Ushuaia 2012

El Paro Nacional

Parei para dormir no Hotel El Valle, numa cidade da província de La Pampa chamada General Acha.  Não sei o que esse general achou, mas tá aí o nome da cidade argentina: General Acha.

Quando acordei, antes de sair em direção a General Acha, iniciei o trabalho de adequar todo o meu planejamento à minha nova situação.  Tinha a revisão de 60 mil quilômetros agendada na BMW de Neuquén para segunda-feira dia 26 de novembro.  Fiz esse agendamento ainda no Brasil, há dois ou três meses através de vários e-mails trocados.  Por pura obra do acaso hoje soube que dia 26 é feriado na Argentina.   Muita sorte ter descoberto isso!  Como fiquei muito adiantado no meu cronograma da viagem, pedi ao cara do último hotel para ligar para BMW e tentar alterar, reagendando e antecipando para sexta-feira 23.  Só aí percebi que se não estivesse avançado no tempo ia quebrar a cara na segunda-feira quando pontualmente no dia 26 chegasse na porta da concessionária em Neuquén.


Mas como eu vim parar aqui em General Acha?  Voltando um pouco no tempo: ontem, do dia 20 para 21 
de novembro, pernoitei em uma singular cidade próxima de Rosário depois de um dia bastante turbulento e carregado de tensão.  Logo que acordei ainda em Ituzaingó no dia 20 soube que havia sido iniciado um movimento nacional com a paralisação de todos os serviços, uma greve geral chamada por eles de Paro Nacional.  Minha missão então era conseguir passar o quanto antes de dois pontos principais: o conjunto Paraná/Santa Fé e a principal e mais difícil meta: passar por Rosário.  Sabia que a situação nas estradas seria politicamente nervosa, só não sabia o quanto.
Na entrada do túnel subfluvial que sob as águas do Rio Paraná interliga as cidades de Paraná e Santa Fé, vislumbrei as marcas de uma manhã certamente muito complicada.   Montes de cinzas negras revelavam que pneus foram queimados no meio da pista denunciando o que houve por ali mais cedo.   A polícia agitada tentando organizar a passagem do trânsito entre aqueles montes fumacentos.  Percebi que se tivesse chegado ali umas poucas horas antes o resultado de minha passagem por lá certamente teria sido outro. Na frente do pedágio do túnel mais montes negros de cinzas de pneus.  Dava para sentir o clima tenso, pesado.  Me convenci que ali houve um senhor conflito.  Deixei o túnel para trás e “enrolei o cabo” na direção de Rosário.  Minha apreensão era a possibilidade de ficar sem oferta de gasolina.   Essas manifestações são sempre mais fortes e intensas nas grandes cidades.  Eu já estava desde cedo enfrentando dificuldade para abastecer. Vários postos estavam fechados ou já não tinham mais gasolina.  De manhã, na saída de Ituzaingó já havia enfrentado uma grande fila no posto de combustíveis.  Apesar de Santa Fé ser a capital da província do mesmo nome, Rosário é uma grande cidade, a maior da província, e certamente a coisa por lá estaria ainda mais pulsante.

Saí do túnel e segui para a autopista que me levaria até Rosário.  Cruzei os quase 200 km da via expressa o mais rápido que me foi possível fazê-lo.  Nos arredores da cidade o panorama já me permitiu antever o clima: dezenas de caminhões se alinhavam estacionados ao longo de todos os espaços disponíveis: canteiro central,  acostamento, posto de gasolina, numa clara tentativa de evitar a proximidade com centro de Rosário, certamente o núcleo do conflito.  Alguns quilômetros adiante a coisa finalmente se apresentou. Centenas de caminhões formavam um surreal e estranho mar colorido que ocupou toda a extensão da autopista até onde os olhos podiam enxergar, obstruindo totalmente a via.  Pensei em parar para pegar a máquina fotográfica e registrar aquela cena com algumas fotos, mas em seguida lembrei que deveria era tentar vencer aquele ponto o mais rápido possível.  Às vezes por um breve instante ficamos retidos num sinal fechado, elevador que fecha etc.  Não tinha como correr o risco de ficar preso por lá fazendo companhia àquela infinidade de caminhões.  Eu não fazia ideia se a coisa estava quente, esfriando ou pior: ainda esquentando.  Aos poucos, à medida que me embrenhava naquele mundo de gigantes, na única passagem que encontrei, o caminho ia se estreitando até que se reduziu a um fino corredor no canto esquerdo da pista.   Inicialmente fiquei indeciso e inseguro, eu não estava no meu país, era um estrangeiro com as naturais dificuldades de comunicação.  Fiquei alguns segundos hesitando sem saber se deveria seguir ou me juntar àqueles monstros de aço, mas percebi que não havia alternativa para mim, eu tinha de tentar.  Apontei a moto para o estreito corredor.  Lentamente fui avançando em primeira marcha.  Avançando, avançando, até que cheguei ao início do estático e inusitado comboio e me deparei com vários manifestantes caminhando e gesticulando adiante de dois caminhões de lixo que foram atravessados na pista impedindo a passagem de todos.   Era um bloqueio e eu ali passando por eles na maior cara de pau.  Ainda lembro bem dos olhares de cada um deles, num misto de quem não estava acreditando na minha audácia junto com admiração pela moto.  O resultado foi uma apoplexia geral e eu fui passando… passando… e passei.


A partir dali já tinha entrado na cidade, estava em Rosário.  Podia sentir no ar e nas ruas esvaziadas o clima tenso. Cruzei ruas, avenidas, bairros, centro, com a sensação de que era um domingo em dia de final de copa do mundo.  Quase ninguém nas ruas.  Na verdade quase ninguém se atrevendo a estar nas ruas.  Subi em um viaduto que me levaria para a autopista de saída da cidade e de lá vi outros bloqueios como aquele que passei.  Me deu vontade de sumir logo daquela “panela de pressão” mas eu ainda tinha de resolver um problema: precisava abastecer.  Os postos de Rosário ou estavam fechados ou com manifestantes impedindo o acesso dos clientes.  Em Ituzaingó eu havia enchido o galão que carrego comigo como segurança, o que me garantiria combustível suficiente para me afastar dali.  Mas até onde me levaria?  Vi ao longe um posto com dois carros da polícia parados.  Diminui e fui me aproximando devagar e aos poucos me dirigindo para a bomba.  Parei ao lado dela…  Fui atendido!!!   Entendi que a polícia estava ali para garantir o abastecimento.

Eu já havia conseguido chegar até Rosário.  Mas para ter maior  tranquilidade precisava deixar a cidade para trás no meu caminho.  Essa era a minha meta quando saí de Ituzaingó naquela manhã.  Eram cerca de sete e meia da noite e já estava escurecendo, precisava achar um hotel.  Mas teria de ser adiante de Rosário.  Perguntei então ao frentista que me atendeu qual a próxima cidade com hotéis para que eu pudesse dormir.  Ele virou para um cara que vestia uma camisa amarela e repassou a pergunta.  Esse cara, muito agitado e “elétrico”, começou a falar um monte de coisas, rápido, eu entendia pouco mas via que ele estava me orientando (ou pensava que estava).   Falava muito de uma mulher de nome Cassilda.  Me parecia que ele queria que eu a conhecesse ou que só ela teria a informação que eu desejava.  De repente ele determinou que eu estacionasse a moto e fosse para a loja de conveniências com ele.   Virou para um outro que parecia ser um policial civil, sem farda e que estava com um rádio de comunicação na mão, e disse que eu pararia a moto numa área aparentemente proibida, cercada por aquelas fitas plásticas rajadas de amarelo e preto.  Levantou a fita e lá fui eu com a moto.   Já dentro da loja de conveniências outros caras conversavam e como num filme de Cowboy assim que entramos suspenderam o falatório e fizeram imediato silêncio enquanto nos acompanhavam com os olhos.  O cara de camisa amarela repassou para todos o meu questionamento.   Eles então começaram a falar entre eles.   Falavam muito da mesma mulher, essa tal de Cassilda.  Parecia que ela era a única pessoa que iria me trazer a solução.  Mas eles aos poucos foram se exaltando e agora falavam de uma forma que aí sim eu já não entendia mais nada.  Começaram a aumentar o volume de suas falas e em segundos estavam gritando e gesticulando entre eles.  Estavam brigando?  Discutindo?  Caramba!  Eu só queria o nome de uma cidade para dormir.   Fui eu que provoquei aquilo tudo?   Pensei em sair de fininho mas minha moto estava dentro da área das fitas, precisava de ajuda para alguém segurar a fita para eu sair.  E os caras ali, gritando e gesticulando.  Na minha opinião a um passo de sair um tiro, uma briga generalizada.  Repentinamente o cara de camisa amarela, no meio daquela confusão toda interrompe seu discurso, vira pra mim e me causando um sobressalto pergunta se eu queria um café.  Mas como assim?  Eles estavam ali, quase se matando e o cara quer saber se eu quero tomar café?  Eu quero é sair dali!!!

Só um deles, um que estava sentado junto da porta e lendo jornal é que não estava participando da discussão.   Ficou todo o tempo lendo o jornal, na maior calma, enquanto eles gritavam entre si.   Foi quando ele então falou uma coisa lá que todos imediatamente pararam, silenciaram por dois segundos e disseram que eu tinha GPS.  No final, de tudo que eles falaram só o que pude guardar foi o nome da cidade: Casilda.  A tal mulher que eu imaginei antes era na verdade uma cidade.  Antes de sair da loja um deles me perguntou se no Brasil também tem piquetes.  Diante de minha resposta positiva a vibração entre eles foi grande, quase como um gol.  Foi quando então percebi que eles eram piquetes que estavam ali no posto para evitar os abastecimentos quando certamente foram impedidos pela chegada da polícia. O de camisa amarela foi lá fora comigo, levantou a fita e eu finalmente fui embora dali.

Foi assim que fui parar em Casilda, essa cidade 50 km depois de Rosário.

Mas por que esse sufoco todo?   Quando eu estava tomando café da manhã em Ituzaingó, pela TV vi que foi declarado esse “paro nacional”.   Algo como (se fosse no Brasil) uma greve geral.  Onde tudo para.   Mas é tudo, tudo mesmo!   E eu lá!   Sem posto de gasolina, pedágios com cancelas abertas, sem trens, sem metrô, sem ônibus.   Nada!  Piquetes nas ruas para impedir a circulação de trabalhadores aos seus ofícios.  Nada de caminhões entregando mercadorias etc.  Na verdade me pareceu que os caminhões foram os principais alvos.   Eles então nem se aventuravam mesmo pelas estradas.


Mas por que Ituzaingó?  Se voltarmos ainda mais, eu estava em Santa Helena na casa do amigo Amir, vindo da 7a CNIBR que aconteceu em Bonito e que foi o motivo de eu fazer esse parênteses em minha viagem.  Eu já estava no Chile pela região do Atacama e voltei ao Brasil para estar presente na CNIBR do Brazil Rider’s.  Agora estava tentando retomar a viagem, voltando para aquele país.   Saí de Santa Helena pela manhã já na intenção de “enxugar” um pouco meu trajeto até Neuquén onde faria a revisão da moto.  Só não sabia que iria enxugar tanto, chegando 4 dias antes.

noticiário informando o “paro nacional”
Pukara de Quitor em San Pedro de Atacama

caminho para SONCOR
arte na montanha do deserto do Atacama
cabañas em Taltal
mirante do Aconcagua

Puente del Inca
dique de Potrerillos quase seco.  Aqui se represam as águas do degelo das montanhas e abastecem a cidade de Mendoza
Luján de Cuyo – próximo a Mendoza
por do sol em Miramar – Mar Chiquita
monumento ao Índio – caminho pata Tafí del Valle


General Acha

Amanheceu um lindo dia de sol depois da véspera com um fim de tarde chuvoso em General Acha.  Vibrei por trás da janela do meu quarto quando abri os olhos e vi tudo iluminado pelo astro rei.  Previ uma travessia tranquila pela Ruta del Desierto, caminho que faria naquele dia.  Na véspera um frentista de um posto de gasolina lá em Casilda havia me advertido que a travessia dessa estrada não é bom se fazer sozinho pois é “una ruta muy desamparada” e pensei que iria cruzá-la sob chuva.

No dia anterior assim que cheguei ao hotel em General Acha logo começou a chover e a temperatura caiu muito.  Até comentei com o funcionário do hotel que provavelmente eu iria percorrer a ruta del desierto debaixo de chuva no dia seguinte.  Mas ao contrário do que imaginamos o dia amanheceu claro e brilhante.  Tomei meu café (duas media lunas e café puro) e fui botar a bagagem na moto.  Claro que nem tudo poderia ser perfeito: o carioca aqui saiu do hotel de camiseta e quase congelou.  Lá fora estava um frio danado.  Fazia um sol brilhante, mas também muito frio.

Paguei o hotel e fui abastecer a moto.  Já de cara olhares atravessados e murmúrios.  Comecei a ouvir reclamações do jogo que acontecera na noite anterior.  O Brasil ganhou no La Bombonera o Superclássico das Américas, venceu da Argentina nos pênaltis.  Eu era tudo que os argentinos não queriam ver naquele dia: um brasileiro.

Finalmente rodando sobre asfalto, iniciei o percurso do dia: seguir até Neuquén.  Aos poucos, a cada km rodado, o frio foi aumentando e fui fechando as aberturas da roupa que são feitas exatamente para circular o ar.  Depois de tudo já mais que fechado, punho bem justo para evitar entrada do vento etc., tive de parar no acostamento para pegar na mala de tanque uma proteção para o pescoço.  Eu só pensava: Tudo bem, eu sei, eu já estou na Patagônia, mas se aqui já está assim imagina lá pra baixo…


Por falar em Patagônia, na véspera quando vinha pela estrada e entrei em La Pampa, havia uma placa de “Bienvenidos a Patagonia Argentina”.  O clima estava quente, até meio abafado.  A estrada vazia e eu ia a uns 130km/h.  Lembro que pensei: “se isso já é Patagônia vai ser moleza…”.  Baixei os olhos para o painel e procurei a indicação da temperatura ambiente: foi só o tempo de ler 32,5 e levar uma passarinhada pela cara.  O bicho explodiu na minha viseira!  Imagina o tamanho do susto que eu levei…


Mais adiante vi que o tempo estava fechando lá pela direita.  Sabia que em algum tempo, 
lá pelos arredores de Santa Rosa, eu iria virar numa estrada para esquerda e fiquei na torcida para isso acontecer antes da chuva me alcançar.  Mais uns trinta minutos e nos encontramos, eu e a chuva.  Ela chegou mas não molhou.  Eram pingos de chuva seca.  Sabe aqueles pingos secos?  Não?  Nem eu, mas eram assim, não molhavam.  O negócio mais esquisito, caia na viseira e escorria, mas era só.  Nem a pista ficou molhada.  Comecei a achar que eu estava alucinando, olhei para os carros que vinham em sentido contrário e vi que estavam com o limpador de pára-brisas ligado.  Mas não me molhava.  Acho que fumei um cigarrinho do demônio sem perceber porque juro que era assim: pingo seco!

Finalmente virei na tal estrada à esquerda, que liga Santa Rosa à General Acha.  O vento que me acompanhou o tempo todo, não deixando que eu me esquecesse dele, agora ficou de frente.  O cara é feroz!  Para conseguir me manter a 120 por hora a moto fez 12km/l.  Quando fui chegando em General Acha o céu ficou escuro e pesado.  Ainda faltavam cerca de trinta km e percebi que o bicho ia pegar.  Mais uma curva e o asfalto apontou para o único pedaço do planeta cujo céu ainda estava claro.  Finalmente cheguei e escolhi o hotel.  Tirei a bagagem e brrrruuuuummmmm…. começou a chuva.  Fui jantar a pé mesmo, num restaurante vizinho ao hotel e, como não podia deixar de ser, me molhei com pingos bem molhados, daqueles que parecem ter um litro cada um.


25 de Mayo

Hoje, 23/11/12, minha moto ficou pronta da revisão de 70000 km que fiz aqui em Neuquén.  Não fui buscar porque no hotel que estou não tem garagem.  Amanhã pego.  Mas já paguei e foi a metade do que paguei na revisão de 60000 em Yerba Buena.  Acho que o cara da Berlim Motos nos assaltou Caipira!

Desde que saí da casa do Amir em Santa Helena, passei pelas províncias de Missiones, Corrientes, Entre Rios, Santa Fé, Buenos Aires, La Pampa, Rio Negro e agora Neuquén.  Com exceção de Missiones e Neuquén, a impressão que deu é que a Argentina não está afundando só politicamente, mas fisicamente também.  Geograficamente falando mesmo.  É água por todo lado!  As estradas passam literalmente como ilhas no meio de tanta água.  Cercas, pastos, portões de fazendas, tudo dentro d’água.  Há momentos em que a água vem até à beira do asfalto, o acostamento é totalmente alagado.  Quando tem uma elevação a coisa melhora um pouco, mas logo vem aquela interminável planície e a água novamente se espalha.  Só em Rio Negro que a coisa melhorou desde Corrientes.

Intrigante o negócio, parece que está afundando…

Saindo de General Acha em La Pampa o negócio é plano e igual: deserto.  Você anda, anda e parece que não saiu do lugar.  Teve uma hora nessa tal de Ruta del Desierto que eu mais uma vez pensei que estava sofrendo de alucinações.  Andava e andava e olhava em volta e era tudo igual, não mudava.  Eu comecei a ficar em dúvida se estava mesmo andando ou se a estrada era uma grande esteira ergométrica.  A aparência era de que não havia saído do lugar porque nada em volta mudava, era tudo igual.  A única coisa que mudava era no painel da moto a indicação da quantidade de gasolina no tanque.  Mais de trezentos km acelerando para não mudar nada.  Só avisos e mais avisos para parar e descansar, e incontáveis carcaças de carros acidentados.


No final da Ruta Provincial 20, a Ruta del Desierto, há a RN 151 e a localidade de 25 de Mayo que faz divisa da província de La Pampa com a província de Rio Negro.  Há ali um posto de gasolina e obviamente parei para abastecer moto e corpo.

Acho que todos param ali.  Parecia uma feira livre em manhã de domingo.  E é claro que um brasileiro sozinho de moto, moto grande e carregada, não poderia deixar de virar o centro das atrações.  Foi quase impossível sair de cima da moto.  Devem ter sido umas 5480 fotos e umas 8000 perguntas.  Mas as 8000 perguntas divididas sempre entre: de onde sou, para onde vou, quanto custa a moto e quanto corre a moto.  Imagina um ser vivente quase “morrente” de sede, tendo de repetir 8000 vezes as mesmas respostas.  E ainda sorrir para as 5480 fotos!  Teve uma hora que eu tive de dizer que se eles não me deixassem passar eu ia urinar na calça.

