vento

Porvenir é uma cidade é gelada, como todas aliás…  Mas o hotel é muito bem aquecido.  Quando cheguei não sabia bem se ficaria um ou dois dias por lá.  Ainda estava adiantado para minha próxima data fixa que era a segunda-feira 10 de dezembro, dia em que deveria estar chegando em Ushuaia pois naquela cidade já tinha reserva feita e paga antecipadamente.  Cheguei em Porvenir ainda na sexta-feira e poderia ficar por lá ainda mais um dia se quisesse.  Nos meus cálculos teria de pernoitar em Rio Grande no domingo para então na segunda-feira seguir para Ushuaia.

Fui dormir depois de um bom jantar, sem sequer ter saído do hotel.  No dia seguinte escrevi o texto abaixo:



“Hoje resolvi permanecer mais um dia aqui em Porvenir.  Não pelas atrações da cidade, até porque ainda nem saí do hotel desde que cheguei ontem, ainda não conheci nada.  É que está chovendo com aquele tempinho fechado, e eu imagino a temperatura lá fora…  Ontem no final da tarde fui até lá fora pegar uma garrafa de água que tinha deixado dentro da mala que viaja sobre o banco traseiro da moto e pude sentir as circunstâncias da vida real lá de fora.  O único ponto positivo nisso é que já dentro do hotel quando abri a garrafa para beber vi que a água estava geladinha.


Na internet a previsão do tempo para amanhã é de tempo encoberto porém firme.  Como estou adiantado em relação à minha reserva em Ushuaia (tenho um dia de folga) vou usá-lo agora.  A chuva em si não me incomoda em nada.  O problema é enfrentar 180 km de rípio a cerca de 6°c, num vento doido e ainda com chuva.  É muito.  Se posso evitar um dos incômodos vou evitar pelo menos a chuva.  Amanhã eu sigo para Rio Grande, voltando ao território argentino.


Como de costume a todo instante estou alterando meus roteiros.  Creio que pela enésima vez alterei meu trajeto da volta.  Já havia decidido intimamente que não iria mais passar por Montevidéu, Punta del Este etc., tampouco Buenos Aires.  Só não sei ainda ao certo por onde vou, se volto ao Chile e subo a Carretera Austral, se vou a Neuquén visitar os amigos Flor e Facu Cis que fiz em Moquehue, se vou a Osorno comprar mais um par de pneus… sei lá, ainda está tão distante para decidir agora… vou ‘deixando a vida me levar’ ”.



atravessando o Estreito de Magalhães de Punta Arenas para Porvenir

onze e meia da noite em Porvenir
onze e meia da manhã em Porvenir – a bandeirinha sempre esticada pelo vento

Reta final

Tentei sair antes das nove mas não deu.  Muitos afazeres: arrumação da bagagem, café da manhã, abastecimento, calibragem ideal dos pneus para o rípio etc.  Mas não muito após as nove eu estava entrando na Y-79, a estrada chilena da Tierra del Fuego que me levaria de Porvenir ao Paso San Sebastián, fronteira do Chile com a Argentina.  No início a estrada tem um rípio mais consolidado e apresenta um trajeto um tanto sinuoso que vai margeando a Bahía Inútil, no Estreito de Magalhães.  Essa baía recebeu essa denominação do almirante Phillip Parker King, numa exploração pela Patagônia em 1827, por não ter se prestado para nada.  Segundo ele “ela não deu nem ancoragem, nem abrigo, nem qualquer outra vantagem para o navegador”.
Depois que abandona a costa a estrada Y-79 começa a perder as características sinuosas de seu início e tende mais para trechos em retas médias e curvas suaves.  O rípio se mantém bom por quase toda sua extensão.  Poucos são os trechos em que fica mais solto.  Eles até existem, mas não chegam a dez por cento do todo.  No total são 170 km de rípio.  Até a aduana chilena são 155 km.  E depois mais 15 km até a aduana argentina.  O asfalto só inicia após os trâmites de entrada na Argentina.

Eu tinha conhecimento da existência de um posto YPF na aduana argentina de San Sebastián, mas também vinha com a informação de que ele estava desativado.  Feliz surpresa quando vi que estava funcionando normalmente.  Eu havia enchido o galão de gasolina em Porvenir como precaução porque a Flor havia me informado por e-mail que estava complicado o abastecimento em Rio Grande, sua cidade natal.  Diante desse cenário, na minha cabeça talvez fosse necessário ter combustível suficiente para ir de Porvenir até Tolhuin, cidade posterior e distante cerca de 100 km de Rio Grande.  Mas agora, com aquele posto funcionando e meus tanques cheios, havia até certa folga para chegar a Tolhuin.  O próprio frentista dali de San Sebastián me disse para não enfrentar fila em Rio Grande, deixar para abastecer em Tolhuin.


Pode parecer que é exagero ter preocupação de abastecimento numa moto como a minha que tem um tanque de 33 litros e autonomia de sobra para ir de Porvenir até Ushuaia sem precisar abastecer nem uma vez sequer.  Mas isso em condições normais.  E nem estou me referindo ao consumo excessivo causado pelo enorme sobrepeso de bagagem.  É o vento que não nos deixa ter certeza de nada, é daí que vem a constante preocupação.  O consumo fica imprevisível nessas condições.  A moto é um veículo muito suscetível a qualquer movimento do ar.  E é claro que isso interfere no desempenho e por consequência interfere também no consumo.  Nos ventos laterais daquela região ela anda tão inclinada e por tanto tempo que chega a gastar o pneu mais de um lado do que do outro.  No contravento então nem se fala.  As motos menos potentes (de menor “cilindrada”) em muitos casos mesmo indo a pleno motor não conseguem ultrapassar os 60 km/h nessas condições.  As com motores mais robustos que têm reserva de potência conseguem se manter nas velocidades desejadas, mas para compensar a influência do vento sofrem graves reflexos no consumo.  Como exemplo dessa condição menciono o vento que peguei de frente entre Santa Rosa e General Acha.  Naquela ocasião para me manter a 120 km/h tive um consumo de 12 km/l contra os habituais 19 km/l.  Mas isso foi lá para os lados de La Pampa, agora eu estava na Terra do Fogo.  A conversa em matéria de vento é outra…


Após o abastecimento quis retornar à calibragem dos pneus para os níveis indicados para asfalto.  Por recomendação do Branko para esses fantásticos pneus, eu usei 20 PSI para circular no rípio mas deveria usar 33 PSI para asfalto.  Entretanto no posto havia gasolina, isso não era problema, mas não tinha ar.  Não dispunha desse serviço, não tinha o habitual manômetro e compressor.  Incrível mas é verdade.  E é um posto YPF do ACA, Automóvel Clube da Argentina.  O frentista me indicou um borracheiro que segundo ele ficava logo na primeira curva.  Saí do posto e fui procurando o tal “taller” indicado pelo funcionário mas tinha a impressão de que ainda iria rodar muitos quilômetros com os pneus com aquela pouca pressão.  De relance vi uma placa de madeira rústica pintada a palavra “gomeria”.  Lá estava meu borracheiro.  O “estabelecimento” ficava em plano bastante inferior ao da estrada, sendo preciso fazer uma curva e descer uma rampa para alcançar sua entrada (tudo em rípio).  Entrei na propriedade com a moto e um pastor alemão preso a uma corrente anunciou minha presença.  Em poucos minutos surgiu uma figura com uma fisionomia bastante interrogativa.  Ele caminhava na minha direção e vinha olhando fixamente para os pneus da moto.  Esclareci que só queria “aire”, para encher um pouco “los neumaticos”.  O semblante do cara mudou na hora, era só isso que eu queria: “aire”?  Acho que ele estava pensando que teria de operar um milagre para saber e conseguir desmontar a roda da moto.  Mas era só “aire”, sorrisos e cara de alívio…


O cara ficou tão relaxado por não ter de “trabalhar” nos pneus da moto que acabou me levando para dentro da casa dele para me mostrar a obra que estava fazendo.  Estava terminando de transformar uma grande sala numa espécie de bar, buscando ter uma outra atividade além da gomeria.  Fez ainda questão de “sacar” algumas fotos comigo.  Gente boa a figura!

Deixei a “gomeria” e iniciei meu percurso argentino na Terra do Fogo.  Destino Rio Grande, a meio caminho de Ushuaia.


O tempo se mantinha encoberto mas não chovia.  Eu via ao longe muitas nuvens de chuva.  No lado esquerdo, sobre o mar, haviam vários e visíveis pontos de intensa chuva.  Todavia no meu caminho eu tinha apenas um céu pesado.

Cheguei na entrada de Rio Grande mas já trazia comigo há alguns quilômetros a intenção de sequer entrar na cidade.  O programado seria pernoitar ali e no dia seguinte seguir para Ushuaia.  Estava no domingo dia 9 de dezembro e minha reserva em Ushuaia iniciava no dia dez.  Mas ainda estava cedo para parar.  Fiz meus cálculos meteorológicos que me retornaram chuva iminente.  Novamente, como ocorreu na chegada a General Acha, vi que ao longe havia uma espécie de janela naquele tempo pesado.  Era tudo o que eu queria, um motivo para não parar em Rio Grande, era o momento de eu aproveitar e seguir adiante mudando meus planos mais uma vez.  Eu tinha porém o receio de chegar adiantado no meu hotel em Ushuaia e não haver vaga para mim.  Me imaginava ao relento na capital mais austral do planeta, a “um passo” do polo sul, e não gostava nada dessa ideia.  Mas decidi que valia o risco, na pior das hipóteses eu tentaria repassar o problema para o cara do hotel.  Ele não iria se limitar a dizer que não havia vaga, iria tentar uma solução, é claro.
Fui seguindo até que surgiu Tolhuin, a cidade que o frentista de San Sebastián me recomendou abastecer.  Logo avistei o letreiro da YPF.  Entrei no posto mas ninguém veio me atender.  Fiquei ali parado até que surgiu um funcionário balançando o dedo negativamente.  Não havia gasolina…

Sem opções voltei à pista e segui meu caminho para Ushuaia, a cidade que seria ao mesmo tempo meu ponto final do trajeto de ida e meu ponto inicial do caminho de volta.  Dali eu não poderia seguir adiante.  Não há adiante.  Não há alternativas em Ushuaia, é voltar ou voltar.


O planeta acaba ali…


rípio

“Gomeria”
sala onde vai ser o bar

Fin del Mundo

Depois de entender que o combustível que eu tinha na moto seria toda a minha oferta até Ushuaia, continuei meu caminho.  O que tinha seria suficiente, e ainda havia a reserva de dez litros no galão da COPEC que eu levava comigo desde a região do Atacama.  Fui tranquilo apreciando a paisagem e naturalmente sofrendo os efeitos do vento.  O caminho é inicialmente monótono, mas aos poucos a situação vai se modificando.  O ambiente vai se transformando, assumindo ares de montanha.  Subidas de serra, curvas estreitas na beira de precipícios etc.  O frio também aumenta bastante, mas em contrapartida o vento vai diminuindo.  Após o Paso Garibaldi ocorre uma mudança completa na paisagem.  A partir dali não dá para ter dúvidas de que se está na periferia da Antártica.  Nuvens baixas sobre as muitas montanhas com os cumes sempre nevados, e o frio muito mais intenso.  O visual é lindo, a estrada serpenteando e acompanhando o relevo como se fosse um acabamento, uma “bainha” daquelas encostas sinuosas.  Muitas vezes segue cortando e dividindo a natureza, como que demarcando limites com as montanhas de um lado e do outro lagos incríveis, só vistos no cinema.  Mais adiante, incrustado numa grande depressão no lado oeste da estrada, há um lago com o nome bem apropriado: chama-se Lago Escondido, que nos dá a impressão de existir apenas porque suas águas ficam ali aprisionadas naquele vale entre montanhas rochosas, verdadeiros gigantes de pedra.


Quando finalmente passei pelo portal de entrada em Ushuaia já chuviscava um pouco.  Desci a via de acesso até o centro e avistei um posto YPF.  Conhecendo a instabilidade política da Argentina quis logo garantir o abastecimento de combustível, nunca se sabe quando vai faltar “nafta” naquele país.  Depois de encher o tanque da moto procurei pelo ponto de “aire” pois aquela providencial intervenção na “gomeria” em San Sebastián não foi muito apurada e de acordo com a indicação do painel da moto ainda faltavam pelo menos quatro pontos PSI em cada um dos pneus.  Mas esse posto também não dispunha de manômetro, então me conformei com o tanto de ar que tinha no interior dos pneus da moto e segui para o hotel.

Porém nessa parada na estacion de servicio YPF percebi que algo de muito grave havia acontecido com minha coluna.  Eu estava completamente “travado”.  Para sair da moto e liberá-la para o abastecimento foi quase impossível, um enorme sacrifício.  Após abastecer foi que tive consciência da dimensão da coisa.  Era preciso subir de volta na moto mas não conseguia erguer a perna esquerda.  Só na tentativa, na contração do músculo para dar início ao movimento já era inacreditavelmente intensa a dor na região lombar esquerda.  Era tão forte que sequer conseguia tirar o pé do chão.  Tive de levantar a perna com as mãos e passá-la por cima do banco da moto.  A mesma coisa tive de fazer para tirar o pé esquerdo do chão e o apoiar na pedaleira da moto.  Não entendia bem o motivo dessa desagradável surpresa.  Não foi um trecho tão grande naquele dia, já fiz percursos infinitamente superiores.  O único diferencial do que estou habituado foi o trecho de 170 km de rípio no início do dia, o constante vento lateral e o frio de Ushuaia.  No rípio guiamos a moto quase todo o tempo de pé.  O controle fica muito mais fácil e seguro.  Se você vai sentado praticamente perde a condição de piloto e se transforma num “passageiro” da moto.  Se ela escorrega para um lado ou outro você vai junto, se estiver de pé você tem meios de “trabalhar” as pernas e restabelecer mais facilmente o domínio.  Imagine como seriam difíceis as evoluções de um skatista ou um surfista se eles fossem sentados nos seus equipamentos.  O jogo de pernas é que possibilita que o piloto vá fixo e firme na condução enquanto a moto oscila junto com o terreno.  Isso sem falar no alívio para a coluna.  Pode parecer que pilotar de pé é pior, tem-se a impressão de que força mais.  Mas normalmente só se pilota de pé no “fora de estrada”, quando o terreno é irregular.  O fato de não estarmos sentados, diretamente apoiados sobre o banco da moto impede que os trancos e vibrações advindos dos buracos, pedras etc. sejam repassados para nós.  As pernas vão semi flexionadas e amortecem essa movimentação constante da moto.  Nessas condições de terreno, pilotar de pé só favorece:  temos uma visão mais ampla do terreno que vem à frente; não somos “passageiros” da moto nas escorregadas naturais em virtude do piso; e amortecemos a movimentação e os impactos, porque nessas horas dobramos um pouco os joelhos.
É verdade que eu havia feito de pé os 170 km de rípio por mais de três horas, mas quando voltei ao asfalto sentia-me bem, não percebi efeito nocivo nenhum.  Passei ainda por dois controles fronteiriços, a saída do Chile e a entrada na Argentina.  E depois também teve o abastecimento e o procedimento de calibragem dos pneus, a visita para conhecer o interior da casa do borracheiro onde ele estava concluindo sua obra prima e queria apresentá-la.  Tudo isso depois do rípio.  Em todas essas situações saltei da moto e caminhei.  Estava bem fisicamente, não sentia nada de mal.  A coisa só apareceu em Ushuaia.

Quando finalmente cheguei no hotel é que vi o quanto estava mal, meu estado era realmente crítico.  Fui saltar da moto e não consegui, estava travado.  Foi verdadeiramente um sacrifício descer da moto, estava muito ruim a minha condição.  Com muito sofrimento a tarefa foi executada e fui falar com o recepcionista sobre minha reserva.  Eu estava chegando um dia antes do que havia planejado e reservado.  Cheguei me fazendo de desentendido e anunciei que tinha uma reserva.  Ele olhou no computador e disse: “É verdade senhor mas não para hoje, a partir de amanhã”.  Não colou, tentei de novo me fazendo de atrapalhado com as datas, mas ele foi insensível.  Tentei remanejar todos os três dias da reserva para iniciar um dia antes mas não teve conversa, a única coisa de positivo que ouvi foi que meu quarto estava vazio e se eu quisesse pagar um dia a mais poderia entrar a partir daquele momento.  Na verdade eu já vinha intimamente cogitando essa possibilidade.  Pelo meu programa original eu iria de qualquer forma ficar em algum hotel em lá em Rio Grande.  Mas com essa minha mania de ir mudando as coisas de acordo com a vontade do momento ou de outras condições externas, antecipei minha chegada em Ushuaia em um dia.  Simplesmente aceitei a oferta e assumi meu quarto no Hotel Costa Ushuaia, um bom e confortável hotel às margens do Canal de Beagle.  Paguei antecipadamente no Brasil R$ 583,00 por três diárias.  Lá no local paguei pelo dia de acréscimo.


Depois do martírio de levar toda a bagagem para o quarto, voltei à recepção para tentar arranjar um transporte para o retorno da moto até Cerro Sombrero.  Na minha cabeça eu não teria condições de suportar mais duzentos quilômetros de rípio com aquela  dor nas costas.  Não era a primeira vez que sentia essa dor na lombar.  Tenho esse problema e convivo com ele recorrentemente.  Mas sempre que surge é em virtude de algum esforço ou atividade, como por exemplo aquela tentativa de levantar a moto no tombo que levei na areia na entrada de Villa Pehuenia.  Eu me conheço há 55 anos e sei quando ela vem para ficar dois dias e quando vem para demorar mais tempo, e já tinha percebido que dessa vez seria demorado.  Estava muito intensa a dor e consequentemente era grande a limitação dos movimentos.  Eu me questionava muito como fui ficar naquele estado e só podia atribuir aos cerca de 170 km de rípio feitos de pé entre Porvenir e San Sebastián.  Uma parte dos quase 500 km rodados naquele dia.  O fato é que eu tinha absoluta certeza de que não suportaria o trajeto de volta pois agora não iria de volta a Porvenir, subiria para Cerro Sombrero e a parte de rípio é ainda maior.  O rípio em si não seria o problema, agora a moto estava se comportando bem com menos peso e com pneus apropriados.  O problema é que é um longo percurso eu precisaria fazê-lo de pé.  E no estado em que eu me encontrava até para caminhar estava complicado.


O recepcionista ficou de ver para mim algum tipo de solução.  Eu lhe pedi uma caminhonete ou um carro com uma carreta de transporte de moto.  Mas teria de ser um veículo que pudesse passar pelas aduanas argentina e chilena.  É em território chileno que fica a estrada de rípio.  Ainda ponderei que a princípio seria só uma tomada de preço e de condição pois quem sabe se até o dia da minha partida de Ushuaia eu já não estaria bem?  Estávamos no dia nove e eu só deixaria a cidade no dia treze.  Mas internamente eu tinha toda a convicção de que teria de usar esse serviço.  A parte de asfalto até o retorno ao Brasil eu encararia numa boa, iria sentado na moto.  O que eu imaginava ser difícil é ficar de pé por quase 200 km.


Subi para o quarto e fui para o banho.  Tinha uma banheira de hidromassagem me olhando no meu banheiro.  Não pensei duas vezes…


Dia seguinte, segunda-feira, ainda estava mal porém um pouco melhor que a véspera.  Não tinha certeza se era início de melhora ou apenas o fato de ter descansado.  Tentar levantar a perna esquerda ainda era para mim tarefa impossível de ser executada.  Saí para dar uma volta na cidade mas não aguentei muito tempo e voltei ao hotel.  Estava triste, mais uma vez achava que minha viagem tinha sido abalada.  Primeiro foi o tombo no semáforo em Punta Arenas que me atingiu a articulação do dedo polegar da mão direita.  Agora minha coluna estava afetada.  E em matéria de “sul” eu não poderia estar, eu e minha moto, em local mais distante.


Na terça-feira arrisquei uma proeza: peguei a moto e fui ao Parque Nacional Tierra del Fuego.  Fui ver, fotografar e estar no verdadeiro final do mundo.  A extremidade sul da Ruta 3, na Bahía de Lapataia.  Tirei de letra, mesmo com os vinte quilômetros de terra e rípio.  Voltei ao hotel mais confiante.  É verdade que um pouco mais doído do que quando saí, mas pude guiar a moto.  Os dois dias que me restavam seriam fundamentais para minha recuperação.


Ushuaia

Retorno em suspenso

Saí de casa no início de outubro, até aqui rodei de moto mais de 20000 km e ainda 2000 km de navio pelo oceano Pacífico e pelos canais e fiordes chilenos para depois de mais de dois meses na estrada chegar em Ushuaia e ficar no hotel curtindo uma dor nas costas?  Isso não estava previsto e definitivamente não é dos melhores programas.  Eu pensava em tudo que já tinha feito e por onde já tinha passado para estar ali.  Foram tantos lugares, tantas pessoas com quem falei e interagi, tantas situações que enfrentei.  Foi uma longa jornada, repleta de emoções, tombos e muitas dificuldades para me conformar em ficar de molho no hotel esperando a saúde melhorar.  Eu estava no sul do sul, no fim do mundo, na pontinha, na extremidade mais austral da última estrada do planeta Terra.  Não fui até lá para ficar preso no hotel.  Rodei muito para estar lá.

Mas por outro lado eu pensava que tudo isso até agora foi só a parte da ida, ainda tinha toda a volta!  Tinha de estar pronto e em condições para ela.  Tinha de dar tempo para minha recuperação, mas como conseguir ficar parado?


Quando voltei da visita de moto ao Parque Nacional Tierra del Fuego estava fisicamente pior mas intimamente melhor.  Pior em virtude do esforço de subir e descer da moto, de pilotá-la até lá (são 40 km do hotel até o parque) e de ter rodado pelos 20 km de estradas de terra e rípio do interior do parque.  Tudo isso vezes dois se considerarmos que tem a volta do parque até o hotel.  O tempo em Ushuaia estava chuvoso e a parte de terra estava muito escorregadia, com aquele caldo marrom, aquela espécie de nata de lama sobre a pista.  Mas fui e voltei com maestria o que me deu essa condição de me sentir psicologicamente melhor.  Foi uma conquista interior, uma vitória para mim que já me imaginava impossibilitado de dar continuidade à viagem da forma como planejara.  Comecei a alimentar reais esperanças de não mais precisar de transporte para fora da Terra do Fogo como imaginei que seria necessário.


Cheguei no hotel tomei um banho e deitei na enorme e confortável cama do apartamento.  Pensei em passar o resto do dia ali, descansando e me recuperando ainda mais.  Queria garantir um pleno restabelecimento.  Mas parece que alguma coisa fica atentando dentro da cabeça da gente e pouco depois de uma ou duas horas que cheguei do parque, já estava dentro de um taxi a caminho do centro de Ushuaia.