Foi ruim mas foi bom…

Saindo do banheiro vi que ainda estavam olhando a moto e me chamaram para mostrar um vazamento.  Vi então que se tratava da minha almofada de gel que mais uma vez se rompeu sujando a moto e minha calça.  Ali mesmo no posto providenciei mais um remendo com uma bisnaga de “La Gotita” uma espécie de Super Bonder e uma fita isolante.  Tudo comprado ali mesmo no posto.  A aparência da cirurgia na almofada não ficou lá um primor, mas deu certo resultado.  Só não sabia até quando ela iria durar…


Logo a seguir, saindo do posto está a entrada em Rio Negro e há ali um controle sanitário semelhante ao que existe no ingresso ao Chile, com revistas às bagagens em busca de frutas etc.  Por sorte fui atendido por um cara que não quis encrencar e antes mesmo que ele perguntasse eu já fui dizendo que era tudo roupa pois sou carioca e estava morrendo de frio!  Ele riu e me mandou passar entre os cones e ir embora.


Em Rio Negro finalmente começaram a aparecer algumas elevações, moderadas, pequenos relevos.  E a rodovia é marcada por incontáveis engenhocas daquelas que ficam subindo e descendo aquele “martelão”, acho que algum tipo de mecanismo de bombear petróleo.  Mas mesmo assim a água na beira da estrada ainda se fez presente de vez em quando.  Aí não dá para não pensar: “esse petróleo já vai sair batizado desde a origem”.


uma pequena amostra da água nos campos.  Em muitos lugares até casas estão submersas

Ajuda providencial

Logo que entrei em Neuquén percebi que sem ajuda não chegaria à BMW Cordasco Austral para deixar a moto na revisão agendada.  Neuquén é uma cidade grande se comparada (em sua maioria) às outras por onde passei.  Infinitamente maior por exemplo que a pequenina General Acha de onde havia saído naquela manhã. O Sebastian Lopes (chefe de oficina da concessionária) nunca me passou o endereço da loja nos e-mails que trocamos.  Nem eu lembrei de perguntar.  Agora estava ali sem saber para onde seguir.  Andando meio que sem rumo passei por um motociclista que andava calma e lentamente numa Vulcan que como as Harleys-Davidsons era tracionada por correia dentada e não por corrente.  O cara estava vestido com aquele típico uniforme de bancário: calça social, camisa social, sapato social, colete de lã etc.  Reparei isso porque também vi que tinha nele um outro lado que contrastava muito com essa indumentária.  Ele usava um capacete nazista, cavanhaque daqueles mais compridos e bicudos, por baixo do capacete dava para ver que a cabeça era raspada e se não me engano usava algum brinco ou outra coisa do gênero o que me fez pensar que ali estava um motociclista que depois do trabalho assumia seu estereótipo de “biker old school”.
Mais adiante paramos num semáforo, lado a lado, e tive a oportunidade de perguntar se ele sabia onde era a concessionária.  Depois de uma breve explicação segui com a certeza de que teria de fazer a mesma pergunta muitas outras vezes adiante.  Novamente nos emparelhamos no semáforo seguinte quando ele espontaneamente se propôs a me levar até lá.
Chegando vimos que estava fechada para o bendito almoço argentino, quando tudo para.  Eram cerca de duas horas da tarde e só abriria às quatro.  Agradeci e o cara seguiu seu rumo no mesmo compasso lento de quando o abordei momentos antes.  Agora eu estava com duas horas disponíveis para encontrar o hotel que o cara lá de Casilda havia feito a reserva para mim.  Sabia que o nome da rua daquele hotel era Tierra del Fuego então informei-me com um cara que passava e que me pareceu ser uma espécie de guarda municipal.  Eu estava a uma quadra do hotel!  Pura sorte ter ficado num hotel tão próximo da BMW.
Deixei as bagagens (muitas!!!) e fui dar uma volta pela cidade.  Perto das quatro estava parado numa sombrinha na frente da concessionária.  Me acomodei na moto, pés no apoio avançado de pés, cabeça no baú traseiro e… dormi.  Ali no meio da rua.  Mais tarde ouvi ao longe alguém dizendo: “senhor…”.  Olhei e vi um cara sorridente com uma camisa que indicava trabalhar na BMW.

Deixei a moto e voltei para o hotel.  Agora eu estava com um novo problema: era quinta-feira e só teria de estar em Temuco no Chile na terça.  Tinha então cinco dias para preencher sabe Deus como e onde.  Decidi então que sairia de Neuquén no sábado.  Minha moto iria ficar pronta na sexta-feira final da tarde e a pegaria no sábado.  Só aí já gastaria dois dos cinco dias.

Pedi ajuda à recepcionista do hotel explicando minha situação de adiantamento no cronograma.  Disse que estava pensando em quando saísse de Neuquén seguir para Zapala, uma cidade próxima e que já me deixaria na cara do gol para a aduana.  Mas a recepcionista me desaconselhou, dizendo que eu iria ficar três dias numa cidade que não há nada para fazer pois Zapala não é uma cidade turística.  Ela me indicou Villa Pehuenia, uma pequena localidade no meio de lagos.  Fez as ligações para reservar algo para mim e achou em Moquehue, vizinha à Villa Pehuenia.  Estávamos num fim de semana com feriado na segunda-feira, o modelo argentino dos nossos feriadões.


Caminho para Villa Pehuenia

Saí de Neuquén sábado 10h, sabendo que iria encontrar 92 km de rípio para chegar ao meu destino do dia.  Para quem não sabe o rípio é uma espécie cascalho, mais ou menos como aqueles pisos de estacionamentos em pedra brita, só que composto por pedras redondas.  O caminho passa por Zapala e é todo asfaltado até Primeros Pinos.  A partir dali começa então o rípio.  Minha moto está com muito peso de bagagem e os pneus que estou usando são 100% para asfalto.  O traseiro então bastante gasto apesar da ajuda ímpar dos amigos do Brazil Rider’s do oeste do Paraná, Amir, Sampaio e Elói Gambá.  Inclusive os caras da BMW de Neuquén queriam anotar na minha ficha que foi identificada a necessidade de troca e eu não aceitei trocá-lo.  Ou seja: eu não estava com o equipamento ideal para aquele piso que iria enfrentar.  Ainda no Brasil fiz contato com a MotoAventura, concessionária BMW de Osorno, agendando a troca dos pneus para a ocasião em que passasse por aquela cidade.  São pneus que não são comercializados no Brasil ou na Argentina.  Eu ainda teria muitos quilômetros de rípio pela frente, mas também muitos mais em estradas asfaltadas.  Os pneus para utilização no rípio que são comercializados no Brasil e na Argentina se deteriorariam muito rapidamente no asfalto.  Esses que encomendei no Chile não.  São pneus alemães, Heidenau Scout K 60, próprios para uso misto.  50% off road e 50% asfalto.  Eu teria de “aguentar” até a minha chegada em Osorno.

Assim que passei por Primeiros Pinos deixei o asfalto e entrei no trecho de rípio.  Segui com cautela e tudo foi correndo como esperava.  Por vezes a moto dava uma escorregadinha mas nada que chegasse a assustar, pelo menos não muito.  Depois de algum tempo “peguei a mão”, identifiquei mais ou menos o comportamento da moto naquelas condições e ganhei mais confiança.  Comecei então a andar um pouco mais rápido que no início.  Ao contrário do que vinha acontecendo, agora eu é que passei a ultrapassar os carros que também seguiam naquela estrada.  Sei que normalmente, por experiência própria, é aí que as coisas inesperadas acontecem.  Tudo ia bem, faltavam menos de trezentos metros para terminar o rípio e iniciar o asfalto quando numa descida surge uma curva toda de areia.  Sabe aquela areia fofa sobre um piso duro, socado?  Não sabe?  Eu sei, agora mais do que nunca eu sei.  E sei de perto, bem de perto.  Nem deu pra ver o que aconteceu, quando vi estava me esparramando e deslizando no chão.  Não sei, vou chutar, mas acho que perdi a frente da moto, sei lá.  Só que ela caiu para dentro da curva e não para fora.  A curva era para direita e eu cai do lado esquerdo.  Muito doido o negócio.  Acho que a moto perdeu aderência escorregando pelo próprio peso na natural inclinação do piso da curva (para dentro).  Seria normal, numa curva para direita, que uma queda fosse com o lado direito da moto voltado para o chão.  Mas essa não, apesar de ser curva para direita foi o lado esquerdo que ficou em contato com o chão.  Só sei que arrastei no chão por cerca de 10 metros.  Creio que devia estar a uns 40 km/h, não mais.  Mas foi o suficiente para deixar uma marca de uns 10 m no chão.  No final a moto rodou e ficou de frente para o sentido contrário, virada para o lado de onde eu vinha.  Como era na saída de uma curva fiquei com receio de vir um carro e nos acertar, eu e a moto.  Eu estava bem, não sentia nada, mas era preciso sair dali.  A agonia de ter caído e a pressa de sair logo dali não me fez lembrar de tirar fotos da situação, uma pena.

Tentei levantar a moto e tudo que consegui foi uma fisgada na minha lombar.  A moto nem se mexeu.  Me posicionei de novo e nova tentativa: outra fisgada ainda maior.  Vi então que só haviam duas alternativas: ou eu esperava alguém passar para me ajudar ou teria de esvaziar toda a moto para tentar levantá-la.  Optei pela primeira e logo passou um carro para o qual fiz sinal.  O cara veio e tentou me ajudar, mas não havia onde segurar na moto, era tudo bagagem.  Orientei a ele que tentasse pelo baú traseiro que eu tentaria pelo guidão e banco.  Tentamos uma vez e a moto deslizou no piso e não subiu nem um milímetro.  Nova tentativa e a mesma coisa, a moto arrastava sobre o piso coberto pela areia mas não subia.  Vimos então a esposa dele sair de dentro do carro e vir em nossa direção numa clara intenção de se unir à nossa “força tarefa”.  O cara então pegou uma pedra e pôs na base do pneu traseiro e pediu à mulher que pisasse na pedra.  Nova tentativa, a moto foi subindo, subindo, subiu e minha lombar detonou.  Puxei o descanso lateral da moto e tentei baixá-la de volta para a esquerda a fim de apoiar a bicha no mesmo.  Quanto mais força eu fazia para a esquerda mais o cara fazia para a direita achando que ela estava voltando para o chão.  Eu tentava descer a moto para o descanso e ele fazendo força para o lado contrário.  Eu estava vendo a hora da moto dessa vez cair para o outro lado.  Eu dizia: ”para cá, para cá!!!!”  E o cara fazia força para lá.  Até que a mulher dele entendeu e disse a ele o que fazer.  Finalmente voltei a ver minha moto de pé, solta, sozinha apoiada no descanso lateral.  O cara foi embora com meus sinceros e profundos agradecimentos e eu fiquei ali, olhando para a moto com as mãos na lombar.  Acho que minha posição arqueado para frente com as mãos apoiadas nas costas fazia lembrar o “Véio Zuza”, personagem de Chico Anísio.
Subi na moto e fiz a volta pois meu destino era no sentido oposto ao que ela apontava.  Mesmo para fazer a volta a coisa foi complicada e difícil.  Eu ainda estava nervoso, cansado e “travado” pela lombar.  Lembro-me que naquele momento ali tão distante de casa me senti um tanto desamparado e solitário.  Parecia para mim que eu era o único habitante do planeta.   Percebi que além de fisicamente abatido estava também psicologicamente abalado.  Foi um instante muito marcante para mim…
Verifiquei que estava realmente muito solta e espessa a camada de areia sobre a pista.  Devagar e com cautela e pés ajudando pude sair daquele ponto e em menos de 15 segundos estava no asfalto.
Momentos que ficam para virarem histórias…

O lugar é realmente fantástico.  Deus fez essa parte do mundo num momento de muita inspiração.  O céu estava totalmente azul com sol brilhante.  Lagos de água muito azuis, cercados por montanhas nevadas e muita vegetação.  Paisagem de cartão postal e cenário de filme romântico.  Só que agora eu estava ilhado pelo rípio e com a moto nas já conhecidas e impróprias condições para esse tipo de piso.  Em Villa Pehuenia há asfalto, mas só lá.  Todo o entorno e acessos são de rípio.  Minha escolha é muito rípio ou pouco rípio.  Parece óbvia a resposta, mas é que o rípio mais curto é também o menos “tratado”, e o mais longo é o mais “conservado”.  Esse mesmo que passei para chegar até lá é tido como “tratado”.


Tinha a troca de pneus agendada (desde setembro) para quinta-feira em Osorno, e a esperança que isso me desse melhores condições para esse tipo de piso, até porque nessa época do ano chove o tempo todo em Ushuaia.  E pegar rípio debaixo de chuva, com a moto pesada e pneu impróprio é masoquismo demais…


Ok.  Eu agora estava em Villa Pehuenia, mas tinha ainda de seguir para Moquehue onde está o hotel que me foi reservado.  Fui seguindo pelo asfalto aproveitando cada centímetro do mesmo, como se fosse o último pedaço asfaltado das américas.  Pensava enquanto andava, como o equipamento pode fazer tanta diferença.  Esse piso que me derrubou eu passaria com “os pés nas costas” se estivesse com minha moto de trilha.  Porém com essa, com esses pneus e carregada como está, foi essa dificuldade.

Mais adiante me deparei com a aduana argentina.  Cones estavam impedindo a passagem.  Um militar da Gendarmeria me atendeu e lhe expliquei que não iria sair da Argentina ainda, que estava querendo apenas ir para Moquehue.  Ele me orientou a voltar na aduana quando fosse sair, pediu para ver meu passaporte e desejou boa viagem.  Antes de sair perguntei a ele se seria asfalto até lá e ele respondeu: 18 km de rípio.  Para quem já tinha rodado 92km, com “maestria e acrobacia”, completar mais esse percurso não era nada demais.


Moquehue

Assim que cheguei pude ver que na verdade o hotel é uma casa de fazenda.  O lugar é lindo.  Gelado porém lindo.  É, muito lindo… mas é gelado.  Mas é gelado gelado mesmo.  E bota gelado nisso!  Ambiente acolhedor, lareira acesa o tempo todo mas mesmo assim: gelado.
A senhora que me atendeu me levou escada acima e me apresentou meu quarto.  A primeira coisa que procurei ver foi se tinha cobertores na cama.  Isso mesmo, no plural: cobertores.  Eu queria me garantir, vários, muitos, montões de cobertores!  Ela mostrou que havia aquecimento a gás ao lado da cabeceira da cama e isso me tranquilizou um pouco.  Disse-me que já iria ligar para ir “temperando la habitacion”.
Claro!  Não deu outra!  O treco estava com defeito!  Ela desceu e subiu umas cem vezes, cada vez com uma ferramenta diferente na mão.  E eu com medo que aquele negócio explodisse pois não era elétrico, era a gás!  No final de inúmeras tentativas ela murmurou que necessitava de ajuda e abandonou a faina.

Tomei meu banho e eram cerca de cinco da tarde quando desci para o salão onde tinha a lareira.  Escolhi o lugar mais próximo ao fogo.  Jantei ali mesmo e fiquei por lá até meia noite e trinta.  Quando subi olhei para o aquecedor e vi que o treco estava aceso e chegando bem pertinho dele deu pra perceber um pequeno aquecimento.  Mas o negócio é muito fraco.  Não dá nem pra saída, está longe de atender às necessidades deste carioca friorento.  Entrei sob as cobertas e só fui me mexer pela manhã para levantar e sair da cama.  Naquela noite eu não dormi, eu desliguei.  Acordei na mesma posição que deitei…


Dia seguinte no café da manhã uma surpresa: não haviam medias lunas!  Mas apesar de um pouco mais favorecido a matéria era a mesma: o argentino e econômico desayuno de sempre.  Uma cestinha com algumas fatias de pão (a mesma que na véspera fora colocada na minha mesa de jantar a guisa de couvert), um pires com manteiga, outro com uma espécie de geleia, um bule com café e a xícara.


Depois de tanta fartura (não sei como não tive uma indigestão!), fui lagartear ao sol do lado de fora na varanda da frente.  Olhando a vida passar, cheguei a conclusão de que aquele lugar é uma espécie de hiato no tempo.  Pela rua de rípio em frente à Hosteria La Bella Durmiente (o hotel onde eu estava), quase não havia movimento mas passaram alguns carros durante o tempo em que fiquei por ali.  Todos (ou quase todos) antigos porém ainda muito novos e conservados, como se ainda estivéssemos na época deles.  Os hábitos por lá também são outros.  Não há nem internet nem tv no hotel.  Nem celular funciona.  Enquanto pensava isso, sobre esse hiato no tempo, como que para consolidar essa minha tese passa tranquila e lentamente um antigo e emblemático Alfa Romeo 2000, carro que teve a nossa versão brasileira, o FNM JK.  Veículo do início da década de 60.  Foi como uma viagem ao passado, muito legal.


Entretanto volta e meia eu me pegava pensando em como sair daquela ilha terrestre: um pedaço de terra cercado de rípio por todos os lados.  Minha melhor opção ali era o Paso de Icalma, com 55 km de rípio.  O nome desse passo já é bem sugestivo: Icalma…


Eu não queria deixar a região sem dar uma volta para tirar fotos e conhecer um pouco o lugar.  Mas também não queria ter de vestir toda a roupa de cordura só para isso, e qualquer outra roupa ficaria imunda de poeira.  Perguntei então à senhora Sonia, dona da hosteria se havia um carro para alugar ou um taxi ou um serviço parecido.  Questionado por ela revelei minha intenção.  Ela então disse alguma coisa como um pensamento alto que entendi ser algo que dizia que ela iria me levar.  Voltou-se para mim e perguntou se poderia ser mais à tarde.  Concordei com tudo e quando foi lá pelas três, quando estou novamente lá fora lagarteando, ela me grita em tom meio que cantado: “estoy lista!”  Ou seja: “estou pronta!”.  Olhei para ela e vi que estava em pose holywoodiana, me olhando um pouco por cima do ombro, assim meio de lado com uma das pernas um pouco dobrada, e usando um chapéu redondão, que também só tinha visto na cabeça das mulheres daqueles filmes americanos antigos.  Pensei comigo: “essa não… será?”


aqui acabou o asfalto e começou o rípio

difícil sair de perto da lareira

Tour particular

Depois de nos instalarmos no carro, ela iniciou um tour pelos locais mais interessantes.  Foi até bom ir com alguém que conhece o lugar pois já vai na parada certa evitando “passeios” errôneos naquele rípio infernal.
Vimos coisas incríveis.  Rochas com erosões naturais porém obedecendo padrões com uma simetria tão apurada que pareciam feitas pelo homem. Vimos também uma rocha que está (segundo ela) “se erosionando”.  O fato é que esta rocha está se desmanchando e com isso se forma uma espécie de rio de pedras.  Muitas vezes esse “rio” vem até a pista chegando a encobri-la impedindo a circulação.  Os residentes do local usam essas pedras para compor a camada de rípio das vias por onde passamos.  Vimos também uma quantidade enorme de paisagens à beira dos lagos da região.  Os lagos Moquehue, Aluminé, Poicahue, Pulmari, Ñorquinco e Pihue.  É realmente um lugar que merece mais tempo para se esgotar as atrações locais (ou chegar perto disso).