Caminhei bastante pelas ruas da cidade, fui ao porto, à igreja, almocei, fiz compras, mas quando percebi que estava mancando cada vez mais intensamente vi que era a hora de voltar ao hotel.  Por mais estranho que isso possa parecer, sou uma pessoa que lida muito bem com a dor.  Não sou de me abalar ou me abater quando tenho algum foco de dor.  Não sei dizer como ou porque mas consigo me abstrair e seguir minha vida independentemente daquele desconforto.  Talvez por ter sempre na minha história, na minha existência, colecionado e convivido com tantas “avarias” ao meu corpo.  Mas a realidade é que para uma dor ser capaz de me abater ou me impedir de levar a vida “normalmente”, tem de ser realmente muito forte ou grave.  A primeira impressão que isso causa é de uma condição positiva, que me ajuda a levar a vida com mais conforto.  Mas o que é a dor senão um alerta do nosso corpo pedindo atenção para um ponto ou mesmo a interrupção de uma atividade?  No meu caso tenho de ter muito cuidado porque em virtude dessa resistência habitualmente ignoro esse alerta e dou seguimento ao que estou fazendo.  Objetivamente neste caso quando me dei conta que estava mancando cada vez mais, fiquei muito preocupado de ter abusado no meu passeio e ter agravado meu problema, por isso tratei de voltar logo para o hotel.  Na hora de entrar no táxi foi novamente preciso puxar a perna com a mão para embarcar no automóvel.


O tempo que passei no trajeto do centro até o hotel já me fez assimilar o esforço do passeio e assim que cheguei na recepção perguntei ao Germano (aquele funcionário a quem pedi o transporte para a moto) se havia algum passeio que eu deveria fazer.  Ele mencionou a navegação no Canal de Beagle e o Trem do Fim do Mundo.  Pedi que fizesse reserva para o dia seguinte.  Subi e só desci para jantar às nove horas da noite.  Estava comportadamente tentando fazer um misto de turismo e tratamento de recuperação.  Acho que deu certo.


No dia seguinte fui ao porto para fazer essa navegação no Canal de Beagle.  O negócio é dez!  Muito bom mesmo.  O dia estava até ensolarado.  Bastante frio mas com sol.  Fora do barco não dava para não usar o casaco, mas é melhor que frio sem sol ou frio com chuva.

Vimos os animais da região tomando sol nas ilhas do canal, as árvores que têm as copas projetadas e voltadas para o leste pelo vento constante, ouvimos as histórias das navegações, foi muito bom mesmo.  Na parte da tarde iria para o trem mas me senti mais doído e preferi ficar no hotel descansando a coluna.  Já era dia 12 de dezembro e eu deixaria Ushuaia no dia 13.  Achei que estava abusando da sorte.  Eu estava completamente travado há três dias.  O progresso da minha recuperação tinha sido tão grande que me possibilitou fazer todas essas atividades, era preciso que eu também fizesse a minha parte, desse a minha quota de sacrifício.  Decidi ir para o hotel e descansar aquela tarde.
Desde o dia que cheguei em Ushuaia comecei a tomar um antiinflamatório subligual que sempre levo comigo.  Mas só haviam quatro unidades na caixa.  Tomei por três dias e preservei o último como garantia.  Certamente isso contribuiu muito para a minha recuperação.
Depois que cheguei da navegação, como já estava no centro antes de ir para o hotel e fiz um programa leve: almocei, dei uma voltinha pelas ruas, fiz alumas fotos etc.  Já sentia que iria voltar pilotando a moto e que não seria preciso contratar transporte como imaginava no momento da minha chegada àquela cidade.

Finalmente o dia 13 chegou e com ele o meu momento de deixar Ushuaia.  Confirmando as previsões o dia amanheceu feio.  Chovia bastante e fazia um frio muito intenso.  Carreguei a moto com minhas bagagens e fui para a estrada.  Aumentei a graduação da roupa térmica, pus a capa de chuva e em instantes estava passando pelo portal, deixando o fim do mundo cada vez menor no espelho retrovisor da minha companheira de viagem.  O painel da moto indicava a temperatura ambiente de apenas dois graus, imagine a sensação térmica!  A chuva muito forte e a temperatura tão baixa fizeram a viseira do meu capacete embaçar.  A viseira é dupla exatamente para impedir esse tipo de ocorrência então “teoricamente” isso não deveria acontecer mas… aconteceu.  Pouco mais adiante já não era possível ver mais nada, fui obrigado a me utilizar do velho e habitual recurso de levantar a viseira um pouquinho.  Com a entrada do vento frio no interior do capacete formou-se então uma pequena janela na parte inferior da viseira que com certa dificuldade me permitia ver a estrada.  Nesse momento avistei uma oficial da Gendarmeria na minha frente mandando-me parar.  Ela me alertou sobre as ruins condições da estrada e disse também que havia um acidente mais adiante, para que se eu fosse seguir o fizesse com bastante cautela.  Cheguei a pensar em voltar e só seguir no dia seguinte, mas me lembrei que o Paso Garibaldi funciona como uma espécie de linha divisória entre climas.  Quando ainda estava indo para Ushuaia foi depois dele que percebi a alteração na paisagem e até mesmo nas condições atmosféricas.  A partir dali a possibilidade de mudança é grande o que me animou e deu certa confiança.  Fiquei inclinado a seguir adiante.  Pensei, pensei… me lembrei que já tinha feito pelo Booking.com a reserva do hotel em El Calafate e, mesmo com a margem de segurança que sempre dou, não dava para já de início gastar um dia.  E o prognóstico era de chuva por vários dias.  Talvez de nada adiantasse deixar para sair de Ushuaia no dia seguinte pois poderia estar até mesmo pior.  Decidi então seguir adiante.  Foram cerca de 150 km de verdadeiro sufoco, mas depois do Paso Garibaldi minhas previsões se confirmaram e a chuva foi ficando fraca até que parou restando então apenas o frio.


Eu já saí de Ushuaia com a intenção de naquele dia seguir apenas até Cerro Sombrero.  Deixar a travessia do Estreito de Magalhães para o dia seguinte.  Mas, como não podia deixar de ser, no meio do caminho fui alterando essa ideia e quando cheguei em San Sebastián para abastecer vi que havia um hotel no posto de gasolina e fiquei por ali mesmo.  Deixei os cento e muitos, quase 200 km de rípio até Cerro Sombrero para a manhã do dia seguinte quando estaria mais descansado e numa parte do dia que normalmente venta menos.


Canal de Beagle


Deixando a Tierra del Fuego

Na manhã seguinte o tempo estava legal, encoberto porém firme.  Dava para ver que a chuva estava rondando pelos arredores mas parecia ainda longe de me alcançar.  O quarto do hotel em que fiquei era muito claro.  Normalmente os quartos de hotel têm uma janela em uma das paredes.  Neste em especial, a parede da janela era toda de vidro.  Havia uma cortina própria para proporcionar alguma privacidade e naturalmente também para impedir a entrada da luz mas na noite anterior eu não quis fechá-la para evitar uma eventual “escorregada” na hora da saída de San Sebastián.  Não me lembrei entretanto que estava entrando o verão e naquela latitude as noites têm no máximo cinco horas de escuridão.  O céu só “apaga” depois de onze e meia e volta a “acender” às quatro e meia da madrugada.  Assim acordei muito cedo e pelo  horário o café da manhã ainda não havia iniciado.  Fui então colocar minhas coisas na moto.  Chegando na porta de saída vi que estava trancada.  Voltei ao salão principal e procurei no balcão pelas chaves mas não as encontrei.  Compreendi então que estava trancado dentro do hotel.  Imediatamente pensei como seria se houvesse uma emergência e de pronto olhei para as paredes de vidro e imaginei a saída…  
Na véspera quando cheguei a mulher que me atendeu, uma “redondinha” jovem senhora, muito maquiada, estava em pé do lado de fora junto a uma outra porta que me pareceu ser uma porta de serviço.  Naquele momento perguntei se entrava por ali e ela me indicou a porta principal, a mesma que agora encontrava-se trancada.  Lembrei-me disso e atravessei o salão do restaurante, caminhei cozinha adentro e depois de um pequeno corredor lá estava a porta de ontem.  Meti a mão na maçaneta e depois de um pequeno giro a porta se abriu.  Estava livre!  Peguei minhas coisas e comecei a arrumar na moto.  Numa das minhas passagens pelo interior da cozinha me deparei com a figura simpática da atendente que acabava de acordar.  Mas mesmo àquela hora já estava completamente “montada” a sua produção cosmética.  Parecendo o rosto de uma gueixa. 


Preparou meu “desayuno”, paguei e fui seguir meu caminho.  Naquele dia eu iria cruzar pouco mais de 180 km por estradas de rípio.  Todo o lado chileno da ilha da Terra do Fogo até Cerro Sombrero e depois, já por asfalto, até Bahía Azul, o porto norte da ilha, para então atravessar mais uma vez o Estreito de Magalhães reentrando no continente em Punta Delgada novamente com destino às terras argentinas.


O controle fronteiriço de saída da Argentina fica distante cerca de cinquenta metros do hotel.  Já o de entrada no Chile está 15 km adiante.  O rípio inicia exatamente após a edificação da aduana argentina.


Depois de fazer os procedimentos de saída, segui pela mesma estrada que há alguns dias me trouxe até ali.  O trecho entre as duas aduanas é o que mais exige atenção por ter o rípio menos compactado, com as pedras mais soltas.  Mas nada exagerado que exija muita perícia ou que cause dificuldade na condução da moto.  Depois de passar pela aduana de entrada no Chile voltei 50 km pela Y-79, como se fosse retornar à Porvenir.  Não entrei na Ruta 257 como faz a maioria dos viajantes.  Por lá o caminho é apenas quinze quilômetros mais curto mas o trânsito de caminhões é infinitamente maior.  Numa estrada em que nem sempre temos as condições ideais de condução, onde em muitos casos não temos como desviar o nosso caminho uns poucos centímetros que sejam (para não entrar na área fofa do rípio), é sempre bom evitar as rotas com maior fluxo de veículos.  Principalmente se forem caminhões, que são pesados e têm agilidade limitada.  Para eles, desviar de uma moto que pode ter acabado de escorregar na pista à sua frente pode ser uma tarefa praticamente impossível.


A estrada até o cruzamento onde viraria à direita para Cerro Sombrero eu já conhecia.  Foi por ela que eu vim de Porvenir.  Mas somente até o momento em que eu a deixasse e virasse sentido norte.  Dali para frente seria uma novidade para mim.  Não podia deixar de sentir uma grande ansiedade pela incerteza do tipo de piso que iria encontrar.  Chegando no cruzamento onde viraria à direita a chuva finalmente começou.  A ansiedade naturalmente aumentou também pois havia a incógnita das condições da pista que foi somada à chuva que se iniciava e poderia alterar totalmente o cenário dali para frente.  Mas literalmente quem está na chuva vai se molhar.  E foi isso que aconteceu.  Inicialmente ela veio um pouco mais forte mas logo amenizou e ficou aquele chuvisco fino e constante.  Não fez diferença nenhuma para a condução da moto.  O piso estava muito bom, bem compactado, com pouquíssimos trechos de pedras soltas.  O movimento na estrada era quase nenhum, cruzei com uns cinco carros no máximo.  Apenas nos quilômetros finais, onde imagino ser uma parte comum às duas opções de trajeto, passei a dividir a estrada com diversos caminhões.  Mas isso representou a décima parte de todo o trajeto.  Depois de mais ou menos duas horas e meia após ter saído da aduana o asfalto se apresentou à minha frente.  O trajeto foi muito tranquilo, sem pontos perigosos ou mais arriscados.  Sinceramente recomendo essa opção para se cruzar a ilha da Terra do Fogo.  Há uma obra de pavimentação que creio deve ter cerca de 20 ou 30 km.  Somente nessa parte do percurso é que requer um pouco mais de atenção do piloto pois como o asfalto é posto sobre o leito da estrada já existente, há um desvio que não tem a mesma qualidade do piso da estrada principal.  No meu caso especificamente por estar de moto ainda ficou um pouco mais crítico porque a chuva formou aquela lama fina e escorregadia.  Mas no geral foi bem mais tranquilo do que eu pensava que seria.