Na volta, quebrando o natural sossego, começamos a nos deparar com algumas motos vindo em sentido contrário.  A senhora Sonia não entendia o motivo de tanto movimento mas eu logo vi que se tratava de algum tipo de competição pois todas as motos tinham números aplicados nos locais próprios.  Elas passavam em grupos, aos montes de cada vez.  A certa altura chegou a ser impossível continuar devido a tanta poeira que as motos levantavam, fomos obrigados a parar o carro.  Já eram dezenas delas em cada onda, todas BMW.  Com atenção pude identificar o emblema do GS Trophy South America 2012
 numa delas que passou mais lentamente.  Estava então explicado o motivo de tanta bagunça: estávamos dentro e em sentido contrário de uma competição motociclística internacional, o BMW GS Trophy South America 2012.

Dia seguinte, dia de seguir viagem.  Tudo arrumado na moto e voltei a Villa Pehuenia para dar a última olhada na vila.  Foram mais 18 km de rípio até o asfalto, o mesmo caminho por onde já tinha passado dois dias antes.  Passando pelo soldado da Gendarmeria, avisei que estava em Moquehue e que iria até a vila para na volta fazer a minha saída daquele país.


Dei uma pequena voltinha (também não dá para ser maior devido ao tamanho da vila), comprei uma garrafa de água mineral para levar comigo e fui fazer o trâmite de saída.  Na Gendarmeria tudo tranquilo.  Na aduana uma pequena dificuldade com a saída da moto pois o cara não sabia onde relacionar a mesma no sistema.  Ligou para outra pessoa que pelo que entendi o chamou de burro dizendo que para veículos de países do Mercosul não há campo para discriminação, a saída é livre.  Ouvi mais uma vez um “buen viaje” e lá fui eu.



Voltando ao Chile

Exatamente na divisa entre os dois países, Argentina e Chile, termina o asfalto e se inicia o rípio.  Fui bem devagar para não fazer também uma análise microscópica do solo chileno como fiz no solo argentino.  Depois de uns 5 ou 8 km surge um pueblo onde está a aduana de entrada no Chile.  Esse passo que chama-se Paso de Icalma fica às margens do lago Icalma, que certamente lhe empresta o nome.  Tudo tranquilo na imigração, mas quando cheguei na aduana o cara me pediu o papel de saída da moto da Argentina.  Argumentei que veículo brasileiro não recebe esse papel por serem (ao contrário do Chile) países integrantes do Mercosul.  Pelo menos como foi assim que o cara da aduana argentina havia me dito, repeti.  O chileno me olhou e disse “- esses argentinos…”.

Tudo resolvido, era hora da inspeção sanitária na bagagem.  Mais uma vez dei sorte pois era também um cara de bom humor e me disse que só queria olhar o “top case”.  Abri e ganhei mais um “buen viaje”.  Foi então que perguntei por que caminho deveria seguir.  Todos eles me disseram que o melhor seria pelo mais longo, contrariando as informações que havia recebido no hotel em Moquehue.  Como eles são chilenos e a rodovia é deles optei por seguir o conselho deles.  Um virava para a esquerda imediatamente depois da aduana, que era o caminho indicado pelo pessoal da Argentina; o outro virava para a direita, no mesmo ponto, e era o indicado pelos chilenos.  Com a informação de que pela esquerda era mais curto porém com muitas curvas e subidas e descidas e o da direita era mais tratado, fui pelo da direita.  Vim descobrir depois que essa é a estrada que liga o Paso de Icalma com o Paso de Pino Hachado, fronteira esta por onde passaria se tivesse mantido a minha ideia de pernoitar em Zapala como inicialmente havia planejado até ser convencido do contrário pela menina do hotel em Neuquén.


Pois bem: lá fui eu seguindo a estrada.  A princípio ela se manteve em boas condições para o trânsito do meu pesado conjunto: piloto e equipamento.   Todo mundo sabe que nesse tipo de piso o ideal é se manter sobre o “trilho” formado pelos pneus na circulação dos carros, pois esse movimento além de compactar o piso tende a retirar as pedras mais soltas.

Mas como nem tudo acontece como desejamos, de vez em quando a coisa se apresentava, como direi… um tanto fofa.  A camada de pedras soltas ficava mais espessa me obrigando a não desviar nem um pouco do que já não era nem mais um “trilho” mas uma pequena marca de onde os carros provavelmente haviam passado.  E claro, como não podia deixar de ser, exatamente nesses momentos surgiam veículos em sentido contrário.  Isso me obrigava a ceder espaço e abandonar a parte mais compacta da pista.  Numa dessas saídas do “trilho” já não foi possível voltar e mesmo não desejando isso fui descendo para a parte lateral ficando literalmente atolado sobre a vala que margeava a via, composta por uma profunda camada de pedras.  Com uma moto leve a manobra é simples:  roda dianteira para cima, pés no chão e gás na moto que ela sai.  Mas naquele “caminhão” carregado e com pneu impróprio e já liso a coisa era outra.  Primeira tentativa: nada.  Segunda: a moto quase foi para o chão do lado oposto ao da pista, tive de me esticar todo para evitar que ela caísse.  Vi que não dava pra errar pois se ela tombasse eu sabia que só sairia dali com ajuda.  Desativei o controle de tração e tentei mais uma vez.  A moto começou a patinar e cavar dentro das pedras.  Fui então dando um balanço na moto, indo e vindo fazendo ela ficar em sentido diagonal, meio que atravessada, para uma tentativa final.  O perigo dessa manobra é que quando a roda dianteira sobe para a pista, o pé “falta” porque o meio fica longe do chão e se a moto patinar e não subir, é tombo na certa.  Voltei a ligar o controle de tração e fingi que estava na minha CR de trilha e dei gás na moto.  Seja o que Deus quiser…  com um certo cheiro de embreagem parei atravessado na pista, já no topo da mesma.  Havia saído da vala…

Segui um tanto ofegante e ainda mais alerta (para não usar a palavra assustado).  Subidas, descidas, curvas… tudo aquilo que o cara da aduana me disse que havia na outra estrada não recomendada por ele.  Foi então que pensei:  “se isso aqui é sem curva, sem subida e sem descida como será a outra estrada, uma montanha russa?”

Já seguia mais descansado quando avistei de longe, após uma sequência de curvas, uma longa subida em reta.  Tudo isso com o rípio naquela camada mais espessa.  Fui atento e vi que vinha um carro bem lá longe, mas se aproximando bem devagar.  Um pouco mais adiante vi que o carro havia parado e tinha aquelas luzes na capota.  Reconheci ser uma pickup dos Carabineiros, a polícia chilena.  Iniciei a subida e quando fui me aproximando deles, a cerca de 300 metros, saltaram e se colocaram no meio da pista me mandando parar.  Eu pensei: “esses fiduaégua (não exatamente isso) não têm idéia do sufoco que vai ser para sair daqui depois…”.
Atendi ao comando e parei.  Vieram sérios perguntando quem mais estava comigo.  Disse-lhes que estava só.  Perguntaram de onde era, de onde vim e para onde ia.  Apertavam com as mãos as bolsas presas à moto e perguntavam o que tinha dentro, pareciam nervosos, falavam os dois ao mesmo tempo num comportamento quase agressivo.  Queriam que eu levantasse o banco da moto, perguntaram o que havia em baixo dele.  Disse-lhes que eram só ferramentas e a bateria da moto.  Para ter acesso ao meu banco seria necessário desamarrar a bolsa que estava sobre o banco traseiro (garupa) para ser possível tirá-lo e dar então condições de retirar o meu banco.  Era muito trabalho para ser feito aparentemente por um capricho do policial, sem um motivo real.  Ignorei solenemente.  Mandaram-me abrir as malas para verificar o conteúdo das mesmas.  Eles faziam perguntas umas sobre as outras e davam ordens absurdas como essa de desmontar e expor toda a minha bagagem.  Isso tudo literalmente ali no meio da rua.  Aí eu já achei demais, foi a minha vez de mudar o tom e falar sério.  Perguntei por que isso tudo pois eu era um cidadão estrangeiro com entrada regular no país deles e que havia passado pela aduana de Icalma onde a revista já havia sido feita.  O outro policial circundou a moto e foi novamente apertando as malas que estavam do outro lado da moto e perguntando o que tinha dentro.  Disse que eram roupas e já irritado insisti em saber o motivo de tantos questionamentos já que a vistoria havia sido feita na aduana de Icalma onde tinha cumprido todos os procedimentos de entrada no Chile.  Então, talvez pela minha postura e inflexível resistência, deram-se por vencidos e desistiram da ideia de me fazer desmontar toda a bagagem ali no meio da estrada e me autorizaram a prosseguir.  Talvez pela minha indignação ante a possibilidade de ter de desarrumar tudo nem me lembrei em que piso estava e fui imediatamente vencendo aquela subida e saindo dali.  Andei mais uns 500 metros e cheguei ao asfalto e em seguida ao complexo fronteiriço do Paso de Pino Hachado.  Creio que os policiais estavam achando que eu teria entrado no Chile por um caminho clandestino, sem passar por controle aduaneiro nenhum.  Como viram que eu insisti muito que havia passado pelo Paso de Icalma entenderam o motivo de eu estar chegando por aquela estrada e desistiram da investida.

Já no asfalto não havia mais preocupação com o piso e então pude voltar a apreciar a natureza que fluía ao meu lado à medida que avançava pelo país.  Interessante como a vegetação muda completamente quando entramos no Chile e começamos o caminho do topo da cordilheira para o Pacífico.   O Chile é um estreito país, confinado entre a cordilheira e aquele oceano.  A não ser quando chegamos por mar ou pelo ar, o acesso terrestre vindo da Argentina é sempre de cima para baixo.  C
om exceção apenas à pequena parte do país onde estão Puerto Natales, o Parque Nacional Torres del Paine e a parte chilena da Terra do Fogo que estão do lado oeste da cordilheira, a linha divisória entre Chile e Argentina acompanha o topo da cordilheira.  Os Andes ali não têm vias com a mesma altitude da região do noroeste argentino onde alcançam brincando os 5000 metros.  Mas apesar de estarem a cerca de 1600 m no máximo têm também sua própria identidade.  Fui seguindo e apreciando o caminho quando logo a seguir vejo um aviso de pedágio e um túnel de pista e mão única.  É o túnel Las Raices, com pouco mais de 4,5 km de extensão.  O fluxo do trânsito interno é monitorado por um funcionário que controla um pequeno semáforo.  Se eu já não tivesse um pouco de moeda chilena comigo teria passado sufoco ali com dificuldade para pagar o pedágio…
O túnel é uma descida interminável e muito gelada, esfriando ainda mais à medida que se avança cada metro.  Lá fora estava fazendo cerca de 20° quando entrei.  Já no meio da descida naquele tubo infinito fazia 8° e o frio aumentava cada vez mais.  De volta à luz, uma fila em sentido contrário aguardava minha saída para então subir túnel adentro.

Eu havia feito o pagamento do pedágio meio apressado e senti que o dinheiro estava bem na beirada do bolso da calça, tinha entrado pouco e poderia cair.  Seguia pela habitual pista chilena de excelente qualidade.  Mas não havia acostamento, não tinha como parar para arrumar a grana no bolso.  Segui quilômetros e quilômetros com a perna imóvel até encontrar a entrada de uma fazenda onde parei e pude então resolver o acondicionamento da grana para relaxar a perna.



Batalha por hotel

Chegando na cidade de Temuco dei início à procura do hotel que havia reservado.  Pus no GPS o endereço e lá fui eu certo de que em breve estaria de banho tomado e roupa trocada, almoçando em algum restaurante.  Mas o GPS me levou a uma rua onde não existia o hotel.  Dei uma segunda volta no quarteirão e nada.  Eu havia feito a reserva pelo Booking.com mas chegando lá vi que naquele endereço não tinha esse hotel.  Iniciei então uma busca por outro hotel.  Se tem uma coisa que me chateia numa viagem como essa, desse tamanho, é ter de achar hotel todo dia.  Para a moto, salta, tira capacete, entra e pergunta, volta, bota capacete, anda, para e começa tudo novamente até achar um que tenha garagem e com preço aceitável.  É um saco!  Por isso eu costumo usar o Booking.com na véspera, antes de sair da cidade onde estou.  As vezes não se encontra um bom preço, mas na maioria das vezes dá certo.  O risco é que é preciso dar o número do cartão de crédito como garantia, acho que para evitar trotes.  Se você não aparece e não avisa cobram uma diária.  No meu caso que só ia passar um dia em Temuco, se não avisasse ao Booking a tempo pagaria dois hotéis naquela mesma noite.  Mas graças a Deus mais tarde tudo se resolveu com uma ligação (Skype).  Dia seguinte Osorno era meu destino.  Havia a troca de pneus agendada para aquela cidade.  Assim que acordei segui para Osorno.  Fazia frio naquela manhã em Temuco e já saí preparado, evitando ter de ir me abrigando aos poucos pela estrada.
Minha parada em Osorno tinha como meta a troca dos pneus.  Como não havia feito reserva prévia, assim que entrei na cidade iniciei a habitual busca por hotel.  Mas creio que por impaciência fiquei logo no primeiro.  Depois de descarregar as bagagens da moto decidi sair para fazer o serviço na MotoAdventure, que vim a descobrir depois que na verdade é uma concessionária da BMW em Osorno.  O endereço da loja estava guardado no fundo de uma mala e me daria muito trabalho para pegar então pedi ajuda à recepcionista do hotel que ligou para o auxílio à lista telefônica.  De posse do nome da empresa obtivemos os dados.  GPS novamente em ação e em dez minutos eu estava entrando na loja.

Acertos feitos, eu aguardava que o funcionário levasse minha moto para a oficina quando vi
 chegar um casal em duas motos iguais, GS Adventure como a minha.  Entraram no recinto onde eu aguardava e começaram a tentar uma conversa com a atendente em busca de hotel.  A conversa não fluía pois ela aparentemente só falava espanhol e eles tentavam no inglês.  Ela ligou para um hotel e tentava passar o valor para eles aceitarem ou não.  Mas isso em espanhol e eles respondiam em inglês e conversavam entre si na língua deles que me pareceu alemão.
Mas a coisa estava empacada.  A atendente com o telefone ligado com o hotel, que esperava por uma resposta e o casal que titubeava em aceitar o que não estava compreendendo.  Diante daquilo, eu que mal falo tanto o inglês quanto o espanhol me senti na obrigação de participar daquela Babel.  O básico dá para eu entender, coisas como número etc.  Então eu fui passando em inglês para o casal o valor que a atendente falava em espanhol.  No final aceitaram, agradeceram minha intervenção e iniciamos uma conversa, aí sim digna de Babel.  São Branko e Ingrid Pokorny, holandeses que em Antuérpia botaram as motos em um container e as desembarcaram em Miami.  De lá seguiram para o Alasca, desceram pela América central e estavam agora indo para o Ushuaia.  Depois vão subir em direção ao Brasil e então seguir para Buenos Aires, seu destino final.
Indicaram-me exatamente o mesmo pneu que estava botando na minha moto, era o que eles também usavam.  Conversamos ainda um pouco e ficamos de nos encontrarmos mais tarde, depois de deixarem as bagagens no hotel.  Mais uma vez deixei passar outra oportunidade de fazer fotos.  A Ingrid ainda chegou a fazer algumas e o Branko me mandou duas por e-mail.

Pneus trocados, balanceados, segui para o hotel e relaxei.  Meu medo nos últimos dias era exatamente não dar certo, por qualquer motivo, essa troca de pneus.  Na situação que eu estava era realmente fundamental para o desenrolar de minha viagem.


túnel Las Raices
pista sem acostamento
Branko e eu na concessionária BMW de Osorno, Chile

Alimentação difícil

Vou voltar um pouquinho no tempo para comentar uma coisa que ocorreu por um longo tempo:  desde que voltei ao Chile, vindo de Moquehue, que enfrentei dificuldade para me alimentar.  Não encontrava restaurantes, só lanchonetes.  Acho que eles são mais escondidos em Temuco e Osorno.  O fato é que fui obrigado a recorrer às praças de alimentação de shoppings.

Em Temuco foi aquele sufoco para tentar achar o hotel que o endereço não existia então terminei ficando numa hosteria familiar.  Funciona como um hostel normal, mas na verdade é um anexo da casa da proprietária.  São vários quartos numa respeitável edícula no fundo do quintal.  Só que a determinada hora a senhora se fecha na casa e não temos mais comunicação com ela, apenas no dia seguinte quando o café é servido na copa da casa principal.  As chaves dos quartos e do portão da rua ficam com os hóspedes todo o tempo.  Eu fui parar nessa hosteria por um equívoco.  Quando vi que não seria mais possível achar o tal hotel onde havia feito a reserva pelo Booking.com, pesquisei no GPS e o botei para me levar para um hostel chamado Pewmanruka, localizado na calle Francia.  Segui pela cidade seguindo as orientações e quando ele me indicou a chegada vi que o nome era Hosteria Paris, diferente do que constava no GPS.  Mas isso já me aconteceu várias vezes e não faz diferença alguma no final.  O importante é o lugar para ficar.  Parei a moto e fiz o check in.  Tomei um banho e fui dar uma volta a pé para tentar comer alguma coisa.


Ainda estava claro mas já era tarde, cerca de oito horas.  Tentei chegar a uma rua onde achei que tinha visto vários restaurantes mas não a encontrei.  Haviam várias placas indicando um tal de Portal Temuco e fui seguindo imaginando ser um centro ou um bairro.  Na verdade era um shopping desses que têm um supermercado em baixo.  Decidi investir ali mesmo e aplacar a fome que já me consumia.  Afinal a última coisa que eu havia ingerido tinha sido o café da manhã em Moquehue e aquela garrafa de água que eu comprei na rápida visita a Villa Pehuenia.

Achar a porta de entrada desse tal Portal Temuco foi uma dificuldade.  O negócio é escondido, não é como os nossos shoppings que têm portas amplas e às claras.  Acho que pelo clima eles fazem projetos pensando já no inverno ou então eu entrei pelos fundos.

Não consegui nada de bom e terminei no velho e certo McDonald’s.  Depois de comer percebi que somente a praça de alimentação ainda funcionava, no resto do shopping estava tudo fechando, eram nove horas.  Saí em busca da entrada para o supermercado que fica em baixo.  Eu queria comprar uma garrafa de água mineral para passar a noite.  No Chile eles bebem água da torneira numa boa, mas os sites de turismo sempre advertem para que evitemos esse costume pois nunca se sabe como nossos organismos irão reagir por não estarem habituados à essa prática.

Não achei a entrada do mercado.  Saí do shopping e já estava bem gelado lá fora.  Rodei tudo, dei uma volta no prédio e não vi a entrada.  Só os carros saindo.  Ainda pensei em entrar por ali mas depois pensei que seria mesmo barrado lá na chegada à loja.  Então decidi procurar um bar ou alguma mercearia, qualquer lugar onde eu pudesse comprar uma garrafinha de água mineral.  Rodei as ruas próximas e os quarteirões vizinhos ao meu e nada.  Todos os estabelecimentos, mesmo que de outros ramos de comércio estavam fechados.  Vi acesa ao longe uma geladeira dessas automáticas com latas de refrigerante.  Me aproximei e vi que estava dentro de um hospital que também me pareceu fechado, não havia movimento nenhum e tinha as portas de grade abaixadas por fora do blindex.  Vencido voltei à hosteria.  Fiz o caminho de volta ainda com redobrada atenção.  Já me aproximando, vi que o hostel que o GPS me indicava estava lá, na verdade duas casas adiante da que eu parei.  Eu havia era errado de estabelecimento e não o nome que foi alterado.  Quando finalmente cheguei em frente da hosteria correta, percebi que exatamente ao lado, no sentido oposto ao que saí, havia um restaurante.  Passei direto e fui me dirigindo à porta do mesmo mas também já estava fechado.  Fiquei intrigado e na dúvida se o mundo tinha acabado e só tinha sobrado eu,  era muita desolação.  Conformado com minha sorte usei minha chave no portão e entrei na hosteria.

Já dentro do terreno, enquanto caminhava ao lado da casa principal para chegar ao meu quarto vi pela janela da cozinha que haviam duas mulheres usando a pia.  Lembrei-me da minha garrafinha de água que havia comprado em Villa Pehuenia e que mesmo depois de vazia eu a havia prendido na moto para aguardar um local apropriado para descartá-la.  Era a minha chance!  Acelerei o passo, peguei a garrafa e voltei até a janela onde elas estavam.  Bati e pedi se poderiam me ceder um pouco de água.  Sorriram educadamente e uma delas esticou o braço e pegou a garrafa de minha mão.  Destampou, abriu a torneira, encheu, tampou e me devolveu.  Parece piada… E de mau gosto…


Na manhã seguinte lá estava eu de volta à Ruta 5, rodovia que me acompanhou desde outubro no norte do Chile ainda lá pela região do Deserto do Atacama.  Agora cerca de 2500 km mais ao sul, em direção a Osorno para tentar finalmente trocar os pneus da moto.



Um desvio com pedigree

Meu mais recente amigo, o internacional Hugo Plotkin, havia me recomendado conhecer Frutillar, uma pequena cidade entre Osorno e Puerto Montt, meu destino atual.  Posso dizer que se fiz um desvio que valeu a pena foi esse para conhecer Frutillar.  Que cidadezinha encantadora!  Na entrada a coisa é um tanto feiosa, mas depois que se chega ao lago o panorama muda completamente.  É uma mistura de  Lago di Como com Baden-Baden.  Teria sido uma pena não ter ido até lá.  A imagem do vulcão Osorno junto com o lago é de jamais se esquecer.  Gastei menos de duas horas por lá e foi um tempo muito bem empregado.  Essa parte bonita é uma espécie de bairro às margens do Lago Llanquihue chamada de Bajo Frutillar.  A cidade foi fundada em 23 de novembro de 1856 por colonos alemães.  Apesar da atividade agrícola e da agroindústria local, Frutillar tem tradição musical também.  Nessa parte à beira do lago existem vários adornos, esculturas e vitrines com motivos musicais.  Não sei se a cidade foi maquiada para comemoração de seu 156º aniversário que aconteceu cinco dias antes de minha passada por lá, mas a impressão de esmero na manutenção de tudo foi impressionante.  Conhecendo um pouco da cultura alemã, sinceramente creio que tudo é sempre assim por lá.

Valeu amigo Hugo, boa dica!



Frutillar

Seguindo pela água

A entrada em Puerto Montt foi tranquila.  É uma cidade muito interessante, arrumada, conservada, diria mesmo até bonita.  Afinal é a capital da X região, a Região de  Los Lagos.  Teria dois dias para conhecer melhor já que meu embarque só seria no dia 30 e ainda era dia 28 de novembro de 2012.  Dei uma pequena volta pela cidade e fui em busca do hotel onde tinha reserva feita através do Booking.com.  Hotel Seminario na Av. Seminario.  Fácil!  Mas apesar de muito bem ajeitado, com bom preço, boas instalações, boa cama de casal, tv led, excelente calefação, banheiro amplo e tudo limpo ou seja: muito bom apartamento.  Mas apesar disso tudo fica numa ladeira tão acentuada que é quase impossível deixar a moto sozinha, sem ficar em cima dela acionando o freio e dando equilíbrio ao conjunto.  E não tem calçada!  Isso mesmo, não tem calçada do lado do hotel.  Só há uma estreita calçada do outro lado da rua e mesmo assim não passa de 60 cm de largura.  É uma movimentada via de mão dupla o que dificulta ainda mais para quem vai parar no hotel.  Eu tive de subir e descer duas vezes estudando a situação até decidir como fazer.  Havia uma caminhonete usando o ínfimo recuo em frente ao hotel.  Como esse recuo não era suficiente para abrigar todo o veículo, me possibilitou para atrás dela e ficar “na sombra” em relação ao fluxo da rua.  Parei a moto engrenada e fui pedir para abrirem o portão da garagem.  O negócio é tão íngreme que fiquei com receio de entrar subindo e fui até a curva acima e fiz a volta para acessar a garagem descendo.  Se não fosse por essa condição (e levando em consideração de que estava no Chile), eu daria nota dez para o custo benefício do Hotel Seminario de Puerto Montt.  Paguei US$ 98 por duas diárias (R$ 210,00).

A cidade é muito agradável.  Ruas amplas e bem cuidadas.  Tem uma praça super badalada na beira do mar.  Na verdade a cidade toda está voltada para o mar, o próprio nome já diz ser uma cidade portuária.  Fez sol a maior parte do tempo mas isso não quer dizer que não estivesse frio.  O mais quente que peguei por lá foi uma tarde que fez 15°c.  Na maior parte do tempo fazia algo perto dos 11 a 13 durante a tarde.  Depois naturalmente a temperatura ia caindo só voltando a esse ponto na tarde do dia seguinte.  Mas isso não era o mais chato.  O vento é que incomodava.  Ele sim era muito frio.  Mas pode estar parecendo que não gostei da cidade: impressão errada.  Eu realmente gostei muito de lá.  Só que nem tudo é perfeito…  Lembro que numa tarde estava passeando e passando pela praça, me abrigando do vento gelado, e vi uns estudantes de camisa do colégio tomando sorvete.  Olhei com mais atenção e vi que todos ali estavam vivendo um dia de verão.  Carrocinhas de picolé e outras guloseimas.  As crianças menores brincando com bolas, os um pouco mais velhos correndo e brincando, os adolescentes em pequenos grupos conversando e os idosos tomando sol sentados nos bancos.  Eles viviam ali um dia de pleno e alto verão.  Mas seria mesmo possível, eu não estava sonhando?  Eu ali com frio do cão e eles tomando sorvete?  Acho que eles devem ter feito transfusão com sangue de pinguim!


No dia seguinte fui caminhando até o escritório da Navimag, empresa de navegação que me levaria de Puerto Montt a Puerto Natales.  Longe, muito longe.  Mas me senti bem de ter feito aquela caminhada, estava devendo
 ao meu esqueleto essa pequena e breve atividade.  Soube lá o horário para me apresentar no dia seguinte e o portão que deveria entrar com a moto. 

Na sexta-feira lá estava eu entrando no porto em direção ao navio no qual passaria quatro dias, cruzando mares internos, uma parte externa no Pacífico, glaciares e estreitos canais de fiordes, para então desembarcar em Puerto Natales.  Quando entrei no porto uma fiscal veio puxar conversa sobre esse estilo de vida.  Ela disse que também gostaria de levar a vida assim como eu, essa vida de viajante.  Achei engraçado como o que pode parecer tão normal para uns é visto com tanta admiração por outros.  Eu estava ali esperando o meu momento de ser chamado pela administração portuária para então iniciar o procedimento de embarque.  No decorrer de nossa conversa ela me perguntou se eu já tinha passado pela Romana.  Não compreendi bem e pedi para que ela repetisse a pergunta.  Novamente perguntou se passei pela Romana.  O que é Romana?  Foi difícil entender mas depois de alguns minutos vi que se tratava de uma balança.  Como disse que ainda não tinha feito nada, estava apenas esperando instruções, ela me orientou a ir na Romana 2, que fica no outro lado do pátio do porto.  Liguei a moto e fui lentamente andando pelo porto até que avistei uma placa “Romana 2”.  Fui me aproximando e vi enormes caminhões em fila para serem pesados.  Tomei meu lugar naquela fila e em poucos instantes estava como uma formiguinha entre elefantes, com caminhões adiante e atrás de mim.  Algumas dezenas de minutos depois era a minha vez de subir na balança.  Assim que parei a moto o operador me mandou sair de cima da plataforma para pesar apenas a moto, sem a adição do meu próprio peso.  Feito isso ele imprimiu uma ficha de controle para ser entregue na administração.  A moto sem mim deu 340kg.


O tempo embarcado é quase todo preenchido por emoções das obras de Deus (ou da natureza para os mais incrédulos).  É realmente inimaginável, só estando lá para conferir.  Foi caro mas com toda certeza valeu!  Lembro que quando fui comprar minha passagem li em algum lugar que era considerado ou eleito por alguma entidade o cruzeiro mais bonito do mundo.


Desembarcando em Puerto Natales fui procurar o Hostel Melinda onde havia feito reserva.  Difícil tarefa então pedi ajuda num posto de gasolina.  O frentista não conhecia mas um cara da TvRed que estava abastecendo a viatura disse que me levaria até lá.  Merrrmão!!!!!  O que é isso?!?!?!  Uma espelunca, fiquei com medo da minha moto enferrujar toda só de estar parada em frente e saí rapidamente dando uma desculpa esfarrapada com receio de pegar um tétano.  E  ainda me seriam cobrados US$ 126 por três diárias!  Resultado: estava literalmente na rua, tinha de achar onde ficar o mais rápido possível.  Passei em frente ao Hotel Martin Gusinde, um bom hotel.  Parei, fiz preço, chorei e fiquei.  Mas também fiquei espalhado num quarto melhor que aquele de Puerto Montt.  A calefação chegava a fazer calor.  Um verdadeiro paraíso naquele universo gelado.


Tomei um gostoso e civilizado banho, bem diferente dos que tomei no navio onde era necessário ficar apertando toda hora com a lateral do joelho o botão para sair água.  E lá a água é muito quente para meu gosto.  Não há controle de temperatura e apesar de ser friorento não gosto de banho muito quente.


Depois do banho fui dar aquela básica volta de reconhecimento.  Procurei pela agência indicada pelo pessoal da Navimag e contratei um Tour Full Day para o dia seguinte.  As sete e trinta estariam me pegando no hotel.


Hotel Seminario (sem calçada no lado do hotel) 

repare no peso da moto: 340k
aguardando no porto para embarcar no navio

apesar do frio um instante de sol.  Repare no canto direito da foto uma figura “quarando” aproveitando o sol

Puerto Natales

Tour Full Day

Alguns meses antes (em final de julho e começo de agosto) estive no deserto do Jalapão.  Até decidir optar por um guia, a cada saída ficava todo sujo, empoeirado, e batendo cabeça sem encontrar os lugares certos das atrações locais.  Para evitar passar pela mesma situação assim que cheguei em Puerto Natales comprei um tour Full Day para conhecer as maravilhas das redondezas.  A experiência com a senhora Sonia em Moquehue tinha sido boa, objetivando bastante a coisa.  Achei que seria muito mais proveitoso ir numa van com quem já conhece do que ir sozinho de moto.  E realmente foi, a ajuda do guia Huber, Uber, Hueber, sei lá… não consegui guardar (aprender) o nome dele, só o sobrenome que é Da Silva.  Como ele mesmo diz: tem de ir conhecer o Brasil pois tem nome de brasileiro.  Pois bem, com a ajuda do Da Silva fomos apresentados às fantásticas atrações do sul chileno, mais precisamente da região do Parque Nacional Torres del Paine.  Eu fui o penúltimo a ser abduzido pela van.  Ela ia de hotel em hotel pegando cada um dos nove turistas que compuseram o passeio junto com o Da Silva e o Marco (motorista).

Passamos em vários locais interessantíssimos.  Cova del Milodon, diversos lagos, vimos uma região com muitos Condores, uma outra parte repleta de Guanacos, rios, cachoeiras, montanhas rochosas etc.  Paramos para um café numa parada de 15 minutos.  Comprei apenas um café.  Dali fomos para o Parque Nacional, onde estão as tão famosas Torres del Paine.  Depois quando tudo já estava mais que visto e fotografado fomos nos encaminhando para um restaurante onde faríamos a parada de almoço.  Mas lá é tudo distante, quilômetros e quilômetros entre uma coisa e outra, levando as vezes trinta minutos ou mais pelas estradas de rípio (todas) para chegar na próxima parada.


Aí aconteceu o que eu nem me lembrei mas que seria mais do que certo de acontecer… onde eu estava com a cabeça quando comprei esse tour?  Claro, eu sou assim há 55 anos: simplesmente enjoei.  Comecei a ficar com aquela sensação de suor frio e a boca “aguando”.  Vi que um final trágico estava iminente.  Chegamos então no restaurante.  Parada de 45 minutos.  Entrei, peguei o cardápio, li um pouco… mas minha fisionomia não devia estar das mais amistosas e o Da Silva veio falar que poderia pedir a la carte ou o buffet etc.  Foi quando eu disse a ele que estava “mareado”.  Achava melhor nem botar nada no estômago.  Ele me recomendou ir lá pra fora respirar bastante ar, aquelas coisas que sempre se fala numa situação dessas.  Mas o meu medo, ou melhor, o meu pânico era que eu sabia que ainda estávamos no meio do dia e eu ali a léguas de distância do meu hotelzinho.  O que eu ia fazer da minha vida???  Pensei em pedir carona em alguma outra van que estivesse voltando direto para a cidade, mas mesmo assim eu estava longe e não resistiria por muito mais tempo.  Fui a uma pequena lojinha do lado de fora do restaurante e expliquei ao cara o que estava acontecendo comigo, perguntei se ele teria algo para me ajudar.  Ele recomendou um chiclete pois segundo ele o fato de ser doce ajudaria.  Comprei e cheio de medo comecei a mascar um.  Claro que não fez efeito nenhum.  Procurei os banheiros e vi que ficavam distantes, bem retirados dali o que me dava bastante condição de privacidade.  Fui então para lá na intenção de antecipar o que seria inevitável no decorrer do nosso tour.  Fiz até força para acontecer, mas estava com o estômago vazio e nada aconteceu além de umas cuspidas no vaso.  Sai do banheiro desolado, o que eu ia fazer agora?  Voltei caminhando para o restaurante.  O Da Silva estava lá fora e me perguntou como estava.  Diante da minha resposta ele decretou que eu iria no lugar dele, no banco da frente.  Isso realmente surte efeito comigo.  Parece coisa de menino mimado, mas desde garoto que se eu ando no banco traseiro eu enjôo.  Só que ali eu já estava enjoado.  A coisa funciona para que eu não fique enjoado porém eu já estava.  E muito!  Claro que aceitei.  Venci meu constrangimento de destronar e afastar o guia de seu lugar, junto ao microfone e em lugar de comando para tentar evitar constrangimento maior.  Quando entramos ainda brincamos que a partir dali teríamos novo guia etc.  Mas apesar da encenação a situação não era nada descontraída para mim.  O fato é que eu consegui controlar um pouco o negócio.  Não melhorou, mas também não foi naquele crescente habitual que eu já tão bem conheço.  De vez em quando dava aquela apertada e eu fechava os olhos, respirava fundo e pedia a Deus que me ajudasse.


E fomos assim, a cada nova atração parávamos, saltávamos, tirávamos fotos, e voltávamos cada um para o seu lugar: o Da Silva no penúltimo banco e eu no da frente.


Até que chegamos na área da visitação ao lago Grey.  Nessa parada o Da Silva não nos acompanhou.  Nos levou até uma espécie de púlpito com um mapa afixado a ele e explicou todo o nosso trajeto.  Era necessário caminhar por uma hora.  Passaríamos por uma ponte molenga sustentada por cordas, dessas de filme das selvas, por uma trilha que nos levaria até o início da praia, de onde depois caminharíamos até a sua outra extremidade.  De lá poderíamos ver o famoso glacial Grey.  Além (naturalmente) dos icebergs boiando no lago Grey.  Na verdade já era possível vê-los desde o início da caminhada na praia.


Logo que cheguei na ponte havia uma placa que alertava para o máximo de 6 pessoas.  Outros turistas atravessavam a ponte e achei prudente evitar um banho naquela temperatura.  Esperei ela esvaziar e dei início à minha travessia.  A bicha foi balançando muito e no meio deu um ventão que eu pensei que ela não ia resistir. Mas felizmente passei e comecei então a caminhada pela trilha.  O Da Silva tinha dito que teríamos trinta minutos para ir e mais trinta para voltar.  Já não uso relógio há quase um ano, mas na minha cabeça era só acompanhar o grupo que tudo estaria sob controle.  Mas o negócio é longe, muito longe.  Haviam muitas vans e muitos ônibus no estacionamento, o que indicava que também seriam muitos turistas por lá.  Dito e feito.  Na praia eram vários grupos, uns ainda indo e outros já voltando.  Chegou num ponto em que eu já não sabia mais quem era quem, qual era o meu grupo.  Eu andava e andava e o fim da praia nunca chegava.  Eu levava comigo de um lado a bolsa com a máquina fotográfica e a filmadora.  Do outro uma garrafa de água mineral que eu havia trazido já imaginando sentir sede numa situação dessas.  Parece pouca coisa mas àquela altura tudo isso já pesava uma tonelada.


E o fim da praia não chegava.


Eu enjoado, andando que nem um condenado numa praia fofa feita de pedrinhas, há pelo menos 30 minutos, ventando pra cacete, frio pra cacete, o que mais de ruim poderia acontecer pra piorar?