Eu havia deixado os pneus com apenas vinte PSI para cruzar o rípio.  Agora no asfalto era preciso voltar à calibragem normal de 33 PSI.  Deixei então a estrada e entrei em Cerro Sombrero à procura de um posto para abastecer e encher os pneus.  Por precaução quis logo garantir o combustível.  Ainda estava no Chile, e (ao contrário da Argentina) naquele país nunca houve dificuldade para comprar gasolina.  Em pouco tempo estaria entrando em terras argentinas e já queria fazê-lo com tanque cheio.  Depois do abastecimento procurei pelo ponto de ar e o avistei a uns trinta metros da bomba de combustível.  Liguei a moto e me dirigi para lá.  É, tem de usar o motor, com a moto tão carregada não dá para a ficar empurrando para lá e para cá.  Ainda mais com tanta dor nas costas como eu estava.  É preciso ficar claro que meu estado havia melhorado se comparado com a absoluta falta de condição a que eu me encontrei quando cheguei em Ushuaia, mas ainda estava muito longe de estar me sentindo bem ou normal.  Cada vez que tinha de movimentar a perna esquerda, seja para tirar do chão e apoiar na pedaleira ou seja para simplesmente caminhar, era tudo feito com muita dor e sacrifício.  Parei a moto junto à plaquinha indicativa.  Porém vi que o ponto de ar também não dispunha de manômetro.  Apenas a mangueira enrolada numa placa escrito: “aire”.  Já fazia tempo a última vez que tinha visto um manômetro…  Eu havia comprado em Ushuaia uma “caneta” daquelas que os borracheiros usam para calibrar pneus, mas só mesmo por garantia pois a moto também indica no painel a pressão de cada um dos pneus.  Pode parecer excesso de precaução mas devo ter trazido esse critério cauteloso da minha vida náutica onde se costumava dizer que “quem tem dois tem um; quem tem um não tem nenhum”.  Mas eu fico pensando: como será que as pessoas fazem por aqui?  Será que elas enchem os pneus e dão aquela apertada com o polegar como se fossem bicicletas?  Estranho, muito estranho.


Dessa vez eu iria atravessar o Estreito de Magalhães pela parte mais próxima do continente, de Bahía Azul para Punta Delgada.  Ao contrário da única viagem diária de duas horas e meia de travessia entre Punta Arenas e Porvenir, agora seriam apenas trinta minutos com saídas ininterruptas a cada meia hora.


Quando cheguei na reta que leva à balsa havia uma longa fila de espera.  Foram quatro ou cinco viagens antes da minha vez chegar.  A moto ocupa um espaço tão reduzido que não sei porque eles não liberam as motos para ingresso imediato.  Mas como isso não ocorreu fiquei obedientemente aguardando a minha hora de embarcar.  Dessa vez não houve compra de bilhete antecipado.  A operação era feita a bordo, durante a travessia.  Depois de estacionar a moto no local indicado pelo marinheiro, fui saber se não iria fixar a moto com as correias.  Ele me garantiu que as condições do estreito estavam ótimas e que seria muito tranquilo, sem necessidade de usar a cintas.  Como não havia outro jeito confiei no cara.  Deixei a moto e fui me colocar numa nova fila que se formou para o pagamento.  Cada um se apresentava ao cobrador que ficava sentado atrás de uma mesa dentro de uma pequenina sala, e informava o seu veículo para que a figura então anunciasse o valor.  Quando finalmente chegou a minha vez disse a ele que eu estava de moto e ele fez uma careta junto com um aceno de mão me mandando voltar e nada pagar.  Dei meia volta e subi para um pequeno espaço com poltronas pois minhas costas insistiam em me lembrar que eu ainda não havia me liberado da enfermidade que nelas se instalara, já estavam pedindo descanso.


Minha meta para aquele dia era Rio Gallegos, cerca de 120 km do desembarque em Punta Delgada.  Eu já tinha rodado cerca de 180 km de San Sebastián até Bahía Azul, o ponto de travessia.  No total seriam apenas trezentos quilômetros.  Todavia quando planejei a rota do dia eu tinha muitas incógnitas, eram muitas as variáveis:  sabia que não era possível determinar quanto tempo eu levaria para cruzar a parte de rípio pois não sabia em que condições estaria aquele piso.  Sabia também que além do tempo de espera da balsa e da travessia propriamente dita ainda teria de passar por aduanas, fazer os trâmites de saída do Chile e de entrada na Argentina.  Isso tudo era uma grande interrogação e poderia me consumir o dia todo.  Certamente se eu estivesse viajando com mais alguém iria ser questionado pela “economia”.  É verdade, se tudo correr bem, fluindo como se espera sempre que aconteça, chegaria ainda cedo em Rio Gallegos.  Mas se qualquer uma dessas variáveis demorasse mais do que o previsto eu poderia não ter como chegar dentro do prazo em El Calafate, cidade onde já tinha feito reserva num hotel.


Normalmente eu vislumbro as coisas como escolhas.  Prefiro escolher ser prevenido do que ser mais arrojado para não dizer negligente.  Após a constatação de que daria tempo vem sempre a ideia de que poderia ter feito diferente.  Mas se não der certo a sensação que retorna da primeira escolha é menos implacável e causa menos efeitos colaterais que a segunda.


Fazendo aqui um pequeno parêntese, para falar a verdade eu nem compreendo bem como é que algumas pessoas saem para fazer determinadas viagens sem a necessária disposição de tempo, vão com tempo muito limitado.  Me parece que a coisa quando é feita assim é mais para cumprir tabela e entrar para o currículo de feitos e conquistas do que para curtir e realmente conhecer o que se está visitando.  Há pessoas que mais parecem motoristas de ônibus rodoviário, rodando mil quilômetros ou mais por dia, fazendo praticamente o que chamamos de “bate-volta” só para “ter ido” àquele determinado destino.  Se não dá para ir com mais tempo é melhor optar por destinos mais próximos do que cruzar países sem a possibilidade de parar na estrada, nos pontos rústicos e pitorescos, além das óbvias atrações turísticas.

Em cada lugarejo que deixamos desaparecer no retrovisor existem milhares de coisas,  de pessoas, de hábitos e de costumes.  Conhecimentos que poderiam nos enriquecer com lembranças que ficariam marcadas para sempre em nossas mentes. 


Sei de pessoas que foram ao Atacama mas que (a partir da saída do Brasil) no segundo dia estavam em Salta e no quarto, ou até mesmo no terceiro já estavam em San Pedro de Atacama.  Eu comparo isso a ir de avião.  Nesse tipo de transporte obviamente não conhecemos nada dos lugares por onde passamos até a chegada ao destino.  Para ir dessa forma talvez seja realmente melhor ir de avião e alugar a moto por lá.  Fiz exatamente isso quando fui cruzar a Rota 66 de Chicago até Los Angeles.  Teria sido muito mais legal ter ido e voltado de moto desde minha casa.  Mas o tempo gasto seria infinitamente maior que os 17 dias usados naquela viagem.  Foi a maneira que encontramos para percorrer toda a extensão da “Estrada Mãe”, como é conhecida nos Estados Unidos.  Se dividirmos os pouco mais de 4000 km rodados pelos 17 dias teremos algo perto de 300 km por dia.  Isso nos permitiu conhecer parques, sítios históricos, pontos turísticos etc.  Além de termos também podido fazer desvios como por exemplo a ida até Santa Fé, cidade onde ficamos duas noites aproveitando ao máximo o lugar.


Por isso é que não compreendo como algumas pessoas saem para cumprir determinados roteiros sem o tempo mínimo necessário.  Nessa situação sinceramente acredito ser melhor a opção de ir de avião e alugar a moto por lá.


Para ir de moto é fundamental realmente aproveitar cada quilômetro rodado desde a saída de casa, de outra forma não haveria a frase que diz: “Indo de carro a diversão começa quando chegamos ao destino; indo de moto a diversão começa quando saímos de casa.”

Sei que não agrado a todos pensando desta forma, mas fico com pena de se passar por tanta atração e informação sem o tempo ideal e suficiente para aproveitá-las.


apartamento do hotel do posto do ACA em San Sebastián

somente ar, sem manômetro



De volta ao Continente

O desembarque no continente foi tranquilo.  Eu costumo deixar sempre os mais apressados seguirem seus ritmos acelerados.  Seja num desembarque como esse ou seja (por exemplo) na liberação de um bloqueio na estrada.  Entendo que é  melhor não estar na frente desses veículos, atrapalhando o fluxo desejado por seus motoristas.  Se for preciso até paro a moto pelo tempo necessário para que eles sigam em paz e me deixem também em paz.

Assim que deixei a balsa, ainda em território chileno segui pela Ruta 257 até que encontrei o cruzamento com a Ruta 255, estrada transversal que me levaria à Ruta 3 através do Paso Integración Austral.  A Ruta 3 é uma também mítica estrada argentina.  Também mítica porque a Ruta 40 é considerada a mais desafiante das rodovias daquele país.  A 40 corta todo o território argentino de norte a sul.  Mas grande parte de sua extensão não é asfaltada, tornando-a assim motivo de conquista pessoal para quem a enfrenta.  Já a Ruta 3 é a rodovia mais austral do planeta.  Liga a capital Buenos Aires ao “Fin del Mundo”.

Como disse minha meta para aquele dia era chegar a Rio Gallegos.  Faltavam apenas cerca de 120 km.  Mas tinha ainda a passagem pela aduana, com os trâmites de saída do Chile e de entrada na Argentina.  Eu não sabia o que me esperava por lá.

Cerca de 50 km depois de Punta Delgada está a divisa entre os dois países, e logo a seguir o complexo fronteiriço Paso Integración Austral.  Assim como nos Orcones do Paso Cristo Redentor, os trâmites de saída e entrada são feitos na mesma edificação.

Quando me aproximei vi que havia uma espécie de fila ainda na estrada.  Vários carros tumultuando o acesso ao prédio.  Demorei algum tempo para compreender que os veículos na verdade estavam abandonados por seus ocupantes, estavam vazios.  Percebi que a coisa se dava apenas lá dentro, era preciso deixar os carros, as motos etc. e prosseguir a pé.   Procurei um cantinho para minha moto e fiz o mesmo, fui caminhando até lá para fazer os procedimentos aduaneiros.  Lá dentro um grande salão com muita gente.  A fila era quase organizada.  Digo quase porque havia um roteiro a ser seguido, mas estranhamente o primeiro guichê a ser visitado ficava fisicamente depois do segundo.  Com isso a fila formava uma espécie de nó na sua extremidade pois depois de se passar pelo segundo atendimento era necessário cruzar a fila para seguir adiante.  Depois de vencido esse pequeno percalço, agora era preciso atravesar todo o salão para passar por mais dois guichês lá na outra extremidade.  De fato a passagem pelo Paso de Integración Austral tem tudo para ser tranquilo, se considerarmos as dimensões e as condições para se montar uma boa logística.  Mas na realidade a coisa não acontece dessa forma.  É verdade que existem momentos de maior ou de menor fluxo de turistas passando por lá, mas numa situação de alta temporada como a que passei se houvesse um pouco mais de organização a fluidez seria bem maior e tudo menos confuso e menos demorado.  Minha preocupação maior agora não era com o tempo pois vi que teria bastante para chegar a Rio Gallegos em condições de buscar hotel com tranquilidade.  Minha preocupação agora era com minhas coisas expostas sobre a moto lá fora, à uma considerável distância.  Nunca se sabe…

Depois de várias dezenas de minutos voltei para minha moto e vi que minhas “tralhas” ainda estavam todas em ordem, da mesma forma que as deixei. 