Conta aí até três.  Isso mesmo conta até três… contou?  Um, dois, três.  Pois é: foi esse o tempo que levou para vir galopando lá dos infernos uma nuvem e começar a chover.  Quando dei por mim eu estava sozinho na praia, todo mundo já tinha voltado e o retardado aqui ainda andando no sentido contrário.  Fiz meia volta e iniciei todo o martírio de andar tudo de novo.  A bolsa e a garrafa de água já pesavam agora uma tonelada cada uma.  Na saída para o início da caminhada o Da Silva alertou para não esquecer de proteger os ouvidos do vento frio mas o capuz do meu casaco não parava no lugar.  Estava tudo uma beleza!!!  Andei, andei e andei.  Só me dei conta que na ida a trilha foi em descida agora na volta quando me deparei com ela em subida.  Enjoado, com frio, no vento, chovendo e subindo carregado, que ótimo.  Melhor impossível.  Quando finalmente cheguei na ponte vinha um monte de gente vestida com aquelas capas de chuva náuticas amarelas.  Umas quinze ou vinte pessoas.  No barato!  Alegres, dando rizadas e brincando entre eles.  Tudo retardado!  Para estar sorrindo numa situação daquelas só retardado.  Esperei um pouco do meu lado para ver se eles iam se dividir em grupos e me dar a chance de cruzar antes do batalhão acabar a travessia.  Mas como vi que isso não ia acontecer fui caminhando e a ponte balançando ainda mais.  Eles paravam para tirar fotos, fingindo cair da ponte e eu ia ficar ali esperando aquilo acabar?  Aos poucos eles iam se deslocando metro a metro.  Eles vindo e eu indo.  No meio do caminho olhei para frente e vejo o Da Silva me olhando com cara de apavorado.  Os olhos pareciam maiores que o próprio rosto dele.  Sabe aquilo que acontece em desenho animado?  Que o olho sai do rosto e fica grandão?  Pois é, foi essa a impressão que eu tive…  Quando passei por ele falei “I’m the last one…”  Ele respondeu: “Don’t worry”.  E veio caminhando atrás de mim até a van.  Estava mais do que consolidada a minha condição de ancião prejudicado e sob cuidados…  Entrei na van e nem olhei para os que estavam na parte de trás.  Fiquei calado por pelo menos 40 minutos.  Só fui falar quando eles fizeram mais uma parada para fotos.  Ao abrir minha porta a garrafa que estava no meu bolso caiu fazendo um barulhão no estribo do carro.  O Da Silva correu pensando que era eu que estava caindo eu acho.  Olhei para ele ainda sentado no carro e ele desconversou disfarçando dizendo que pensou que tinha sido a máquina fotográfica que havia caído.  Ele pensou é que era eu que estava desmontando mesmo…


Da Silva e uma turista do México

Condores

Guanacos
Cascata Del Paine
Torres Del Paine

Lago Grey

Onde o vento não fez a curva

Dia seguinte, ainda em Puerto Natales antes de seguir para Punta Arenas, fui a uma agência dos correios e enviei para o Brasil um pouco do meu excesso de bagagem.  Coisas que já não usaria como roupas para temperaturas mais altas etc.  Se na volta quando estiver subindo para latitudes menos negativas sentir falta dessas tralhas dou um outro jeito e resolvo a situação.  O que não dá é para ficar levando tanta coisa que só faz a moto ficar pesada e instável nos caminhos sem asfalto.

Resolvida a remessa fui para o hotel, paguei e deixei Puerto Natales.

Boa estrada, bom asfalto mas muito vento, muito!  Incrível a força que o vento exerce sobre a moto (e sobre mim!).  Quando é lateral faz com que a moto vá o tempo todo inclinada ao contrário, compensando a pressão dele.  Frontal a coisa é um pouco alternante: ou faz força oposta ao motor, diminuindo a velocidade, ou fica oscilando de um lado para o outro, mas sempre frontal.  Isso faz com que a cabeça da gente fique igual àquele braço do boneco do posto: sem controle balançando de um lado para o outro.  Delicioso…
Há momentos em que você não sente o vento mas isso não significa que ele não esteja lá.  É que está vindo pelas costas.  E isso causa um efeito ainda mais perigoso pois faz com que a moto freie menos e ande mais rápido sem você sentir ou querer.  Houve uma hora em que o vento veio por trás e aconteceu uma coisa impressionante:  eu estava a uns 120 ou 130 km/h e senti a minha cabeça sendo empurrada para frente.  Sabe quando a garupa bate capacete contra capacete e te empurra para frente?  Pois é.  A 130 km/h o vento vinha com rajadas que empurravam minha cabeça para frente.  Que velocidade seria essa?  Chega a ser assustador…

Já quase chegando em Punta Arenas fui parado por dois Carabineros que estavam medindo a velocidade dos veículos na rodovia com um radar de mão.  Me mandaram encostar e o que estava com o radar disse logo que eu estava a 113 km/h.  Eu já havia diminuído a minha média em virtude do vento, estava perigoso ir mais rápido.  O segundo policial veio então me pedir os documentos.  O do radar alertou que não deveria ir tão rápido porque o vento poderia me lançar fora da estrada.  Confesso que achei um exagero mas aproveitei para concordar dizendo que ele veio por trás empurrando meu capacete para frente, e inclusive a todo momento eu tinha de reduzir porque ele me fazia ir mais rápido do que eu pretendia.  Claro que isso foi já uma tentativa camuflada de justificar meu excesso de velocidade.  Aquele trecho da rodovia era de 100 km/h e segundo eles eu estava a 113.  Comentei sobre a força do vento que eu jamais havia visto coisa assim, que no Brasil esse vento não existe.  Voltaram a me alertar que ele poderia me derrubar ou me lançar fora da estrada.  Mais uma vez fingi acreditar, mas eu estava mesmo era preocupado em parecer um tanto refém daquele vento e dos efeitos dele para minha condução acima do limite de velocidade.  Depois de um papinho com eles perguntei: o que vocês querem mesmo, meu passaporte?  Me mandaram seguir, escapei dessa…


Entrei em Punta Arenas e como de costume fiz aquele meu pequeno tour de reconhecimento inicial.  Mas o danado do vento não me deixava em paz, estava lá o tempo todo atrapalhando meu equilíbrio.  Resolvi então seguir para o Hostal Patagonia pois tinha reservado duas diárias a US$ 134 as duas.  Parei a moto no canto da rua e botei o hotel no GPS.  Andei cerca de 50 metros e um semáforo vermelho me fez interromper a marcha.  Quando já ia parando veio um vento tão forte que vi uma mulher na esquina, tentando andar para frente, totalmente inclinada, e sendo empurrada para trás.  Impressionado observei isso por poucos segundos pois foi o tempo necessário para esse mesmo vento me derrubar.  Fui ao chão eu e a moto.  Imagina você parando no sinal e duas pessoas te empurram a moto de lado.  Mas não é empurra e para não!  É empurra, e empurra, e empurra.  Constante, sem interrupção até você cair.  Parecia que tinha uma corda amarrada no guidão da moto e um carro saiu puxando para o lado.  Impressionante.  Caí estatelado.  Dessa vez, ao contrário do tombo na areia chegando em Villa Pehuenia, doeu… Achei que tivesse quebrado a mão direita.  Doía muito.  Atrás de mim vinha um pequeno caminhão com três pessoas que imediatamente saltaram e vieram me acudir.  Deve ter sido bonito de ver de camarote como eles viram.  Eu caí apartado da moto, um metro eu acho.  Fui meio que lançado de cima dela.

Os caras correram para mim e enquanto eu me levantava dizia que nunca vira um vento desses.  Pedi ajuda para erguer a moto, agradeci e saí com extrema cautela e atenção.  Mas ainda com a certeza de que alguma coisa de ruim tinha acontecido com a articulação da base do meu polegar direito.  Doía muito, e a unha do mesmo dedo também doía.  Virei a esquina e lá estava meu hotel.  Parei no cantinho da rua, junto ao meio fio e fiquei um tempo ali, “curtindo” a dor e esperando melhorar um pouco antes de entrar.  Naquele momento tive plena convicção de que minha viagem estava acabando ali.  Bom e contumaz conhecedor da dor de uma fratura, intimamente imaginei que estava ali mais uma vez aumentando minhas estatísticas.  Lembrei do meu amigo Gilson Miranda que também interrompeu uma viagem à Ushuaia por uma situação de queda.  Foi aí que me veio à mente o alerta dos Carabineros na estrada a respeito da força dos ventos.  Nunca se deve desprezar a experiência alheia…

Depois de assumir meu quarto no hotel, saí para dar uma volta a pé, precisava cortar meu cabelo pois já estava fazendo mais de dois meses que havia saído de casa.  O vento realmente faz parte do cotidiano daquela cidade, mas aquele dia era um dia especial.  Comprovei isso no dia seguinte pelos diários que traziam a notícia de rajadas de até 140 km/h.  Eu mesmo passei, a pé, pela mesma situação daquela mulher que me tirou a atenção na esquina que caí.  Em mais de um momento fui empurrado para trás e as vezes com a nítida sensação de que seria derrubado.  Mais uma situação que não dá para descrever, só ao vivo.


Antes de descer do hotel para dar essa caminhada passei um Gelol na articulação da mão que ainda estava doendo.  Cheguei realmente a me conformar achando que minha viagem estava acabando ali.  Mas depois de mais ou menos uma hora a dor foi amenizando até que passou a só incomodar quando tocava na articulação atingida.  Por mais de uma semana ainda doía quando encostava no local, mas felizmente e graças a Deus não atrapalhou em nada na condução da moto.


No dia seguinte peguei um “colectivo” e fui conhecer a Zona Franca de Punta Arenas.  Para quem está habituado a visitar  Ciudad Del Este no Paraguai, essa zona franca não tem vantagem nenhuma.  Mas valeu como curiosidade e conhecimento.  Na saída peguei um taxi para voltar ao hotel e pedi ao motorista que antes me levasse até a estação do buque que vai para Porvenir.  No dia seguinte teria de estar lá e para evitar possíveis imprevistos já queria entender e conhecer o local.  Ao contrário da travessia pelo norte da Terra do Fogo que é ininterrupta, aquela de Punta Arenas só ocorre uma vez por dia.  O motorista ainda me orientou a estar 45 minutos antes da hora da saída da balsa para comprar o bilhete.  Foi bom esse alerta, porque quando cheguei havia fila na bilheteria e foi o tempo de eu comprar e embarcar com a moto.

O tal do “colectivo” nada mais é do que um taxi que vai fazendo uma linha fixa, mantendo o itinerário, e lotando de passageiros como num ônibus.  Funciona como um ônibus, tem o numero afixado na capota com o itinerário e vai parando, pegando e deixando passageiros.

No hotel pedi ao recepcionista que ligasse para o Hotel España em Porvenir e fizesse minha reserva.  Resolvido isso, no dia seguinte lá estava eu embarcando no barco com destino àquela cidade.



O tempo e o vento

Porvenir é uma cidade é gelada, como todas aliás…  Mas o hotel é muito bem aquecido.  Quando cheguei não sabia bem se ficaria um ou dois dias por lá.  Ainda estava adiantado para minha próxima data fixa que era a segunda-feira 10 de dezembro, dia em que deveria estar chegando em Ushuaia pois naquela cidade já tinha reserva feita e paga antecipadamente.  Cheguei em Porvenir ainda na sexta-feira e poderia ficar por lá ainda mais um dia se quisesse.  Nos meus cálculos teria de pernoitar em Rio Grande no domingo para então na segunda-feira seguir para Ushuaia.

Fui dormir depois de um bom jantar, sem sequer ter saído do hotel.  No dia seguinte escrevi o texto abaixo:



“Hoje resolvi permanecer mais um dia aqui em Porvenir.  Não pelas atrações da cidade, até porque ainda nem saí do hotel desde que cheguei ontem, ainda não conheci nada.  É que está chovendo com aquele tempinho fechado, e eu imagino a temperatura lá fora…  Ontem no final da tarde fui até lá fora pegar uma garrafa de água que tinha deixado dentro da mala que viaja sobre o banco traseiro da moto e pude sentir as circunstâncias da vida real lá de fora.  O único ponto positivo nisso é que já dentro do hotel quando abri a garrafa para beber vi que a água estava geladinha.


Na internet a previsão do tempo para amanhã é de tempo encoberto porém firme.  Como estou adiantado em relação à minha reserva em Ushuaia (tenho um dia de folga) vou usá-lo agora.  A chuva em si não me incomoda em nada.  O problema é enfrentar 180 km de rípio a cerca de 6°c, num vento doido e ainda com chuva.  É muito.  Se posso evitar um dos incômodos vou evitar pelo menos a chuva.  Amanhã eu sigo para Rio Grande, voltando ao território argentino.


Como de costume a todo instante estou alterando meus roteiros.  Creio que pela enésima vez alterei meu trajeto da volta.  Já havia decidido intimamente que não iria mais passar por Montevidéu, Punta del Este etc., tampouco Buenos Aires.  Só não sei ainda ao certo por onde vou, se volto ao Chile e subo a Carretera Austral, se vou a Neuquén visitar os amigos Flor e Facu Cis que fiz em Moquehue, se vou a Osorno comprar mais um par de pneus… sei lá, ainda está tão distante para decidir agora… vou ‘deixando a vida me levar’ ”.



atravessando o Estreito de Magalhães de Punta Arenas para Porvenir

onze e meia da noite em Porvenir
onze e meia da manhã em Porvenir – a bandeirinha sempre esticada pelo vento

Reta final

Tentei sair antes das nove mas não deu.  Muitos afazeres: arrumação da bagagem, café da manhã, abastecimento, calibragem ideal dos pneus para o rípio etc.  Mas não muito após as nove eu estava entrando na Y-79, a estrada chilena da Tierra del Fuego que me levaria de Porvenir ao Paso San Sebastián, fronteira do Chile com a Argentina.  No início a estrada tem um rípio mais consolidado e apresenta um trajeto um tanto sinuoso que vai margeando a Bahía Inútil, no Estreito de Magalhães.  Essa baía recebeu essa denominação do almirante Phillip Parker King, numa exploração pela Patagônia em 1827, por não ter se prestado para nada.  Segundo ele “ela não deu nem ancoragem, nem abrigo, nem qualquer outra vantagem para o navegador”.
Depois que abandona a costa a estrada Y-79 começa a perder as características sinuosas de seu início e tende mais para trechos em retas médias e curvas suaves.  O rípio se mantém bom por quase toda sua extensão.  Poucos são os trechos em que fica mais solto.  Eles até existem, mas não chegam a dez por cento do todo.  No total são 170 km de rípio.  Até a aduana chilena são 155 km.  E depois mais 15 km até a aduana argentina.  O asfalto só inicia após os trâmites de entrada na Argentina.

Eu tinha conhecimento da existência de um posto YPF na aduana argentina de San Sebastián, mas também vinha com a informação de que ele estava desativado.  Feliz surpresa quando vi que estava funcionando normalmente.  Eu havia enchido o galão de gasolina em Porvenir como precaução porque a Flor havia me informado por e-mail que estava complicado o abastecimento em Rio Grande, sua cidade natal.  Diante desse cenário, na minha cabeça talvez fosse necessário ter combustível suficiente para ir de Porvenir até Tolhuin, cidade posterior e distante cerca de 100 km de Rio Grande.  Mas agora, com aquele posto funcionando e meus tanques cheios, havia até certa folga para chegar a Tolhuin.  O próprio frentista dali de San Sebastián me disse para não enfrentar fila em Rio Grande, deixar para abastecer em Tolhuin.


Pode parecer que é exagero ter preocupação de abastecimento numa moto como a minha que tem um tanque de 33 litros e autonomia de sobra para ir de Porvenir até Ushuaia sem precisar abastecer nem uma vez sequer.  Mas isso em condições normais.  E nem estou me referindo ao consumo excessivo causado pelo enorme sobrepeso de bagagem.  É o vento que não nos deixa ter certeza de nada, é daí que vem a constante preocupação.  O consumo fica imprevisível nessas condições.  A moto é um veículo muito suscetível a qualquer movimento do ar.  E é claro que isso interfere no desempenho e por consequência interfere também no consumo.  Nos ventos laterais daquela região ela anda tão inclinada e por tanto tempo que chega a gastar o pneu mais de um lado do que do outro.  No contravento então nem se fala.  As motos menos potentes (de menor “cilindrada”) em muitos casos mesmo indo a pleno motor não conseguem ultrapassar os 60 km/h nessas condições.  As com motores mais robustos que têm reserva de potência conseguem se manter nas velocidades desejadas, mas para compensar a influência do vento sofrem graves reflexos no consumo.  Como exemplo dessa condição menciono o vento que peguei de frente entre Santa Rosa e General Acha.  Naquela ocasião para me manter a 120 km/h tive um consumo de 12 km/l contra os habituais 19 km/l.  Mas isso foi lá para os lados de La Pampa, agora eu estava na Terra do Fogo.  A conversa em matéria de vento é outra…


Após o abastecimento quis retornar à calibragem dos pneus para os níveis indicados para asfalto.  Por recomendação do Branko para esses fantásticos pneus, eu usei 20 PSI para circular no rípio mas deveria usar 33 PSI para asfalto.  Entretanto no posto havia gasolina, isso não era problema, mas não tinha ar.  Não dispunha desse serviço, não tinha o habitual manômetro e compressor.  Incrível mas é verdade.  E é um posto YPF do ACA, Automóvel Clube da Argentina.  O frentista me indicou um borracheiro que segundo ele ficava logo na primeira curva.  Saí do posto e fui procurando o tal “taller” indicado pelo funcionário mas tinha a impressão de que ainda iria rodar muitos quilômetros com os pneus com aquela pouca pressão.  De relance vi uma placa de madeira rústica pintada a palavra “gomeria”.  Lá estava meu borracheiro.  O “estabelecimento” ficava em plano bastante inferior ao da estrada, sendo preciso fazer uma curva e descer uma rampa para alcançar sua entrada (tudo em rípio).  Entrei na propriedade com a moto e um pastor alemão preso a uma corrente anunciou minha presença.  Em poucos minutos surgiu uma figura com uma fisionomia bastante interrogativa.  Ele caminhava na minha direção e vinha olhando fixamente para os pneus da moto.  Esclareci que só queria “aire”, para encher um pouco “los neumaticos”.  O semblante do cara mudou na hora, era só isso que eu queria: “aire”?  Acho que ele estava pensando que teria de operar um milagre para saber e conseguir desmontar a roda da moto.  Mas era só “aire”, sorrisos e cara de alívio…


O cara ficou tão relaxado por não ter de “trabalhar” nos pneus da moto que acabou me levando para dentro da casa dele para me mostrar a obra que estava fazendo.  Estava terminando de transformar uma grande sala numa espécie de bar, buscando ter uma outra atividade além da gomeria.  Fez ainda questão de “sacar” algumas fotos comigo.  Gente boa a figura!

Deixei a “gomeria” e iniciei meu percurso argentino na Terra do Fogo.  Destino Rio Grande, a meio caminho de Ushuaia.


O tempo se mantinha encoberto mas não chovia.  Eu via ao longe muitas nuvens de chuva.  No lado esquerdo, sobre o mar, haviam vários e visíveis pontos de intensa chuva.  Todavia no meu caminho eu tinha apenas um céu pesado.