Em pouco mais de uma hora estava entrando em Rio Gallegos.  Não havia feito nenhuma reserva para aquela cidade então como de costume dei aquela minha voltinha de reconhecimento e parti para encontrar hotel.  Busquei pelo GPS e escolhi pelo nome.  Chegando ao estabelecimento parei a moto e fui ver se havia vaga.  Um retumbante “no hay ninguna habitación disponible”.  Voltei à moto desolado, com receio de novamente enfrentar dificuldades nessa procura.  Mas avistei um pouco mais adiante e do outro lado da rua um outro hotel.  Deixei minha moto onde estava e fui andando até lá.  Já voltei para pegar a moto com a chave do quarto na mão.  Ainda estava cedo, devia passar um pouco das três da tarde.  Era dia 14 de dezembro, aniversário do meu pai.  Completava 86 anos naquele dia.  Depois de tomar meu banho para retirar toda a poeira e lama que trazia em mim pela travessia do rípio inicialmente poeirento e depois sob chuva, fiz uma ligação para o Brasil.  Minha mãe atendeu e como já imaginava foi difícil conseguir que ela liberasse o telefone para eu falar com meu pai.  Acho isso engraçado.  Mesmo eu já tendo 55 anos completos sempre ouço deles as mesmas observações e recomendações que ouvia na infância, adolescência, idade jovem etc.

Encontrei todos por lá festejando com meu velho pai.  Depois de falar com ele ainda falei com minhas filhas, minha irmã e minha ex mulher.  Só não pude falar com meu filho pois ele não estava por lá.

Essa minha viagem teve esse ponto, digamos, pouco social.  Em virtude do tamanho dela, quase 40000 km e do tempo gasto pra cumprir esse percurso com calma e aproveitando ao máximo, fiquei mais de três meses fora o que me fez estar ausente no aniversário de minha irmã, no de meu pai, nas festas do natal e do ano novo e no aniversário da minha mãe.

Mas acho que fui bem compreendido pela família e não sucederam-se mágoas.

Depois de cumprir essa obrigação social e sentimental, consegui desligar o telefone e saí em busca de comida.  Eu estava apenas com o café da manhã que me havia sido servido por aquela figura simpática e redonda lá em San Sebastán.

Chovia lá fora o que me desanimou um pouco a sair.  Além do próprio incômodo de caminhar na chuva ainda havia a minha pouca mobilidade causada pelo problema na coluna.  Mas passando pelo átrio da recepção vi que agregado ao hotel havia um restaurante e fiquei por ali mesmo.

Já estava no final de minha refeição quando entra no restaurante uma idosa senhora e assume uma mesa em frente a que eu utilizava.  A garçonete veio perguntar a ela quantos lugares seriam.  Ouvi quando ela disse que não sabia ao certo.  Pensei comigo “coitada, deve estar esperando uma ou duas amigas para um chá.  Nessa tarde tão chuvosa não vai vir ninguém…”  

Mas meu camarada… aos poucos foi entrando tanta velha que eu pensei que estava dentro do filme Cocoon antes da concha!

Inflamou o local de tanta velha, a mais nova devia ter três vezes a minha idade!  E era uma barulheira de deixar recreio da quinta série com vergonha da própria incapacidade sonora.

Acabei minha refeição e saí dali o mais rápido possível pois a barulheira era tanta que eu não estava conseguindo ouvir meus próprios pensamentos.


Depois que a chuva parou dei uma breve voltinha a pé e voltei para o hotel pois meu trajeto do dia seguinte seria puxado.  Tinha como meta a cidade de El Calafate, onde já havia feito reserva num bom hotel.  Mas iria até lá passando por Rio Turbio e pela desafiadora Ruta 40 num dos seus muitos trechos nada amistosos.

Saí cedo do hotel no dia seguinte e tudo correu muito melhor do que imaginei.  Lindas paisagens e nada de chuva para dificultar ainda mais as condições da estrada.  Foi muito agradável essa parte da viagem.  Em algumas horas estava chegando.  Para não dizer que foi tudo ótimo, apenas uma coisa me pegou de surpresa: o frio (mais uma vez).  Eu não esperava encontrar tanto frio assim.  Pouco antes  da Ruta 40 encontrar com a Ruta Provincial 9, há uma serra que me pareceu ser infinitamente gelada.  Mas muito gelada mesmo.  Fiquei preocupado com a aproximação de El Calafate pois se ali já estava tão frio assim imagine próximo ao lago e aos glaciares!   Mas quando a descida começou a temperatura foi retornando aos já habituais e (à essa altura dos acontecimentos) confortáveis 12 ou 13 graus.

Interessante o que ocorreu nessa viagem em virtude das circunstâncias da mesma.  Existe aquela frase de que “a necessidade fez o sapo pular”.  E eu fui aos poucos alterando meus limites e meus valores.  Lembro-me de em outras ocasiões praguejar muito quando encontrava temperaturas como 11 graus (por exemplo quando ia a Curitiba).  Mas àquela altura da viagem quando o termômetro da moto indicava temperaturas de dois dígitos eu gritava de alegria no confinamento de meu capacete.  A partir de dez graus era para mim motivo de comemoração…

O tempo contribuía, estava um pouco ensolarado, assim meio entre nuvens, mas isso garantia um dia claro e brilhante, o que tornava ainda mais superlativa toda aquela tsunami de belezas naturais.

Mesmo já tendo passado por locais igualmente belíssimos como a região chilena de Los Lagos, com a amável Frutillar, e também pelas aconchegantes Villa Pehuenia e Moquehue, cercadas de inúmeros lagos inacreditavelmente azuis, a chegada a El Calafate com a visão do Lago Argentino é algo indescritível.  Se eu tentasse aqui descrever iria pecar por simplificar demais pela insuficiência de detalhes.  Existem coisas na vida que não há como descrever.  Tente explicar como é o sabor do chocolate.  Só provando para saber.  A mesma coisa acontece com determinadas paisagens, não há como relatar.  Tem de ver, tem de sentir…

Rio Gallegos


Caminhando no gelo

El Calafate é muito bem cuidada.  Chega-se por uma estrada que desce até a cidade que fica no fundo de uma espécie de vale.  Tem um astral muito bom, com muita movimentação de turistas.  Assim que cheguei ao centro peguei a via principal para dar aquela minha volta básica de reconhecimento.  Depois de um pequeno giro (também não daria pra ser grande pelas dimensões do lugar) parei para buscar no GPS pelo meu hotel.  Tinha feito reserva antecipada e não havia motivo de preocupação, meu cantinho na gelada El Calafate estava assegurado.  Assim como em  Ushuaia fiz reserva num bom hotel.  Como já disse antes, eu classifico os dias da viagem em tipos determinados: 1) dias de deslocamento com pernoite simples sem nenhum interesse pelo local; 2) dias de deslocamento com escolha das cidades para pernoite com visita às atrações locais; e finalmente 3) dias de turismo e visitação.

Nos dias de deslocamento simples eu não me preocupo com as instalações de onde vou pernoitar.  Evidentemente que não fico em qualquer espelunca (salvo algumas exceções que mencionarei adiante), mas não faço a menor questão de ostentações e confortos supérfluos.  A ideia nesses dias é apenas uma cama, banheiro limpo e café da manhã (mesmo na Argentina).  Por exemplo se eu estiver indo do Rio de Janeiro para o nordeste com parada em Salvador.  Seguindo meu ritmo e padrão eu faria meu primeiro pernoite em Linhares (ES), a cerca de 650 km do Rio.  Nessa cidade seria o caso número 1: um pernoite simples.  Já no outro dia poderia escolher para o pernoite seguinte a cidade de Ilhéus que pelos seus atrativos entraria na classificação número 2: dia de deslocamento com escolha da cidade para pernoite pelos seus atrativos.  E finalmente Salvador seria o caso número três: dias de turismo e visitação.  Nesse último caso a escolha do hotel tem importância maior pois além de ficar mais tempo na cidade também há a demanda de informações turísticas e a eventual contratação de passeios etc.

El Calafate assim como Ushuaia estavam na minha cabeça e projeto de viagem como cidades para turismo e visitação.  Um bom hotel nessas cidades fez parte do meu planejamento.  Mas é hotel no máximo 4 estrelas, apenas para me proporcionar um pouco de conforto, com ambiente aquecido, bom café da manhã, quarto e banheiro arrumados e limpos etc.  Nada de demonstrações desnecessárias e fúteis de capacidade financeira.  Para mim quem faz isso é a pessoa que certamente se sente inferior e precisa “convencer” os outros do contrário.  Pode até ter dinheiro no bolso mas é muito pobre no espírito.

No meu caso foi possível apenas porque ainda estava contando com o câmbio extremamente favorável para essas pequenas extravagâncias.  Eu havia comprado a moeda argentina a trinta e seis centavos de Real.  E àquela altura o Peso já estava valendo trinta centavos de Real, e a desvalorização era constante.  Ou seja, pouco menos de um terço da nossa moeda.  Ficar três dias num hotel quatro estrelas em El Calafate por 207 dólares é moleza demais!

A rua que me levou ao Terrazas del Calafate é uma subida em rípio com o hotel no final dela.  Fica no alto o que me proporcionou uma bela vista do Lago Argentino nos três dias que fiquei por lá.

Assim que parei a moto vi que havia um simpático cachorro deitado diante da porta principal do hotel.  Saltei da moto e ele instantaneamente levantou-se me olhando e acompanhando meus movimentos de desembarque.  Não retirei de imediato o capacete e percebi que o cão me olhava apreensivo, conheço esse comportamento.  Comecei a caminhar em direção à porta e o coitado começou a movimentar-se a fim de manter uma distância segura de mim, estava com medo de mim.  Parei e retirei o capacete.  Olhei amistosamente para ele e vi suas orelhas relaxarem e o rabo balançar.  Havia “conquistado”  o bicho.  Quando cheguei junto a ele fiz um carinho e a partir daí ele me acompanhou o tempo todo, inclusive hotel adentro.  Quando cheguei na recepção ele se deitou aos meus pés.  O tempo todo eu pensei ser uma espécie de mascote do hotel.  Não era um cão mestiço, era um belo Golden Retriever.  Mas assim que a recepcionista o viu, o enxotou para fora do hotel.  Depois vim a saber que se tratava de um cão da vizinhança que de vez em quando ficava por ali.  “Gente” boa o cachorro.

Depois de esvaziar a bagagem e tomar meu banho, pedi um taxi para me levar ao centro e fui dar uma volta a pé pela cidade.  Antes a recepcionista me perguntou se iria jantar no hotel pois teria de fazer reserva.  A exemplo do que fiz em três dos quatro dias que estive em Ushuaia, também jantei no hotel em El Calafate.  Eu acho que em virtude da falta da escuridão noturna naquelas latitudes, a fome só chega muito tarde da noite, invariavelmente depois das nove.  E salvo em alguma noite que haja programação, à essa hora certamente já estou de volta ao hotel.