Cheguei na entrada de Rio Grande mas já trazia comigo há alguns quilômetros a intenção de sequer entrar na cidade.  O programado seria pernoitar ali e no dia seguinte seguir para Ushuaia.  Estava no domingo dia 9 de dezembro e minha reserva em Ushuaia iniciava no dia dez.  Mas ainda estava cedo para parar.  Fiz meus cálculos meteorológicos que me retornaram chuva iminente.  Novamente, como ocorreu na chegada a General Acha, vi que ao longe havia uma espécie de janela naquele tempo pesado.  Era tudo o que eu queria, um motivo para não parar em Rio Grande, era o momento de eu aproveitar e seguir adiante mudando meus planos mais uma vez.  Eu tinha porém o receio de chegar adiantado no meu hotel em Ushuaia e não haver vaga para mim.  Me imaginava ao relento na capital mais austral do planeta, a “um passo” do polo sul, e não gostava nada dessa ideia.  Mas decidi que valia o risco, na pior das hipóteses eu tentaria repassar o problema para o cara do hotel.  Ele não iria se limitar a dizer que não havia vaga, iria tentar uma solução, é claro.
Fui seguindo até que surgiu Tolhuin, a cidade que o frentista de San Sebastián me recomendou abastecer.  Logo avistei o letreiro da YPF.  Entrei no posto mas ninguém veio me atender.  Fiquei ali parado até que surgiu um funcionário balançando o dedo negativamente.  Não havia gasolina…

Sem opções voltei à pista e segui meu caminho para Ushuaia, a cidade que seria ao mesmo tempo meu ponto final do trajeto de ida e meu ponto inicial do caminho de volta.  Dali eu não poderia seguir adiante.  Não há adiante.  Não há alternativas em Ushuaia, é voltar ou voltar.


O planeta acaba ali…


rípio

“Gomeria”
sala onde vai ser o bar

Fin del Mundo

Depois de entender que o combustível que eu tinha na moto seria toda a minha oferta até Ushuaia, continuei meu caminho.  O que tinha seria suficiente, e ainda havia a reserva de dez litros no galão da COPEC que eu levava comigo desde a região do Atacama.  Fui tranquilo apreciando a paisagem e naturalmente sofrendo os efeitos do vento.  O caminho é inicialmente monótono, mas aos poucos a situação vai se modificando.  O ambiente vai se transformando, assumindo ares de montanha.  Subidas de serra, curvas estreitas na beira de precipícios etc.  O frio também aumenta bastante, mas em contrapartida o vento vai diminuindo.  Após o Paso Garibaldi ocorre uma mudança completa na paisagem.  A partir dali não dá para ter dúvidas de que se está na periferia da Antártica.  Nuvens baixas sobre as muitas montanhas com os cumes sempre nevados, e o frio muito mais intenso.  O visual é lindo, a estrada serpenteando e acompanhando o relevo como se fosse um acabamento, uma “bainha” daquelas encostas sinuosas.  Muitas vezes segue cortando e dividindo a natureza, como que demarcando limites com as montanhas de um lado e do outro lagos incríveis, só vistos no cinema.  Mais adiante, incrustado numa grande depressão no lado oeste da estrada, há um lago com o nome bem apropriado: chama-se Lago Escondido, que nos dá a impressão de existir apenas porque suas águas ficam ali aprisionadas naquele vale entre montanhas rochosas, verdadeiros gigantes de pedra.


Quando finalmente passei pelo portal de entrada em Ushuaia já chuviscava um pouco.  Desci a via de acesso até o centro e avistei um posto YPF.  Conhecendo a instabilidade política da Argentina quis logo garantir o abastecimento de combustível, nunca se sabe quando vai faltar “nafta” naquele país.  Depois de encher o tanque da moto procurei pelo ponto de “aire” pois aquela providencial intervenção na “gomeria” em San Sebastián não foi muito apurada e de acordo com a indicação do painel da moto ainda faltavam pelo menos quatro pontos PSI em cada um dos pneus.  Mas esse posto também não dispunha de manômetro, então me conformei com o tanto de ar que tinha no interior dos pneus da moto e segui para o hotel.

Porém nessa parada na estacion de servicio YPF percebi que algo de muito grave havia acontecido com minha coluna.  Eu estava completamente “travado”.  Para sair da moto e liberá-la para o abastecimento foi quase impossível, um enorme sacrifício.  Após abastecer foi que tive consciência da dimensão da coisa.  Era preciso subir de volta na moto mas não conseguia erguer a perna esquerda.  Só na tentativa, na contração do músculo para dar início ao movimento já era inacreditavelmente intensa a dor na região lombar esquerda.  Era tão forte que sequer conseguia tirar o pé do chão.  Tive de levantar a perna com as mãos e passá-la por cima do banco da moto.  A mesma coisa tive de fazer para tirar o pé esquerdo do chão e o apoiar na pedaleira da moto.  Não entendia bem o motivo dessa desagradável surpresa.  Não foi um trecho tão grande naquele dia, já fiz percursos infinitamente superiores.  O único diferencial do que estou habituado foi o trecho de 170 km de rípio no início do dia, o constante vento lateral e o frio de Ushuaia.  No rípio guiamos a moto quase todo o tempo de pé.  O controle fica muito mais fácil e seguro.  Se você vai sentado praticamente perde a condição de piloto e se transforma num “passageiro” da moto.  Se ela escorrega para um lado ou outro você vai junto, se estiver de pé você tem meios de “trabalhar” as pernas e restabelecer mais facilmente o domínio.  Imagine como seriam difíceis as evoluções de um skatista ou um surfista se eles fossem sentados nos seus equipamentos.  O jogo de pernas é que possibilita que o piloto vá fixo e firme na condução enquanto a moto oscila junto com o terreno.  Isso sem falar no alívio para a coluna.  Pode parecer que pilotar de pé é pior, tem-se a impressão de que força mais.  Mas normalmente só se pilota de pé no “fora de estrada”, quando o terreno é irregular.  O fato de não estarmos sentados, diretamente apoiados sobre o banco da moto impede que os trancos e vibrações advindos dos buracos, pedras etc. sejam repassados para nós.  As pernas vão semi flexionadas e amortecem essa movimentação constante da moto.  Nessas condições de terreno, pilotar de pé só favorece:  temos uma visão mais ampla do terreno que vem à frente; não somos “passageiros” da moto nas escorregadas naturais em virtude do piso; e amortecemos a movimentação e os impactos, porque nessas horas dobramos um pouco os joelhos.
É verdade que eu havia feito de pé os 170 km de rípio por mais de três horas, mas quando voltei ao asfalto sentia-me bem, não percebi efeito nocivo nenhum.  Passei ainda por dois controles fronteiriços, a saída do Chile e a entrada na Argentina.  E depois também teve o abastecimento e o procedimento de calibragem dos pneus, a visita para conhecer o interior da casa do borracheiro onde ele estava concluindo sua obra prima e queria apresentá-la.  Tudo isso depois do rípio.  Em todas essas situações saltei da moto e caminhei.  Estava bem fisicamente, não sentia nada de mal.  A coisa só apareceu em Ushuaia.

Quando finalmente cheguei no hotel é que vi o quanto estava mal, meu estado era realmente crítico.  Fui saltar da moto e não consegui, estava travado.  Foi verdadeiramente um sacrifício descer da moto, estava muito ruim a minha condição.  Com muito sofrimento a tarefa foi executada e fui falar com o recepcionista sobre minha reserva.  Eu estava chegando um dia antes do que havia planejado e reservado.  Cheguei me fazendo de desentendido e anunciei que tinha uma reserva.  Ele olhou no computador e disse: “É verdade senhor mas não para hoje, a partir de amanhã”.  Não colou, tentei de novo me fazendo de atrapalhado com as datas, mas ele foi insensível.  Tentei remanejar todos os três dias da reserva para iniciar um dia antes mas não teve conversa, a única coisa de positivo que ouvi foi que meu quarto estava vazio e se eu quisesse pagar um dia a mais poderia entrar a partir daquele momento.  Na verdade eu já vinha intimamente cogitando essa possibilidade.  Pelo meu programa original eu iria de qualquer forma ficar em algum hotel em lá em Rio Grande.  Mas com essa minha mania de ir mudando as coisas de acordo com a vontade do momento ou de outras condições externas, antecipei minha chegada em Ushuaia em um dia.  Simplesmente aceitei a oferta e assumi meu quarto no Hotel Costa Ushuaia, um bom e confortável hotel às margens do Canal de Beagle.  Paguei antecipadamente no Brasil R$ 583,00 por três diárias.  Lá no local paguei pelo dia de acréscimo.


Depois do martírio de levar toda a bagagem para o quarto, voltei à recepção para tentar arranjar um transporte para o retorno da moto até Cerro Sombrero.  Na minha cabeça eu não teria condições de suportar mais duzentos quilômetros de rípio com aquela  dor nas costas.  Não era a primeira vez que sentia essa dor na lombar.  Tenho esse problema e convivo com ele recorrentemente.  Mas sempre que surge é em virtude de algum esforço ou atividade, como por exemplo aquela tentativa de levantar a moto no tombo que levei na areia na entrada de Villa Pehuenia.  Eu me conheço há 55 anos e sei quando ela vem para ficar dois dias e quando vem para demorar mais tempo, e já tinha percebido que dessa vez seria demorado.  Estava muito intensa a dor e consequentemente era grande a limitação dos movimentos.  Eu me questionava muito como fui ficar naquele estado e só podia atribuir aos cerca de 170 km de rípio feitos de pé entre Porvenir e San Sebastián.  Uma parte dos quase 500 km rodados naquele dia.  O fato é que eu tinha absoluta certeza de que não suportaria o trajeto de volta pois agora não iria de volta a Porvenir, subiria para Cerro Sombrero e a parte de rípio é ainda maior.  O rípio em si não seria o problema, agora a moto estava se comportando bem com menos peso e com pneus apropriados.  O problema é que é um longo percurso eu precisaria fazê-lo de pé.  E no estado em que eu me encontrava até para caminhar estava complicado.


O recepcionista ficou de ver para mim algum tipo de solução.  Eu lhe pedi uma caminhonete ou um carro com uma carreta de transporte de moto.  Mas teria de ser um veículo que pudesse passar pelas aduanas argentina e chilena.  É em território chileno que fica a estrada de rípio.  Ainda ponderei que a princípio seria só uma tomada de preço e de condição pois quem sabe se até o dia da minha partida de Ushuaia eu já não estaria bem?  Estávamos no dia nove e eu só deixaria a cidade no dia treze.  Mas internamente eu tinha toda a convicção de que teria de usar esse serviço.  A parte de asfalto até o retorno ao Brasil eu encararia numa boa, iria sentado na moto.  O que eu imaginava ser difícil é ficar de pé por quase 200 km.


Subi para o quarto e fui para o banho.  Tinha uma banheira de hidromassagem me olhando no meu banheiro.  Não pensei duas vezes…


Dia seguinte, segunda-feira, ainda estava mal porém um pouco melhor que a véspera.  Não tinha certeza se era início de melhora ou apenas o fato de ter descansado.  Tentar levantar a perna esquerda ainda era para mim tarefa impossível de ser executada.  Saí para dar uma volta na cidade mas não aguentei muito tempo e voltei ao hotel.  Estava triste, mais uma vez achava que minha viagem tinha sido abalada.  Primeiro foi o tombo no semáforo em Punta Arenas que me atingiu a articulação do dedo polegar da mão direita.  Agora minha coluna estava afetada.  E em matéria de “sul” eu não poderia estar, eu e minha moto, em local mais distante.


Na terça-feira arrisquei uma proeza: peguei a moto e fui ao Parque Nacional Tierra del Fuego.  Fui ver, fotografar e estar no verdadeiro final do mundo.  A extremidade sul da Ruta 3, na Bahía de Lapataia.  Tirei de letra, mesmo com os vinte quilômetros de terra e rípio.  Voltei ao hotel mais confiante.  É verdade que um pouco mais doído do que quando saí, mas pude guiar a moto.  Os dois dias que me restavam seriam fundamentais para minha recuperação.


Ushuaia

Retorno em suspenso

Saí de casa no início de outubro, até aqui rodei de moto mais de 20000 km e ainda 2000 km de navio pelo oceano Pacífico e pelos canais e fiordes chilenos para depois de mais de dois meses na estrada chegar em Ushuaia e ficar no hotel curtindo uma dor nas costas?  Isso não estava previsto e definitivamente não é dos melhores programas.  Eu pensava em tudo que já tinha feito e por onde já tinha passado para estar ali.  Foram tantos lugares, tantas pessoas com quem falei e interagi, tantas situações que enfrentei.  Foi uma longa jornada, repleta de emoções, tombos e muitas dificuldades para me conformar em ficar de molho no hotel esperando a saúde melhorar.  Eu estava no sul do sul, no fim do mundo, na pontinha, na extremidade mais austral da última estrada do planeta Terra.  Não fui até lá para ficar preso no hotel.  Rodei muito para estar lá.

Mas por outro lado eu pensava que tudo isso até agora foi só a parte da ida, ainda tinha toda a volta!  Tinha de estar pronto e em condições para ela.  Tinha de dar tempo para minha recuperação, mas como conseguir ficar parado?


Quando voltei da visita de moto ao Parque Nacional Tierra del Fuego estava fisicamente pior mas intimamente melhor.  Pior em virtude do esforço de subir e descer da moto, de pilotá-la até lá (são 40 km do hotel até o parque) e de ter rodado pelos 20 km de estradas de terra e rípio do interior do parque.  Tudo isso vezes dois se considerarmos que tem a volta do parque até o hotel.  O tempo em Ushuaia estava chuvoso e a parte de terra estava muito escorregadia, com aquele caldo marrom, aquela espécie de nata de lama sobre a pista.  Mas fui e voltei com maestria o que me deu essa condição de me sentir psicologicamente melhor.  Foi uma conquista interior, uma vitória para mim que já me imaginava impossibilitado de dar continuidade à viagem da forma como planejara.  Comecei a alimentar reais esperanças de não mais precisar de transporte para fora da Terra do Fogo como imaginei que seria necessário.


Cheguei no hotel tomei um banho e deitei na enorme e confortável cama do apartamento.  Pensei em passar o resto do dia ali, descansando e me recuperando ainda mais.  Queria garantir um pleno restabelecimento.  Mas parece que alguma coisa fica atentando dentro da cabeça da gente e pouco depois de uma ou duas horas que cheguei do parque, já estava dentro de um taxi a caminho do centro de Ushuaia.


Caminhei bastante pelas ruas da cidade, fui ao porto, à igreja, almocei, fiz compras, mas quando percebi que estava mancando cada vez mais intensamente vi que era a hora de voltar ao hotel.  Por mais estranho que isso possa parecer, sou uma pessoa que lida muito bem com a dor.  Não sou de me abalar ou me abater quando tenho algum foco de dor.  Não sei dizer como ou porque mas consigo me abstrair e seguir minha vida independentemente daquele desconforto.  Talvez por ter sempre na minha história, na minha existência, colecionado e convivido com tantas “avarias” ao meu corpo.  Mas a realidade é que para uma dor ser capaz de me abater ou me impedir de levar a vida “normalmente”, tem de ser realmente muito forte ou grave.  A primeira impressão que isso causa é de uma condição positiva, que me ajuda a levar a vida com mais conforto.  Mas o que é a dor senão um alerta do nosso corpo pedindo atenção para um ponto ou mesmo a interrupção de uma atividade?  No meu caso tenho de ter muito cuidado porque em virtude dessa resistência habitualmente ignoro esse alerta e dou seguimento ao que estou fazendo.  Objetivamente neste caso quando me dei conta que estava mancando cada vez mais, fiquei muito preocupado de ter abusado no meu passeio e ter agravado meu problema, por isso tratei de voltar logo para o hotel.  Na hora de entrar no táxi foi novamente preciso puxar a perna com a mão para embarcar no automóvel.


O tempo que passei no trajeto do centro até o hotel já me fez assimilar o esforço do passeio e assim que cheguei na recepção perguntei ao Germano (aquele funcionário a quem pedi o transporte para a moto) se havia algum passeio que eu deveria fazer.  Ele mencionou a navegação no Canal de Beagle e o Trem do Fim do Mundo.  Pedi que fizesse reserva para o dia seguinte.  Subi e só desci para jantar às nove horas da noite.  Estava comportadamente tentando fazer um misto de turismo e tratamento de recuperação.  Acho que deu certo.


No dia seguinte fui ao porto para fazer essa navegação no Canal de Beagle.  O negócio é dez!  Muito bom mesmo.  O dia estava até ensolarado.  Bastante frio mas com sol.  Fora do barco não dava para não usar o casaco, mas é melhor que frio sem sol ou frio com chuva.

Vimos os animais da região tomando sol nas ilhas do canal, as árvores que têm as copas projetadas e voltadas para o leste pelo vento constante, ouvimos as histórias das navegações, foi muito bom mesmo.  Na parte da tarde iria para o trem mas me senti mais doído e preferi ficar no hotel descansando a coluna.  Já era dia 12 de dezembro e eu deixaria Ushuaia no dia 13.  Achei que estava abusando da sorte.  Eu estava completamente travado há três dias.  O progresso da minha recuperação tinha sido tão grande que me possibilitou fazer todas essas atividades, era preciso que eu também fizesse a minha parte, desse a minha quota de sacrifício.  Decidi ir para o hotel e descansar aquela tarde.
Desde o dia que cheguei em Ushuaia comecei a tomar um antiinflamatório subligual que sempre levo comigo.  Mas só haviam quatro unidades na caixa.  Tomei por três dias e preservei o último como garantia.  Certamente isso contribuiu muito para a minha recuperação.
Depois que cheguei da navegação, como já estava no centro antes de ir para o hotel e fiz um programa leve: almocei, dei uma voltinha pelas ruas, fiz alumas fotos etc.  Já sentia que iria voltar pilotando a moto e que não seria preciso contratar transporte como imaginava no momento da minha chegada àquela cidade.

Finalmente o dia 13 chegou e com ele o meu momento de deixar Ushuaia.  Confirmando as previsões o dia amanheceu feio.  Chovia bastante e fazia um frio muito intenso.  Carreguei a moto com minhas bagagens e fui para a estrada.  Aumentei a graduação da roupa térmica, pus a capa de chuva e em instantes estava passando pelo portal, deixando o fim do mundo cada vez menor no espelho retrovisor da minha companheira de viagem.  O painel da moto indicava a temperatura ambiente de apenas dois graus, imagine a sensação térmica!  A chuva muito forte e a temperatura tão baixa fizeram a viseira do meu capacete embaçar.  A viseira é dupla exatamente para impedir esse tipo de ocorrência então “teoricamente” isso não deveria acontecer mas… aconteceu.  Pouco mais adiante já não era possível ver mais nada, fui obrigado a me utilizar do velho e habitual recurso de levantar a viseira um pouquinho.  Com a entrada do vento frio no interior do capacete formou-se então uma pequena janela na parte inferior da viseira que com certa dificuldade me permitia ver a estrada.  Nesse momento avistei uma oficial da Gendarmeria na minha frente mandando-me parar.  Ela me alertou sobre as ruins condições da estrada e disse também que havia um acidente mais adiante, para que se eu fosse seguir o fizesse com bastante cautela.  Cheguei a pensar em voltar e só seguir no dia seguinte, mas me lembrei que o Paso Garibaldi funciona como uma espécie de linha divisória entre climas.  Quando ainda estava indo para Ushuaia foi depois dele que percebi a alteração na paisagem e até mesmo nas condições atmosféricas.  A partir dali a possibilidade de mudança é grande o que me animou e deu certa confiança.  Fiquei inclinado a seguir adiante.  Pensei, pensei… me lembrei que já tinha feito pelo Booking.com a reserva do hotel em El Calafate e, mesmo com a margem de segurança que sempre dou, não dava para já de início gastar um dia.  E o prognóstico era de chuva por vários dias.  Talvez de nada adiantasse deixar para sair de Ushuaia no dia seguinte pois poderia estar até mesmo pior.  Decidi então seguir adiante.  Foram cerca de 150 km de verdadeiro sufoco, mas depois do Paso Garibaldi minhas previsões se confirmaram e a chuva foi ficando fraca até que parou restando então apenas o frio.


Eu já saí de Ushuaia com a intenção de naquele dia seguir apenas até Cerro Sombrero.  Deixar a travessia do Estreito de Magalhães para o dia seguinte.  Mas, como não podia deixar de ser, no meio do caminho fui alterando essa ideia e quando cheguei em San Sebastián para abastecer vi que havia um hotel no posto de gasolina e fiquei por ali mesmo.  Deixei os cento e muitos, quase 200 km de rípio até Cerro Sombrero para a manhã do dia seguinte quando estaria mais descansado e numa parte do dia que normalmente venta menos.


Canal de Beagle


Deixando a Tierra del Fuego

Na manhã seguinte o tempo estava legal, encoberto porém firme.  Dava para ver que a chuva estava rondando pelos arredores mas parecia ainda longe de me alcançar.  O quarto do hotel em que fiquei era muito claro.  Normalmente os quartos de hotel têm uma janela em uma das paredes.  Neste em especial, a parede da janela era toda de vidro.  Havia uma cortina própria para proporcionar alguma privacidade e naturalmente também para impedir a entrada da luz mas na noite anterior eu não quis fechá-la para evitar uma eventual “escorregada” na hora da saída de San Sebastián.  Não me lembrei entretanto que estava entrando o verão e naquela latitude as noites têm no máximo cinco horas de escuridão.  O céu só “apaga” depois de onze e meia e volta a “acender” às quatro e meia da madrugada.  Assim acordei muito cedo e pelo  horário o café da manhã ainda não havia iniciado.  Fui então colocar minhas coisas na moto.  Chegando na porta de saída vi que estava trancada.  Voltei ao salão principal e procurei no balcão pelas chaves mas não as encontrei.  Compreendi então que estava trancado dentro do hotel.  Imediatamente pensei como seria se houvesse uma emergência e de pronto olhei para as paredes de vidro e imaginei a saída…  
Na véspera quando cheguei a mulher que me atendeu, uma “redondinha” jovem senhora, muito maquiada, estava em pé do lado de fora junto a uma outra porta que me pareceu ser uma porta de serviço.  Naquele momento perguntei se entrava por ali e ela me indicou a porta principal, a mesma que agora encontrava-se trancada.  Lembrei-me disso e atravessei o salão do restaurante, caminhei cozinha adentro e depois de um pequeno corredor lá estava a porta de ontem.  Meti a mão na maçaneta e depois de um pequeno giro a porta se abriu.  Estava livre!  Peguei minhas coisas e comecei a arrumar na moto.  Numa das minhas passagens pelo interior da cozinha me deparei com a figura simpática da atendente que acabava de acordar.  Mas mesmo àquela hora já estava completamente “montada” a sua produção cosmética.  Parecendo o rosto de uma gueixa. 


Preparou meu “desayuno”, paguei e fui seguir meu caminho.  Naquele dia eu iria cruzar pouco mais de 180 km por estradas de rípio.  Todo o lado chileno da ilha da Terra do Fogo até Cerro Sombrero e depois, já por asfalto, até Bahía Azul, o porto norte da ilha, para então atravessar mais uma vez o Estreito de Magalhães reentrando no continente em Punta Delgada novamente com destino às terras argentinas.


O controle fronteiriço de saída da Argentina fica distante cerca de cinquenta metros do hotel.  Já o de entrada no Chile está 15 km adiante.  O rípio inicia exatamente após a edificação da aduana argentina.


Depois de fazer os procedimentos de saída, segui pela mesma estrada que há alguns dias me trouxe até ali.  O trecho entre as duas aduanas é o que mais exige atenção por ter o rípio menos compactado, com as pedras mais soltas.  Mas nada exagerado que exija muita perícia ou que cause dificuldade na condução da moto.  Depois de passar pela aduana de entrada no Chile voltei 50 km pela Y-79, como se fosse retornar à Porvenir.  Não entrei na Ruta 257 como faz a maioria dos viajantes.  Por lá o caminho é apenas quinze quilômetros mais curto mas o trânsito de caminhões é infinitamente maior.  Numa estrada em que nem sempre temos as condições ideais de condução, onde em muitos casos não temos como desviar o nosso caminho uns poucos centímetros que sejam (para não entrar na área fofa do rípio), é sempre bom evitar as rotas com maior fluxo de veículos.  Principalmente se forem caminhões, que são pesados e têm agilidade limitada.  Para eles, desviar de uma moto que pode ter acabado de escorregar na pista à sua frente pode ser uma tarefa praticamente impossível.


A estrada até o cruzamento onde viraria à direita para Cerro Sombrero eu já conhecia.  Foi por ela que eu vim de Porvenir.  Mas somente até o momento em que eu a deixasse e virasse sentido norte.  Dali para frente seria uma novidade para mim.  Não podia deixar de sentir uma grande ansiedade pela incerteza do tipo de piso que iria encontrar.  Chegando no cruzamento onde viraria à direita a chuva finalmente começou.  A ansiedade naturalmente aumentou também pois havia a incógnita das condições da pista que foi somada à chuva que se iniciava e poderia alterar totalmente o cenário dali para frente.  Mas literalmente quem está na chuva vai se molhar.  E foi isso que aconteceu.  Inicialmente ela veio um pouco mais forte mas logo amenizou e ficou aquele chuvisco fino e constante.  Não fez diferença nenhuma para a condução da moto.  O piso estava muito bom, bem compactado, com pouquíssimos trechos de pedras soltas.  O movimento na estrada era quase nenhum, cruzei com uns cinco carros no máximo.  Apenas nos quilômetros finais, onde imagino ser uma parte comum às duas opções de trajeto, passei a dividir a estrada com diversos caminhões.  Mas isso representou a décima parte de todo o trajeto.  Depois de mais ou menos duas horas e meia após ter saído da aduana o asfalto se apresentou à minha frente.  O trajeto foi muito tranquilo, sem pontos perigosos ou mais arriscados.  Sinceramente recomendo essa opção para se cruzar a ilha da Terra do Fogo.  Há uma obra de pavimentação que creio deve ter cerca de 20 ou 30 km.  Somente nessa parte do percurso é que requer um pouco mais de atenção do piloto pois como o asfalto é posto sobre o leito da estrada já existente, há um desvio que não tem a mesma qualidade do piso da estrada principal.  No meu caso especificamente por estar de moto ainda ficou um pouco mais crítico porque a chuva formou aquela lama fina e escorregadia.  Mas no geral foi bem mais tranquilo do que eu pensava que seria.


Eu havia deixado os pneus com apenas vinte PSI para cruzar o rípio.  Agora no asfalto era preciso voltar à calibragem normal de 33 PSI.  Deixei então a estrada e entrei em Cerro Sombrero à procura de um posto para abastecer e encher os pneus.  Por precaução quis logo garantir o combustível.  Ainda estava no Chile, e (ao contrário da Argentina) naquele país nunca houve dificuldade para comprar gasolina.  Em pouco tempo estaria entrando em terras argentinas e já queria fazê-lo com tanque cheio.  Depois do abastecimento procurei pelo ponto de ar e o avistei a uns trinta metros da bomba de combustível.  Liguei a moto e me dirigi para lá.  É, tem de usar o motor, com a moto tão carregada não dá para a ficar empurrando para lá e para cá.  Ainda mais com tanta dor nas costas como eu estava.  É preciso ficar claro que meu estado havia melhorado se comparado com a absoluta falta de condição a que eu me encontrei quando cheguei em Ushuaia, mas ainda estava muito longe de estar me sentindo bem ou normal.  Cada vez que tinha de movimentar a perna esquerda, seja para tirar do chão e apoiar na pedaleira ou seja para simplesmente caminhar, era tudo feito com muita dor e sacrifício.  Parei a moto junto à plaquinha indicativa.  Porém vi que o ponto de ar também não dispunha de manômetro.  Apenas a mangueira enrolada numa placa escrito: “aire”.  Já fazia tempo a última vez que tinha visto um manômetro…  Eu havia comprado em Ushuaia uma “caneta” daquelas que os borracheiros usam para calibrar pneus, mas só mesmo por garantia pois a moto também indica no painel a pressão de cada um dos pneus.  Pode parecer excesso de precaução mas devo ter trazido esse critério cauteloso da minha vida náutica onde se costumava dizer que “quem tem dois tem um; quem tem um não tem nenhum”.  Mas eu fico pensando: como será que as pessoas fazem por aqui?  Será que elas enchem os pneus e dão aquela apertada com o polegar como se fossem bicicletas?  Estranho, muito estranho.


Dessa vez eu iria atravessar o Estreito de Magalhães pela parte mais próxima do continente, de Bahía Azul para Punta Delgada.  Ao contrário da única viagem diária de duas horas e meia de travessia entre Punta Arenas e Porvenir, agora seriam apenas trinta minutos com saídas ininterruptas a cada meia hora.


Quando cheguei na reta que leva à balsa havia uma longa fila de espera.  Foram quatro ou cinco viagens antes da minha vez chegar.  A moto ocupa um espaço tão reduzido que não sei porque eles não liberam as motos para ingresso imediato.  Mas como isso não ocorreu fiquei obedientemente aguardando a minha hora de embarcar.  Dessa vez não houve compra de bilhete antecipado.  A operação era feita a bordo, durante a travessia.  Depois de estacionar a moto no local indicado pelo marinheiro, fui saber se não iria fixar a moto com as correias.  Ele me garantiu que as condições do estreito estavam ótimas e que seria muito tranquilo, sem necessidade de usar a cintas.  Como não havia outro jeito confiei no cara.  Deixei a moto e fui me colocar numa nova fila que se formou para o pagamento.  Cada um se apresentava ao cobrador que ficava sentado atrás de uma mesa dentro de uma pequenina sala, e informava o seu veículo para que a figura então anunciasse o valor.  Quando finalmente chegou a minha vez disse a ele que eu estava de moto e ele fez uma careta junto com um aceno de mão me mandando voltar e nada pagar.  Dei meia volta e subi para um pequeno espaço com poltronas pois minhas costas insistiam em me lembrar que eu ainda não havia me liberado da enfermidade que nelas se instalara, já estavam pedindo descanso.


Minha meta para aquele dia era Rio Gallegos, cerca de 120 km do desembarque em Punta Delgada.  Eu já tinha rodado cerca de 180 km de San Sebastián até Bahía Azul, o ponto de travessia.  No total seriam apenas trezentos quilômetros.  Todavia quando planejei a rota do dia eu tinha muitas incógnitas, eram muitas as variáveis:  sabia que não era possível determinar quanto tempo eu levaria para cruzar a parte de rípio pois não sabia em que condições estaria aquele piso.  Sabia também que além do tempo de espera da balsa e da travessia propriamente dita ainda teria de passar por aduanas, fazer os trâmites de saída do Chile e de entrada na Argentina.  Isso tudo era uma grande interrogação e poderia me consumir o dia todo.  Certamente se eu estivesse viajando com mais alguém iria ser questionado pela “economia”.  É verdade, se tudo correr bem, fluindo como se espera sempre que aconteça, chegaria ainda cedo em Rio Gallegos.  Mas se qualquer uma dessas variáveis demorasse mais do que o previsto eu poderia não ter como chegar dentro do prazo em El Calafate, cidade onde já tinha feito reserva num hotel.


Normalmente eu vislumbro as coisas como escolhas.  Prefiro escolher ser prevenido do que ser mais arrojado para não dizer negligente.  Após a constatação de que daria tempo vem sempre a ideia de que poderia ter feito diferente.  Mas se não der certo a sensação que retorna da primeira escolha é menos implacável e causa menos efeitos colaterais que a segunda.


Fazendo aqui um pequeno parêntese, para falar a verdade eu nem compreendo bem como é que algumas pessoas saem para fazer determinadas viagens sem a necessária disposição de tempo, vão com tempo muito limitado.  Me parece que a coisa quando é feita assim é mais para cumprir tabela e entrar para o currículo de feitos e conquistas do que para curtir e realmente conhecer o que se está visitando.  Há pessoas que mais parecem motoristas de ônibus rodoviário, rodando mil quilômetros ou mais por dia, fazendo praticamente o que chamamos de “bate-volta” só para “ter ido” àquele determinado destino.  Se não dá para ir com mais tempo é melhor optar por destinos mais próximos do que cruzar países sem a possibilidade de parar na estrada, nos pontos rústicos e pitorescos, além das óbvias atrações turísticas.

Em cada lugarejo que deixamos desaparecer no retrovisor existem milhares de coisas,  de pessoas, de hábitos e de costumes.  Conhecimentos que poderiam nos enriquecer com lembranças que ficariam marcadas para sempre em nossas mentes. 


Sei de pessoas que foram ao Atacama mas que (a partir da saída do Brasil) no segundo dia estavam em Salta e no quarto, ou até mesmo no terceiro já estavam em San Pedro de Atacama.  Eu comparo isso a ir de avião.  Nesse tipo de transporte obviamente não conhecemos nada dos lugares por onde passamos até a chegada ao destino.  Para ir dessa forma talvez seja realmente melhor ir de avião e alugar a moto por lá.  Fiz exatamente isso quando fui cruzar a Rota 66 de Chicago até Los Angeles.  Teria sido muito mais legal ter ido e voltado de moto desde minha casa.  Mas o tempo gasto seria infinitamente maior que os 17 dias usados naquela viagem.  Foi a maneira que encontramos para percorrer toda a extensão da “Estrada Mãe”, como é conhecida nos Estados Unidos.  Se dividirmos os pouco mais de 4000 km rodados pelos 17 dias teremos algo perto de 300 km por dia.  Isso nos permitiu conhecer parques, sítios históricos, pontos turísticos etc.  Além de termos também podido fazer desvios como por exemplo a ida até Santa Fé, cidade onde ficamos duas noites aproveitando ao máximo o lugar.


Por isso é que não compreendo como algumas pessoas saem para cumprir determinados roteiros sem o tempo mínimo necessário.  Nessa situação sinceramente acredito ser melhor a opção de ir de avião e alugar a moto por lá.


Para ir de moto é fundamental realmente aproveitar cada quilômetro rodado desde a saída de casa, de outra forma não haveria a frase que diz: “Indo de carro a diversão começa quando chegamos ao destino; indo de moto a diversão começa quando saímos de casa.”

Sei que não agrado a todos pensando desta forma, mas fico com pena de se passar por tanta atração e informação sem o tempo ideal e suficiente para aproveitá-las.


apartamento do hotel do posto do ACA em San Sebastián

somente ar, sem manômetro



De volta ao Continente

O desembarque no continente foi tranquilo.  Eu costumo deixar sempre os mais apressados seguirem seus ritmos acelerados.  Seja num desembarque como esse ou seja (por exemplo) na liberação de um bloqueio na estrada.  Entendo que é  melhor não estar na frente desses veículos, atrapalhando o fluxo desejado por seus motoristas.  Se for preciso até paro a moto pelo tempo necessário para que eles sigam em paz e me deixem também em paz.

Assim que deixei a balsa, ainda em território chileno segui pela Ruta 257 até que encontrei o cruzamento com a Ruta 255, estrada transversal que me levaria à Ruta 3 através do Paso Integración Austral.  A Ruta 3 é uma também mítica estrada argentina.  Também mítica porque a Ruta 40 é considerada a mais desafiante das rodovias daquele país.  A 40 corta todo o território argentino de norte a sul.  Mas grande parte de sua extensão não é asfaltada, tornando-a assim motivo de conquista pessoal para quem a enfrenta.  Já a Ruta 3 é a rodovia mais austral do planeta.  Liga a capital Buenos Aires ao “Fin del Mundo”.

Como disse minha meta para aquele dia era chegar a Rio Gallegos.  Faltavam apenas cerca de 120 km.  Mas tinha ainda a passagem pela aduana, com os trâmites de saída do Chile e de entrada na Argentina.  Eu não sabia o que me esperava por lá.

Cerca de 50 km depois de Punta Delgada está a divisa entre os dois países, e logo a seguir o complexo fronteiriço Paso Integración Austral.  Assim como nos Orcones do Paso Cristo Redentor, os trâmites de saída e entrada são feitos na mesma edificação.

Quando me aproximei vi que havia uma espécie de fila ainda na estrada.  Vários carros tumultuando o acesso ao prédio.  Demorei algum tempo para compreender que os veículos na verdade estavam abandonados por seus ocupantes, estavam vazios.  Percebi que a coisa se dava apenas lá dentro, era preciso deixar os carros, as motos etc. e prosseguir a pé.   Procurei um cantinho para minha moto e fiz o mesmo, fui caminhando até lá para fazer os procedimentos aduaneiros.  Lá dentro um grande salão com muita gente.  A fila era quase organizada.  Digo quase porque havia um roteiro a ser seguido, mas estranhamente o primeiro guichê a ser visitado ficava fisicamente depois do segundo.  Com isso a fila formava uma espécie de nó na sua extremidade pois depois de se passar pelo segundo atendimento era necessário cruzar a fila para seguir adiante.  Depois de vencido esse pequeno percalço, agora era preciso atravesar todo o salão para passar por mais dois guichês lá na outra extremidade.  De fato a passagem pelo Paso de Integración Austral tem tudo para ser tranquilo, se considerarmos as dimensões e as condições para se montar uma boa logística.  Mas na realidade a coisa não acontece dessa forma.  É verdade que existem momentos de maior ou de menor fluxo de turistas passando por lá, mas numa situação de alta temporada como a que passei se houvesse um pouco mais de organização a fluidez seria bem maior e tudo menos confuso e menos demorado.  Minha preocupação maior agora não era com o tempo pois vi que teria bastante para chegar a Rio Gallegos em condições de buscar hotel com tranquilidade.  Minha preocupação agora era com minhas coisas expostas sobre a moto lá fora, à uma considerável distância.  Nunca se sabe…

Depois de várias dezenas de minutos voltei para minha moto e vi que minhas “tralhas” ainda estavam todas em ordem, da mesma forma que as deixei. 