Na volta da rua vi que havia um rapaz na recepção em substituição à moça que me recebeu mais cedo.  Solicitei informações sobre passeios para o dia seguinte e contratei a indispensável visitação ao Glaciar Perito Moreno com navegação e trekking sobre o glacial.  É uma programação “full day” que vale muito a pena.

Jantei e aproveitei uma excelente noite de sono.  Na manhã seguinte estava entrando na van que me levou ao ônibus que foi aos poucos recebendo outros turistas de outras vans, e depois de completo nos levou ao Glaciar Perito Moreno.

O visual é incrível.  Parece e é coisa de cinema.  Uma infinita massa de gelo que nasce nas montanhas e avança através do lago.  Mas é uma visão mais que superlativa, é gigantesca mesmo.  Imagine um bloco infinito em comprimento, da maior largura possível limitada apenas pelas rochas, e com uma altura impressionante que supera em muito os prédios que estamos acostumados a ver nas cidades brasileiras.  É realmente impactante a visão de mais essa obra da natureza.

Depois de algum tempo caminhando pelas várias passarelas dos diversos mirantes, fui tomar um chocolate quente no restaurante do parque enquanto aguardava o ônibus para nos levar ao porto.

Enquanto aquecia o corpo com o conteúdo da xícara me peguei pensando sobre essa minha condição quase permanente de viajante solitário.  O fato de estar aposentado e separado me dá uma condição de liberdade pouco comum.  É sempre muito difícil encontrar companhia com a mesma disponibilidade de tempo para as viagens que costumo fazer.  Então cada lugar que paro para contemplação e cada ponto que visito assume uma dimensão diferente da que teria se não estivesse só.  Fico quase permanentemente em estado de meditação numa contínua e profunda introspecção.  É uma constante “viagem aos interiores da alma”.  Na verdade o motociclismo tem essa singularidade.  Mesmo que estejamos em um enorme grupo, enquanto em movimento ficamos restritos aos naturais limites impostos pelo nosso capacete, de modo geral não há comunicação nenhuma entre os componentes exceto as que acontecem nas paradas que fazemos.  Um grupo de motociclistas estradeiros é plural mas composto de vários singulares.

O ônibus buzinou para levar ao porto os que contrataram o passeio sobre a geleira.  Lá pegamos o barco e navegamos entre os enormes pedaços de gelo desprendidos do glacial que boiavam pelas águas do lago.  Quando o barco chegou junto ao imenso bloco, diante daquele paredão congelado é que pude realmente compreender sua dimensão.  Chega a ser assustador…

Depois de algum tempo navegando sempre junto àquele gigante branco azulado fomos desembarcar no outro lado do lago para almoçar as viandas que trazíamos conosco.  Viandas são pequenos lanches preparados pelos hotéis, e que levamos conosco porque não há local para almoço.  Nessa margem do lago o controle para preservação das condições naturais é muito rigoroso.  Só se pode ir acompanhado de um guia e desde o embarque é proibido fumar ou comer e beber qualquer coisa.  O consumo das viandas tem o momento e o local próprio.  Acontece assim que fazemos o desembarque.  Só então depois de nos alimentarmos é que seguirmos para fazer o trekking sobre o glacial.  Há nesse abrigo onde fazemos nossa refeição uma espécie de escaninho múltiplo onde todos deixamos nossas mochilas.  Para o trekking seguimos apenas com a roupa do corpo e as máquinas para registros de imagens.  Caminhamos por uma trilha, uma pequena praia e finalmente chegamos junto ao gelo.  Logo no início há um outro ponto de parada para recebermos um pequeno treinamento com orientações de como agir sobre o glacial, onde e como pisar.  Nesse ponto de parada atamos “grampones” aos nossos calçados para viabilizar a caminhada naquele tipo de piso.

Eu havia levado comigo desde o Brasil uma lata de cerveja Antártica para fazer uma foto e ser consumida quando ficasse gelada pelo gelo glacial.  A marca da cerveja foi escolhida por motivos óbvios.  Mas ocorreu um fato ainda mais legal: depois de cerca de uma hora de caminhada sobre aquela imensidão branca, os guias nos levaram para trás de uma espécie de duna onde havia um baú com copos e Whisky para todos.  Fizemos um brinde geral num ambiente de muita alegria e descontração.  Ah!  O gelo no copo foi retirado do chão com auxílio de uma picareta.  Sensacional!

Assim como outros tantos dias nessa viagem, esse foi um dia intenso de emoções e daqueles que ficam eternamente gravados em nossas lembranças.

Já no hotel depois de uma boa soneca após um banho revigorante, chegou a hora de jantar.  Engraçado é que a coisa acontece meio que por compromisso.  Devido à falta da escuridão noturna nem a fome sabe que já está na hora…

O restaurante do hotel fica em um piso inferior ao da recepção e dos apartamentos.  Como a construção foi feita no alto de uma encosta voltada para o lago, o acesso se dá pela parte de trás, em nível mais elevado.  É uma vista panorâmica, acessível de qualquer ponto o tempo todo.  E duradoura pela constante iluminação natural naquela época do ano.
Eu estava sentado (pela terceira vez) em minha já habitual mesa no canto esquerdo do salão, junto à janela.  Na verdade uma parede inteira de vidro.  Naquele restaurante só há três paredes.  Onde normalmente seria a quarta parede fica um imenso painel envidraçado propiciando a apreciação constante do belo visual.  Enquanto jantava, distraidamente  acompanhava com os olhos a movimentação lá em baixo.  Alguns carros na estrada junto ao lago, pessoas caminhando, quando de repente um barulho ensurdecedor acompanhado de um sacolejo que se prolongou por uns dois ou três segundos.  O barulho pareceu o de uma porta batendo.  Mas teria de ser uma porta muito grande para causar tanto impacto e tanta reverberação.  Durante alguns segundos pensei várias possibilidades, pensei até em explosão na cozinha.  Mas logo a cheff apareceu para ver como eu estava.  Percebi que ela estava tranquila mas me observava com ares de desconfiança.  Na verdade estava curiosa por saber se eu estava bem.  Aproveitei sua presença para perguntar o que foi que houve e ela disse ter sido “un tenblor”.
Perguntei o que era isso e ela repetiu: “un temblor”.  Talvez pela minha fisionomia ela tenha percebido que continuei na mesma, sem entender, então ela completou dizendo: “tenblor, terremoto”.  Só aí me dei conta que tremor em espanhol é tenblor.  Havia ocorrido um tremor de terra, um pequeno terremoto.  E eu ali jantando na maior calma!  Ela disse ser habitual esse tipo de manifestação natural naquela região e que as construções já são projetadas levando essa rotina em consideração.  A terra tremendo e eu ali na beirada do salão junto de uma gigantesca vidraça…

Para o dia seguinte havia contratado um outro passeio: uma descida de bicicleta do alto da montanha.  Um “Down Hill Cross Bike”.
O início seria normal, junto com todos os demais turistas, mas na hora da descida é que haveria a divisão de quem voltaria no ônibus 4×4 e quem voltaria de bike.
Quando entrei no ônibus vi que só haviam duas bicicletas lá no fundo.  Mas pensei que haveriam outras lá no alto.  O passeio é muito interessante.  O ônibus sobe cada pirambeira que chega a ser inacreditável a façanha.  Muito legal.
Na véspera quando contratei o Cross Bike, eles me avisaram que não era possível levar nada porque poderia molhar e não havia espaço para guardar.  Então infelizmente não levei nenhuma máquina para registrar com imagens.  Assim como também não levei casaco pois achei que iria era suar.  Mas até chegar o momento de pegar a bicicleta o ônibus visita muita coisa e passei um frio danado.

Quando finalmente chegamos no ponto mais alto, os demais turistas seguiram no ônibus e eu então vi que o único demente era eu: uma bike para o guia e outra para mim.  Só então pensei: o que que eu estou fazendo aqui?  Estou há mais de setenta dias fora de casa, sobre uma moto, com a coluna me matando de dor e ainda buscando recuperação, e eu descendo esse penhasco de bicicleta num frio de congelar pinguim!!!  Mas só o que posso dizer é que mais uma vez foi ruim mas foi bom…

apartamento do Terrazas del Calafate

Lago Argentino no visual do apartamento


Glaciar Perito Moreno

“grampones”

essa Antártica viajou comigo por 3 meses para ser gelada pelo gelo antártico

voucher do meu Cross Bike

“Em terra de Saci uma calça dá para dois”

Durante os três dias que estive em El Calafate eles se mantiveram ensolarados.  Mas eu diariamente acompanhava a previsão e sabia que na data da minha saída de lá o tempo iria mudar.  Mas dessa vez meu retorno seria todo por asfalto.  Eu pretendia passar de Rio Gallegos e só parar em Puerto San Julian.  Seriam cerca de 620km.  Inicialmente pensei em fazer um trajeto mais aventureiro e seguir pela tosca Ruta Provincial 9, que me levaria diretamente da Ruta 40 para a Ruta 3 e economizaria cerca de 200 km.  Mas fui veementemente desaconselhado por todas as pessoas a quem pedi sugestões de itinerário.  Eu não queria ter de voltar tudo até Rio Gallegos para depois então subir a Ruta 3.  Mas diante de tantas recomendações para não ir pela RP 9, e devido ao mau tempo que se anunciava, decidi acatar os aconselhamentos e seguir pelas vias mais “normais”.

Dia seguinte lá estava eu retomando minhas rotineiras tarefas de acomodar toda a bagagem na moto. Vi que o tempo estava realmente sombrio, mas havia em mim uma ponta de esperança (quase uma certeza) de que logo adiante eu deixaria para trás essa desagradável condição climática.  Dessa vez, assim como fiz na minha despedida de Ushuaia, me preparei para a chuva e o frio.  Não queria passar pelo mesmo desconforto que tive no meu percurso entre Rio Turbio e El Calafate.

Logo que saí dos arredores da cidade a chuva começou a apertar.  Junto com ela veio o frio.  Eu estava com a roupa térmica ligada por baixo do conjunto de cordura mas em alguns minutos comecei a achar que ela tinha apresentado defeito.  Não estava aquecendo o suficiente para aquele frio.  O controle do termostato estava lá por dentro, por baixo da jaqueta e não me era possível aumentar ou mesmo ver se os leds estavam acesos.  O vento já incomodava bastante e a chuva havia se transformado num temporal.  Em alguns minutos uma espécie de neblina se instalou e somando-se às outras condições começou a dificultar demais a condução da moto. 

Fui sendo aos poucos obrigado a reduzir a velocidade a fim de tentar manter um mínimo de segurança.  Até que me vi guiando a 60 km/h, no meio do nada, numa constante parede de água, sentindo frio e sendo sacudido pelo vento.  Decidido vi que teria de parar, não estava seguro continuar.

Segui naquele sufoco como pude, nem sei por quanto tempo.  Mais adiante passei por uma placa que dizia “La Esperanza 30 km”.  Não era possível enxergar o painel da moto para verificar o odômetro, mas eram só 30 km!  Só que a 60 km/h (ou até menos) a coisa custou uma eternidade para chegar.  Mas o nome era bastante apropriado, era minha esperança que em La Esperanza houvesse abrigo para mim.  

Digo isso porque durante essa viagem vi por diversas vezes placas indicativas de nada, absolutamente nada.  Havia a placa indicando o nome do lugar e só, apenas a placa em puro deserto!
Muitos minutos adiante mais uma placa indicando La Esperanza a 20 km.  Eu pensei: só andei dez quilômetros?  Não pode ser!  Mas depois de muito tempo mais uma placa com a indicação de 10 km.  A coisa estava sofrida, difícil de acontecer.  Me sentia como aquele burrico que anda atrás de uma cenoura que jamais alcançará porque está pendurada em uma varinha amarrada a ele próprio.  La Esperanza nunca chegava!  Mas depois de muita aflição surge na minha frente uma espécie de edificação.  Digo surge porque devido à massa de água que despencava, as coisas só eram percebidas a poucos metros.  Era um posto YPF.  Me aproximei do frentista e perguntei se havia algum hotel por ali.  Ele apontou para um restaurante no outro lado da pista.  Aparentemente La Esperanza se resumia a isso: um posto de combustíveis de um lado da estrada, e um restaurante do outro lado.  

Cruzei a pista e fui até o restaurante.  Àquela altura dos acontecimentos eu já queria garantir um quarto para passar a noite.  Ainda estava cedo.  Apesar do interminável tempo que levei até ali só havia rodado 160 km.  Quase a quarta parte do que havia planejado para aquele dia, mas naquelas condições estava impossível continuar.  Era preciso parar, mesmo àquela hora, ainda tão cedo.  Certamente ainda não era nem uma hora da tarde.  Se o tempo melhorasse eu poderia até mesmo seguir sem pernoitar ali.  Nesse caso a noite só traria o problema do frio mais intenso mas não da escuridão noturna porque ela simplesmente não acontece.  Mas havia também a possibilidade de o tempo permanecer daquela forma.  Queria então já garantir meu espaço antes que outros o fizessem e eu ficasse de fora!

à direita o posto; com telhado azul o restaurante e no alto os dois galpões

Dentro do restaurante a temperatura estava agradável, contrastando-se favoravelmente à que deixei do outro lado da porta que se fechou atrás de mim.  Estava encharcado e com bastante frio, intimamente torcia muito para que houvesse uma vaga para mim.  Dei uma breve olhada por todo o salão e verifiquei de imediato que se tratava de uma espécie de misto de restaurante com armazém de secos e molhados.  Além naturalmente de se prestar também às tarefas de recepção do “hotel”.  


Cheguei junto ao jovem que estava do outro lado do balcão e perguntei se havia “una habitacion” para eu passar aquela noite.  O cara “congelou”, virou estátua, e imóvel sem mexer absolutamente nada além dos olhos fitou-me fixamente com uma fisionomia que de imediato não consegui traduzir bem mas me pareceu que era de espanto, como se não acreditasse no que acabara de ouvir.  Em seguida me pareceu um tanto absorto, como se estivesse num pensamento tão profundo que margeou um rápido transe.  Depois, ainda sem mexer um músculo sequer, foi vagarosamente descendo o olhar esquadrinhando e assimilando meus trajes até chegar às minhas botas que já centralizavam uma considerável poça d’água em formação.  Imediatamente (ainda antes de me responder e de se mexer) através do vidro da janela buscou com os olhos a minha moto que com galhardia mantinha-se imponentemente altiva, como um puro-sangue indiferente ao temporal que caia lá fora.  Enquanto isso, fruto da calefação, eu ia aos poucos diminuindo a intensidade dos meus involuntários tremores de frio e olhando para ele aguardava pela resposta à minha pergunta.  Me pareceu que seria uma resposta simples: um sim ou um não.  Há ou não há um apartamento vago.  Objetivamente simples.


Mas tudo o que consegui dele para aquele momento foi um “vou verificar” antes de sumir pela porta que dava acesso da área do balcão às entranhas do estabelecimento.  Fiquei por ali me abrigando da tempestade enquanto torcia por uma resposta positiva.  Nesse meio tempo fui abordado por um senhor que também estava fazendo uma pausa por ali e que me mostrava uma foto minha feita em seu celular.  Ele exibia a foto como quem apresenta um troféu.  Bastante empolgado ele dizia que ficou muito impressionado como eu suportei aquele vento com toda aquela chuva.  Insistia em chamar a atenção para o quanto a moto estava inclinada para o lado mesmo na reta.  Dizia que estava vendo a hora do vento me derrubar e que se posicionou estrategicamente atrás de mim por vários quilômetros para me resguardar de ser abalroado pois disse que ele mesmo só me viu quando já estava extremamente próximo de mim.  Eu pensei comigo: “e eu não vi nada disso…”.  No momento em que aquela foto foi feita eu tinha meus olhos totalmente dedicados a tentar enxergar alguma coisa adiante de mim naquele penoso trajeto dentro de um temporal patagônico.  Pedi a ele que transferisse a foto por bluetooth do aparelho dele para o meu celular.  Ele sorriu e não sei se não compreendeu, mas enquanto eu percebia o regresso do rapaz do balcão, ele da mesma forma súbita que surgiu também desapareceu.  Fiquei sem o registro daquela angustiante situação.


Cheguei junto ao balcão e perguntei se havia ou não vaga para mim, se eu iria ou não poder pernoitar por ali.  Ele me disse que estavam preparando o quarto para eu ir conhecer.
Pensei comigo: “estranho, será que o hóspede anterior acabou de deixar o quarto e ainda não houve tempo para arrumar?”.   


Lá dentro do restaurante a temperatura era outra, havia calefação e também várias pessoas.  Isso por si só já deixa o ambiente agradável.  Mas eu estava encharcado e apesar do frio ter ficado lá fora meu corpo ainda estava gelado.  Como eu tinha de aguardar a arrumação do quarto pedi ao rapaz um chocolate quente na tentativa de me aquecer mais rapidamente.  Vi quando ele pegou uma xícara e a encheu de leite.  Em seguida foi junto àquela máquina de café expresso “afogou” no meu leite aquele bico por onde sai vapor.  Depois de deixar algum tempo borbulhando interrompeu o negócio e fez movimentos de me trazer a xícara com o leite já bem quente.  Mas enquanto ele dava a volta no balcão eu pensava: “e o chocolate, é só leite puro?”.  Quando ele apoiou aquela produção sobre a mesa eu vi que no pires ao lado da xícara haviam duas estreitas barras de chocolate.  Devo ter passado alguns segundos olhando para aquilo antes de compreender que tudo agora dependia apenas de mim.  Peguei então os lingotes de chocolate e cuidadosamente os mergulhei no leite quente.  Mexendo, mexendo e em alguns segundos eu tinha em minhas mãos minha xícara de chocolate quente.


Depois de uns vinte minutos o rapaz me chamou para conhecer o apartamento.  Eu já havia decidido que ficaria por lá.  Depois de estar aquecido voltar para aquele tempo implacável lá de fora?  Sem chance!  Me levantei da mesa e fui me dirigindo para o interior do salão mas vi que o cara estava caminhando em direção oposta, indo para a porta de saída.  Não entendi nada mas voltei para junto dele.  Ele me explicou que era lá fora, em outra edificação.  Legal… gostei… depois de aquecido tem de voltar lá pra fora…


Na verdade (vim a descobrir depois) não se tratava exatamente de um hotel mas eu ainda não tinha conhecimento dessa particularidade.  E convenhamos, mesmo que soubesse não havia opção.  Ou era aquilo ou a chuva e o vento gelado lá de fora.  Existe um ditado que diz: “o que não tem solução solucionado está”.  Localizados fisicamente ao lado do restaurante existiam dois galpões com oito ou dez quartos cada.  Entramos no primeiro galpão e depois de percorrer todo o corredor ele abriu a última porta e disse que o apartamento era aquele.  Alguém já ouviu falar na visão do inferno?  Bem que podiam ter quartos por lá pois eu iria preferir…  de imediato compreendi a indecisão do cara em me dizer se havia ou não vaga para mim.  Ele deve ter pensado: “esse Mauricinho chega nessa roupa de astronauta, numa BMW, nunca vai conseguir ficar num lugar assim…”  O quarto tinha três camas-beliche.  Os colchões não tinham lençóis nem os travesseiros tinham fronhas.  Numa delas não existia nem mesmo a forração natural dos colchões.  Era a espuma aparente.  Os travesseiros eram inacreditavelmente encardidos e as paredes do quarto eram grossas de tanta sujeira acumulada.  Não havia TV, apenas as ferragens do suporte e o banheiro acompanhava fielmente a mesma linha do quarto.  Enquanto eu olhava para o quarto o cara olhava para mim.  Percebi que uma das camas tinha um espécie de tecido pretendendo ser confundido com um lençol e sobre ele uma toalha dobrada.  Vi que havia um aparelho de calefação a gás e que já estava aceso.  Perguntei se estava no máximo e ele foi até lá e regulou o negócio.  Lembrei-me do mau tempo que fazia lá fora e imediatamente disse a ele que iria ficar com o apartamento.  Pelo menos ali eu estaria abrigado…


Fui até a moto e retirei só a bagagem necessária para passar aquela período até o dia seguinte.  Já havia decidido que não iria encarar o chuveiro daquele banheiro.  Já tinha tomado dois banhos naquele dia: um banho no aconchegante banheiro do hotel de El Calafate, e outro banho na chuva que peguei…
Depois de deixar minhas coisas no apartamento percebi que a única ocupação que teria por ali seria a TV do restaurante.  Mas eu estava um tanto fatigado pelo castigo daquele curto porém atribulado percurso.  Olhei para a cama coberta pelo tecido colocado sobre a espuma do colchão e não tive como evitar um pensamento de comparação com a box king size de lençóis bem branquinhos que havia deixado para trás naquela manhã.  Mas, “a necessidade faz o sapo pular” e eu pensei comigo mesmo enquanto olhava em volta de mim: “é o que tem pra hoje…”.
Peguei a surrada toalha que havia sido deixada aos pés da cama e a coloquei sobre o “travesseiro” a fim de evitar qualquer contato direto com aquele objeto.  Deitei assim mesmo como estava, sem retirar nenhuma peça de minha indumentária a não ser as botas e descansei por longas horas.


Mais tarde voltei ao restaurante para comer alguma coisa.  A chuva permanecia intensa, sem nenhuma mudança.  Haviam vários carros parados no estacionamento em frente.  Era difícil dizer, mas já devia ser final de tarde ou início da noite pois as pessoas faziam refeições o que me sugeriu ser hora do jantar.  Como já disse antes, há mais de um ano que não uso relógio e tinha deixado meu celular no apartamento, mas provavelmente deveriam ser umas sete horas da noite ou algo muito perto disso.  Todas aquelas pessoas ali, fazendo refeições, não era simplesmente uma coincidência.  Certamente era hora do jantar.  Pedi meu jantar e me foi colocado um prato de uma espécie de ensopado de frango com pele e tudo e mais um monte de outras coisas, umas submersas e outras boiando.  Acho que eram vegetais, sei lá.  Olhei em volta e o fato de estarem todas aquelas pessoas ali comendo funcionaram para minha cabeça como uma espécie de credencial do estabelecimento.  Criei coragem e mandei tudo pra dentro.


Minha moto permanecia lá na chuva, no mesmo lugar onde a havia deixado quando parei.  Não retirei quase nada da moto porque além de não ser necessário para minha estada, também me evitaria passar mais tempo debaixo de chuva desamarrando tudo que estava sobre ela.  Perguntei ao rapaz se ela poderia ficar ali mesmo, se não havia risco de mexerem em nada.  Ele disse que jamais houve reclamação de cliente mas se eu quisesse poderia botar a moto sobre uma espécie de passarela da calçada ao lado que vai para os dois galpões.  Essa passarela nada mais é do que uma estreita calçada que interliga a calçada do restaurante às portas dos galpões.  Forma uma espécie de “Y” onde na extremidade singular fica a calçada do restaurante e nas outras duas a porta de cada edificação.  O resto do terreno me pareceu que um dia já foi um jardim, mas naquele momento era apenas de terra simples.  E àquela altura já tinha virado um lamaçal pastoso.  No centro desse “Y” havia além dessa lama toda um grande arbusto que escondia totalmente a passagem para o segundo galpão.  Mas quem estivesse hospedado por lá quando fosse sair do restaurante já iria naturalmente optar por seguir pelo caminho da esquerda na bifurcação desse “Y”.  Havia entretanto uma interligação, também de cimento, que unia as duas pontas junto às portas, fechando a parte superior do “Y”.  Achei que ali seria o local ideal para deixar a moto pois como havia acesso direto e exclusivo para cada porta, não impediria o trânsito das pessoas para nenhum dos dois galpões.  Fiz isso.  Voltei até a moto, subi na calçada e abri o descanso lateral.  Mas a largura da passarela era insuficiente para a distância necessária que vai da base do pneu até a base do descanso.  Não poderia apoiar o descanso naquela lama pois não suportaria o peso da moto e afundaria direto.  Além do fato de que a altura da passarela era bastante superior (cerca de 20cm e mesmo que o terreno fosse firme a moto certamente tombaria porque iria ficar inclinada demais.  Vi que o piso entre os galpões era de rípio e manobrei a moto um pouco para dar distância suficiente para o descanso ficar no cimento da passarela.  Mas como a chuva não dava trégua, assim que foi possível tranquei o guidom e desci da moto.  Mas fiquei preso no espaço entre a moto e os dois galpões.  Precisei montar na moto novamente e descer pelo outro lado sendo obrigado a pisar naquela lama para sair dali.


A noite foi tranquila apesar de tudo.  É verdade que não pude me mexer muito pois queria evitar que a toalha saísse de cima do “travesseiro” durante meu sono.  Mas confesso que foi bem melhor do que imaginei a princípio.  Duro mesmo foi a mágica que tive de fazer para usar o vaso sanitário na manhã seguinte.  Dispensa comentários…


objeto para ser usado como travesseiro

Conflito de Identidade

A chuva diminuiu bastante a sua força, mas permaneceu durante toda a noite.  O dia seguinte já não era mais futuro, estava ali, se iniciando.  Era presente.  Fui até lá fora para verificar se minhas coisas ainda estavam sobre a moto e, é claro, ver também se minha moto ainda estava lá do jeito que deixei na noite anterior.  Depois de tranquilizar-me com o resultado positivo desta verificação era então preciso seguir meu caminho e tirar o atraso.


Na verdade essa ideia de atraso merece uma breve explicação: eu não tinha nenhuma data fixa antes de 4 de janeiro.  Somente neste dia precisaria estar em Urubici para o lançamento do evento do Bicho Véio, moto clube gaúcho do qual sou o embaixador no Rio de Janeiro.  Ainda era dia 19 de dezembro e eu estava relativamente perto, a cerca de 4200km de Foz do Iguaçu.  Já tinha entretanto decidido que a viagem tinha acabado, agora eu estava apenas voltando.  Aquelas várias opções que povoaram a minha cabeça, de voltar pelo Chile, Carretera Austral, compra de pneus em Osorno ou Santiago, Bariloche, natal com os amigos argentinos Flor e Facu em Neuquén etc. já tinham sido todas descartadas por mim.  Eu agora queria era voltar.  Tinha dezesseis dias disponíveis para chegar em Urubici.  Dava de sobra e com muita folga.  Talvez a pouca produtividade do dia anterior tenha reforçado em mim a sensação de estar atrasado.  Mas na verdade havia outro estranho motivo (certamente o principal) que me empurrava de volta ao Brasil.


Na minha programação original eu iria passar o natal em Buenos Aires e a virada do ano em Montevidéu.  Mas, tratando-se da pessoa que sou e como não podia deixar de ser, fui mudando essa ideia inúmeras vezes durante os três meses de viagem até ali.  Mesmo afastado há tanto tempo eu me comunicava com meus amigos quase diariamente através do Facebook.  Já havia recebido do Sampaio o convite para passar o natal com sua família em Foz do Iguaçu e do Junior para estar com eles em Cascavel na chegada de 2013.  Isso também recorrentemente vinha à minha cabeça.  Mas o que me fez decidir, “bater o martelo” de que deveria retornar foi uma situação nova para mim.  Um estranho motivo.  O fato de estar há três meses longe de casa não era problema para mim.  Mas o fato de estar há tanto tempo sem pronunciar meu próprio idioma foi (sem que eu percebesse) bagunçando minha identidade.  Escrever o português não substitui falar o português.  Eu conversava a todo instante com pessoas no Brasil, mas sempre por meio do teclado do telefone ou do computador.  Todos os sons que saíam da minha boca eram em espanhol.  Viajar sozinho pela América do Sul tem dessas coisas.  Você escreve, lê, pensa na sua língua original.  Mas quando fala não há brasileiros para ouvir então tem de ser em espanhol.  Isso foi causando uma considerável desordem na minha cabeça que eu cheguei ao ponto de por algumas vezes me pegar pensando em espanhol.  A todo instante, quando falava comigo mesmo, só adiante me dava conta de que estava falando em espanhol.  Tenho o hábito de fazer minhas orações diárias em cima da moto e por mais de uma vez iniciei a reza pronunciando mentalmente: “Padre nuestro…”  Na tormenta de ontem passei por uma grande pedra na beira da estrada na qual estava pintado em grandes letras brancas o nome “Jesus”.  Lembro que mentalmente li “Ressus” (com a pronúncia espanhola).
Pode parecer besteira mas isso foi tomando em mim uma dimensão tal que me senti como se estivesse perdendo minha própria referência.  Essas coisas aconteciam independentes de minha vontade.  Era como se pelo meu afastamento o tempo estivesse roubando minha identidade e dissipando minha personalidade.  Era hora de voltar!


Esse foi o estranho e verdadeiro motivo da minha decisão e do meu súbito regresso.


Mas voltando à minha saída do “hotel” em La Esperanza, eu estava ali feliz por ter visto que tudo estava conforme havia deixado na véspera: moto e bagagem.  Voltei para meu quarto e catei minhas coisas, as pus na moto e depois de vestir a capa de chuva dei um esquisito adeus para aquele alojamento.  Foi uma mescla de alívio por estar saindo dali, tipo “até nunca mais”, com um emocionado “muito obrigado por existir e ter me abrigado daquela tempo terrível que fazia lá fora”.  Eu sei, um tanto paradoxal, mas me fez rever meus conceitos e valores…


Já do lado de fora a chuva agora era tipo padrão, sem aqueles efeitos “hollywoodianos” da véspera.  Na moto tudo acondicionado e em mim capa de chuva, luvas, capacete, tudo ok.  Liguei a moto e fui saindo mas vi que pela manobrada de ontem a moto tinha ficado meio em diagonal à calçada/passarela.  Sair de ré estava difícil não só pela posição dela mas também porque como a moto não tem marcha a ré seria preciso meter o pé naquela lama com firmeza suficiente para empurrar a moto para trás.  Tarefa praticamente impossível de ser executada pois a lama estava ainda mais escorregadia pela incessante chuva que caía desde a véspera como também pela diferença de altura entre o piso da passarela e o piso ao lado dela (onde apoiaria meu pé).  Vi que a saída era engatar a primeira marcha e contornar aquela espécie de canteiro central seguindo todo o “Y”.  No centro desse canteiro havia aquele grande arbusto que me impedia um pouco de visualizar o piso adiante na segunda parte do “Y”, mas era o jeito.  Segui bem lentamente pois estava complicado achar lugar para pousar os pés e dar equilíbrio à moto.  Cheguei o mais perto que me foi possível da parede do segundo galpão para tentar numa única manobra vencer aquele ângulo agudo e fazer a curva para entrar na segunda perna do “Y”.  Eu estava naquela espécie de união das duas extremidades que fechava a parte superior do “Y”.
Já na primeira tentativa, depois de ter iniciado meu ingresso na segunda perna, a roda dianteira escorregou e desceu para a parte externa, parando apoiada na terra vinte centímetros abaixo.  Tudo o que eu não queria que acontecesse.  Tentei puxar de volta pelo guidom e nada.  Tentei baixar o descanso mas como a roda dianteira estava bem abaixo não havia altura suficiente.  Ou seja não tinha como acionar o descanso e apoiar a moto para que eu pudesse descer dela e, “no braço”, tentar subir a roda de volta.  Não tinha como seguir e descer para a terra porque além de ser uma espécie de “tiro no pé” pois certamente iria atolar na lama, havia um outro arbusto que me impediria de ir adiante.  Vi que mais uma vez não sairia sem ajuda da situação em que me encontrava.


Estava na chuva, sentado na moto, atrás de um arbusto que me isolava da visão da rua, sem poder sair de cima dela porque não era possível achar apoio.  O arbusto me atrapalhava mas tentei girar o corpo para avistar o posto e fazer sinal para alguém mas minha coluna não permitiu nenhum movimento.  Pensei em buzinar mas minha civilidade me fez lembrar que eram cerca de seis horas da manhã e com certeza haviam outras pessoas dormindo.  A ajuda que estava buscando poderia se transformar em problemas…

Fiquei ali parado sob chuva nem sei por quanto tempo, acho que uns vinte minutos.  De repente sai de uma porta lá da casa do restaurante uma mulher com uma toalha nas costas e se encaminha para um anexo que me pareceu ser um banheiro.  Chamei e pedi que ela buscasse um homem que pudesse me ajudar a sair dali.  Ela olhou e ignorou completamente minha súplica, desaparecendo por trás da porta do banheiro.  Mais outros vinte minutos e ela reaparece de banho tomado e olha para mim.  Voltei a pedir o auxílio dela, disse que sem ajuda não conseguiria sair dali, que ela por favor buscasse um homem para me ajudar a erguer a roda da moto.  Ela simplesmente respondeu que “no hay ningún hombre”.  E desapareceu definitivamente.  Aí está uma verdadeira dama… (juro que foi o que pensei dela).


Permaneci
muitos e longos minutos ali sentado sobre a moto até que saiu do “meu” galpão um cara com uma garrafa térmica na mão.  Pedi a ele se seria possível me ajudar e expliquei a situação.  Ele foi até a frente da moto e acertou as coisas deixando a roda dianteira sobre o piso de cimento.  Agradeci e fui saindo, cuidando para a roda dianteira não voltar a descer para a parte externa da passarela.  Tinha de ter cuidado também com a roda traseira para não escorregar para a parte interna.  Depois de vencida essa curva a coisa ficou fácil e fui seguindo até chegar na calçada e finalmente descer para o asfalto.

Paguei minha conta e finalmente segui meu caminho de saída da Patagônia.


Logo que der posto mais um pouco…….

5 respostas em “Ushuaia 2012

  1. Bruno ta bao demais acompanhas as escrituras, bem diferente do tempo que vc escrevia nas tabuas de madeira neh? hehehehe a ultima foto onde vc esta sentado ao lado da lareira parece o papai noel de férias hehehe continue escrevendo os seus mandamentos que estamos na leitura no desaconxeego do sofá ooo lugar ruimmm de ficar isso aqui deixa a gente doente, doi tudo, pescoço, lombar, cotovelo, queixo …

  2. e é mesmo, acredita que fiquei internado no hospital por tres dias, só pode ter sido esse danado sofá. ## Bruno, quando vc ficou enjoado la nas "Torres DEl Paine" com o guia Da Silva vc se sentiu igual a essa menina do video??hehehehhttp://www.youtube.com/watch?v=2fLe4fYPMHU

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