Em pouco mais de uma hora estava entrando em Rio Gallegos.  Não havia feito nenhuma reserva para aquela cidade então como de costume dei aquela minha voltinha de reconhecimento e parti para encontrar hotel.  Busquei pelo GPS e escolhi pelo nome.  Chegando ao estabelecimento parei a moto e fui ver se havia vaga.  Um retumbante “no hay ninguna habitación disponible”.  Voltei à moto desolado, com receio de novamente enfrentar dificuldades nessa procura.  Mas avistei um pouco mais adiante e do outro lado da rua um outro hotel.  Deixei minha moto onde estava e fui andando até lá.  Já voltei para pegar a moto com a chave do quarto na mão.  Ainda estava cedo, devia passar um pouco das três da tarde.  Era dia 14 de dezembro, aniversário do meu pai.  Completava 86 anos naquele dia.  Depois de tomar meu banho para retirar toda a poeira e lama que trazia em mim pela travessia do rípio inicialmente poeirento e depois sob chuva, fiz uma ligação para o Brasil.  Minha mãe atendeu e como já imaginava foi difícil conseguir que ela liberasse o telefone para eu falar com meu pai.  Acho isso engraçado.  Mesmo eu já tendo 55 anos completos sempre ouço deles as mesmas observações e recomendações que ouvia na infância, adolescência, idade jovem etc.

Encontrei todos por lá festejando com meu velho pai.  Depois de falar com ele ainda falei com minhas filhas, minha irmã e minha ex mulher.  Só não pude falar com meu filho pois ele não estava por lá.

Essa minha viagem teve esse ponto, digamos, pouco social.  Em virtude do tamanho dela, quase 40000 km e do tempo gasto pra cumprir esse percurso com calma e aproveitando ao máximo, fiquei mais de três meses fora o que me fez estar ausente no aniversário de minha irmã, no de meu pai, nas festas do natal e do ano novo e no aniversário da minha mãe.

Mas acho que fui bem compreendido pela família e não sucederam-se mágoas.

Depois de cumprir essa obrigação social e sentimental, consegui desligar o telefone e saí em busca de comida.  Eu estava apenas com o café da manhã que me havia sido servido por aquela figura simpática e redonda lá em San Sebastán.

Chovia lá fora o que me desanimou um pouco a sair.  Além do próprio incômodo de caminhar na chuva ainda havia a minha pouca mobilidade causada pelo problema na coluna.  Mas passando pelo átrio da recepção vi que agregado ao hotel havia um restaurante e fiquei por ali mesmo.

Já estava no final de minha refeição quando entra no restaurante uma idosa senhora e assume uma mesa em frente a que eu utilizava.  A garçonete veio perguntar a ela quantos lugares seriam.  Ouvi quando ela disse que não sabia ao certo.  Pensei comigo “coitada, deve estar esperando uma ou duas amigas para um chá.  Nessa tarde tão chuvosa não vai vir ninguém…”  

Mas meu camarada… aos poucos foi entrando tanta velha que eu pensei que estava dentro do filme Cocoon antes da concha!

Inflamou o local de tanta velha, a mais nova devia ter três vezes a minha idade!  E era uma barulheira de deixar recreio da quinta série com vergonha da própria incapacidade sonora.

Acabei minha refeição e saí dali o mais rápido possível pois a barulheira era tanta que eu não estava conseguindo ouvir meus próprios pensamentos.


Depois que a chuva parou dei uma breve voltinha a pé e voltei para o hotel pois meu trajeto do dia seguinte seria puxado.  Tinha como meta a cidade de El Calafate, onde já havia feito reserva num bom hotel.  Mas iria até lá passando por Rio Turbio e pela desafiadora Ruta 40 num dos seus muitos trechos nada amistosos.

Saí cedo do hotel no dia seguinte e tudo correu muito melhor do que imaginei.  Lindas paisagens e nada de chuva para dificultar ainda mais as condições da estrada.  Foi muito agradável essa parte da viagem.  Em algumas horas estava chegando.  Para não dizer que foi tudo ótimo, apenas uma coisa me pegou de surpresa: o frio (mais uma vez).  Eu não esperava encontrar tanto frio assim.  Pouco antes  da Ruta 40 encontrar com a Ruta Provincial 9, há uma serra que me pareceu ser infinitamente gelada.  Mas muito gelada mesmo.  Fiquei preocupado com a aproximação de El Calafate pois se ali já estava tão frio assim imagine próximo ao lago e aos glaciares!   Mas quando a descida começou a temperatura foi retornando aos já habituais e (à essa altura dos acontecimentos) confortáveis 12 ou 13 graus.

Interessante o que ocorreu nessa viagem em virtude das circunstâncias da mesma.  Existe aquela frase de que “a necessidade fez o sapo pular”.  E eu fui aos poucos alterando meus limites e meus valores.  Lembro-me de em outras ocasiões praguejar muito quando encontrava temperaturas como 11 graus (por exemplo quando ia a Curitiba).  Mas àquela altura da viagem quando o termômetro da moto indicava temperaturas de dois dígitos eu gritava de alegria no confinamento de meu capacete.  A partir de dez graus era para mim motivo de comemoração…

O tempo contribuía, estava um pouco ensolarado, assim meio entre nuvens, mas isso garantia um dia claro e brilhante, o que tornava ainda mais superlativa toda aquela tsunami de belezas naturais.

Mesmo já tendo passado por locais igualmente belíssimos como a região chilena de Los Lagos, com a amável Frutillar, e também pelas aconchegantes Villa Pehuenia e Moquehue, cercadas de inúmeros lagos inacreditavelmente azuis, a chegada a El Calafate com a visão do Lago Argentino é algo indescritível.  Se eu tentasse aqui descrever iria pecar por simplificar demais pela insuficiência de detalhes.  Existem coisas na vida que não há como descrever.  Tente explicar como é o sabor do chocolate.  Só provando para saber.  A mesma coisa acontece com determinadas paisagens, não há como relatar.  Tem de ver, tem de sentir…

Rio Gallegos


Caminhando no gelo

El Calafate é muito bem cuidada.  Chega-se por uma estrada que desce até a cidade que fica no fundo de uma espécie de vale.  Tem um astral muito bom, com muita movimentação de turistas.  Assim que cheguei ao centro peguei a via principal para dar aquela minha volta básica de reconhecimento.  Depois de um pequeno giro (também não daria pra ser grande pelas dimensões do lugar) parei para buscar no GPS pelo meu hotel.  Tinha feito reserva antecipada e não havia motivo de preocupação, meu cantinho na gelada El Calafate estava assegurado.  Assim como em  Ushuaia fiz reserva num bom hotel.  Como já disse antes, eu classifico os dias da viagem em tipos determinados: 1) dias de deslocamento com pernoite simples sem nenhum interesse pelo local; 2) dias de deslocamento com escolha das cidades para pernoite com visita às atrações locais; e finalmente 3) dias de turismo e visitação.

Nos dias de deslocamento simples eu não me preocupo com as instalações de onde vou pernoitar.  Evidentemente que não fico em qualquer espelunca (salvo algumas exceções que mencionarei adiante), mas não faço a menor questão de ostentações e confortos supérfluos.  A ideia nesses dias é apenas uma cama, banheiro limpo e café da manhã (mesmo na Argentina).  Por exemplo se eu estiver indo do Rio de Janeiro para o nordeste com parada em Salvador.  Seguindo meu ritmo e padrão eu faria meu primeiro pernoite em Linhares (ES), a cerca de 650 km do Rio.  Nessa cidade seria o caso número 1: um pernoite simples.  Já no outro dia poderia escolher para o pernoite seguinte a cidade de Ilhéus que pelos seus atrativos entraria na classificação número 2: dia de deslocamento com escolha da cidade para pernoite pelos seus atrativos.  E finalmente Salvador seria o caso número três: dias de turismo e visitação.  Nesse último caso a escolha do hotel tem importância maior pois além de ficar mais tempo na cidade também há a demanda de informações turísticas e a eventual contratação de passeios etc.

El Calafate assim como Ushuaia estavam na minha cabeça e projeto de viagem como cidades para turismo e visitação.  Um bom hotel nessas cidades fez parte do meu planejamento.  Mas é hotel no máximo 4 estrelas, apenas para me proporcionar um pouco de conforto, com ambiente aquecido, bom café da manhã, quarto e banheiro arrumados e limpos etc.  Nada de demonstrações desnecessárias e fúteis de capacidade financeira.  Para mim quem faz isso é a pessoa que certamente se sente inferior e precisa “convencer” os outros do contrário.  Pode até ter dinheiro no bolso mas é muito pobre no espírito.

No meu caso foi possível apenas porque ainda estava contando com o câmbio extremamente favorável para essas pequenas extravagâncias.  Eu havia comprado a moeda argentina a trinta e seis centavos de Real.  E àquela altura o Peso já estava valendo trinta centavos de Real, e a desvalorização era constante.  Ou seja, pouco menos de um terço da nossa moeda.  Ficar três dias num hotel quatro estrelas em El Calafate por 207 dólares é moleza demais!

A rua que me levou ao Terrazas del Calafate é uma subida em rípio com o hotel no final dela.  Fica no alto o que me proporcionou uma bela vista do Lago Argentino nos três dias que fiquei por lá.

Assim que parei a moto vi que havia um simpático cachorro deitado diante da porta principal do hotel.  Saltei da moto e ele instantaneamente levantou-se me olhando e acompanhando meus movimentos de desembarque.  Não retirei de imediato o capacete e percebi que o cão me olhava apreensivo, conheço esse comportamento.  Comecei a caminhar em direção à porta e o coitado começou a movimentar-se a fim de manter uma distância segura de mim, estava com medo de mim.  Parei e retirei o capacete.  Olhei amistosamente para ele e vi suas orelhas relaxarem e o rabo balançar.  Havia “conquistado”  o bicho.  Quando cheguei junto a ele fiz um carinho e a partir daí ele me acompanhou o tempo todo, inclusive hotel adentro.  Quando cheguei na recepção ele se deitou aos meus pés.  O tempo todo eu pensei ser uma espécie de mascote do hotel.  Não era um cão mestiço, era um belo Golden Retriever.  Mas assim que a recepcionista o viu, o enxotou para fora do hotel.  Depois vim a saber que se tratava de um cão da vizinhança que de vez em quando ficava por ali.  “Gente” boa o cachorro.

Depois de esvaziar a bagagem e tomar meu banho, pedi um taxi para me levar ao centro e fui dar uma volta a pé pela cidade.  Antes a recepcionista me perguntou se iria jantar no hotel pois teria de fazer reserva.  A exemplo do que fiz em três dos quatro dias que estive em Ushuaia, também jantei no hotel em El Calafate.  Eu acho que em virtude da falta da escuridão noturna naquelas latitudes, a fome só chega muito tarde da noite, invariavelmente depois das nove.  E salvo em alguma noite que haja programação, à essa hora certamente já estou de volta ao hotel.

Na volta da rua vi que havia um rapaz na recepção em substituição à moça que me recebeu mais cedo.  Solicitei informações sobre passeios para o dia seguinte e contratei a indispensável visitação ao Glaciar Perito Moreno com navegação e trekking sobre o glacial.  É uma programação “full day” que vale muito a pena.

Jantei e aproveitei uma excelente noite de sono.  Na manhã seguinte estava entrando na van que me levou ao ônibus que foi aos poucos recebendo outros turistas de outras vans, e depois de completo nos levou ao Glaciar Perito Moreno.

O visual é incrível.  Parece e é coisa de cinema.  Uma infinita massa de gelo que nasce nas montanhas e avança através do lago.  Mas é uma visão mais que superlativa, é gigantesca mesmo.  Imagine um bloco infinito em comprimento, da maior largura possível limitada apenas pelas rochas, e com uma altura impressionante que supera em muito os prédios que estamos acostumados a ver nas cidades brasileiras.  É realmente impactante a visão de mais essa obra da natureza.

Depois de algum tempo caminhando pelas várias passarelas dos diversos mirantes, fui tomar um chocolate quente no restaurante do parque enquanto aguardava o ônibus para nos levar ao porto.

Enquanto aquecia o corpo com o conteúdo da xícara me peguei pensando sobre essa minha condição quase permanente de viajante solitário.  O fato de estar aposentado e separado me dá uma condição de liberdade pouco comum.  É sempre muito difícil encontrar companhia com a mesma disponibilidade de tempo para as viagens que costumo fazer.  Então cada lugar que paro para contemplação e cada ponto que visito assume uma dimensão diferente da que teria se não estivesse só.  Fico quase permanentemente em estado de meditação numa contínua e profunda introspecção.  É uma constante “viagem aos interiores da alma”.  Na verdade o motociclismo tem essa singularidade.  Mesmo que estejamos em um enorme grupo, enquanto em movimento ficamos restritos aos naturais limites impostos pelo nosso capacete, de modo geral não há comunicação nenhuma entre os componentes exceto as que acontecem nas paradas que fazemos.  Um grupo de motociclistas estradeiros é plural mas composto de vários singulares.

O ônibus buzinou para levar ao porto os que contrataram o passeio sobre a geleira.  Lá pegamos o barco e navegamos entre os enormes pedaços de gelo desprendidos do glacial que boiavam pelas águas do lago.  Quando o barco chegou junto ao imenso bloco, diante daquele paredão congelado é que pude realmente compreender sua dimensão.  Chega a ser assustador…

Depois de algum tempo navegando sempre junto àquele gigante branco azulado fomos desembarcar no outro lado do lago para almoçar as viandas que trazíamos conosco.  Viandas são pequenos lanches preparados pelos hotéis, e que levamos conosco porque não há local para almoço.  Nessa margem do lago o controle para preservação das condições naturais é muito rigoroso.  Só se pode ir acompanhado de um guia e desde o embarque é proibido fumar ou comer e beber qualquer coisa.  O consumo das viandas tem o momento e o local próprio.  Acontece assim que fazemos o desembarque.  Só então depois de nos alimentarmos é que seguirmos para fazer o trekking sobre o glacial.  Há nesse abrigo onde fazemos nossa refeição uma espécie de escaninho múltiplo onde todos deixamos nossas mochilas.  Para o trekking seguimos apenas com a roupa do corpo e as máquinas para registros de imagens.  Caminhamos por uma trilha, uma pequena praia e finalmente chegamos junto ao gelo.  Logo no início há um outro ponto de parada para recebermos um pequeno treinamento com orientações de como agir sobre o glacial, onde e como pisar.  Nesse ponto de parada atamos “grampones” aos nossos calçados para viabilizar a caminhada naquele tipo de piso.

Eu havia levado comigo desde o Brasil uma lata de cerveja Antártica para fazer uma foto e ser consumida quando ficasse gelada pelo gelo glacial.  A marca da cerveja foi escolhida por motivos óbvios.  Mas ocorreu um fato ainda mais legal: depois de cerca de uma hora de caminhada sobre aquela imensidão branca, os guias nos levaram para trás de uma espécie de duna onde havia um baú com copos e Whisky para todos.  Fizemos um brinde geral num ambiente de muita alegria e descontração.  Ah!  O gelo no copo foi retirado do chão com auxílio de uma picareta.  Sensacional!

Assim como outros tantos dias nessa viagem, esse foi um dia intenso de emoções e daqueles que ficam eternamente gravados em nossas lembranças.

Já no hotel depois de uma boa soneca após um banho revigorante, chegou a hora de jantar.  Engraçado é que a coisa acontece meio que por compromisso.  Devido à falta da escuridão noturna nem a fome sabe que já está na hora…

O restaurante do hotel fica em um piso inferior ao da recepção e dos apartamentos.  Como a construção foi feita no alto de uma encosta voltada para o lago, o acesso se dá pela parte de trás, em nível mais elevado.  É uma vista panorâmica, acessível de qualquer ponto o tempo todo.  E duradoura pela constante iluminação natural naquela época do ano.
Eu estava sentado (pela terceira vez) em minha já habitual mesa no canto esquerdo do salão, junto à janela.  Na verdade uma parede inteira de vidro.  Naquele restaurante só há três paredes.  Onde normalmente seria a quarta parede fica um imenso painel envidraçado propiciando a apreciação constante do belo visual.  Enquanto jantava, distraidamente  acompanhava com os olhos a movimentação lá em baixo.  Alguns carros na estrada junto ao lago, pessoas caminhando, quando de repente um barulho ensurdecedor acompanhado de um sacolejo que se prolongou por uns dois ou três segundos.  O barulho pareceu o de uma porta batendo.  Mas teria de ser uma porta muito grande para causar tanto impacto e tanta reverberação.  Durante alguns segundos pensei várias possibilidades, pensei até em explosão na cozinha.  Mas logo a cheff apareceu para ver como eu estava.  Percebi que ela estava tranquila mas me observava com ares de desconfiança.  Na verdade estava curiosa por saber se eu estava bem.  Aproveitei sua presença para perguntar o que foi que houve e ela disse ter sido “un tenblor”.
Perguntei o que era isso e ela repetiu: “un temblor”.  Talvez pela minha fisionomia ela tenha percebido que continuei na mesma, sem entender, então ela completou dizendo: “tenblor, terremoto”.  Só aí me dei conta que tremor em espanhol é tenblor.  Havia ocorrido um tremor de terra, um pequeno terremoto.  E eu ali jantando na maior calma!  Ela disse ser habitual esse tipo de manifestação natural naquela região e que as construções já são projetadas levando essa rotina em consideração.  A terra tremendo e eu ali na beirada do salão junto de uma gigantesca vidraça…

Para o dia seguinte havia contratado um outro passeio: uma descida de bicicleta do alto da montanha.  Um “Down Hill Cross Bike”.
O início seria normal, junto com todos os demais turistas, mas na hora da descida é que haveria a divisão de quem voltaria no ônibus 4×4 e quem voltaria de bike.
Quando entrei no ônibus vi que só haviam duas bicicletas lá no fundo.  Mas pensei que haveriam outras lá no alto.  O passeio é muito interessante.  O ônibus sobe cada pirambeira que chega a ser inacreditável a façanha.  Muito legal.
Na véspera quando contratei o Cross Bike, eles me avisaram que não era possível levar nada porque poderia molhar e não havia espaço para guardar.  Então infelizmente não levei nenhuma máquina para registrar com imagens.  Assim como também não levei casaco pois achei que iria era suar.  Mas até chegar o momento de pegar a bicicleta o ônibus visita muita coisa e passei um frio danado.

Quando finalmente chegamos no ponto mais alto, os demais turistas seguiram no ônibus e eu então vi que o único demente era eu: uma bike para o guia e outra para mim.  Só então pensei: o que que eu estou fazendo aqui?  Estou há mais de setenta dias fora de casa, sobre uma moto, com a coluna me matando de dor e ainda buscando recuperação, e eu descendo esse penhasco de bicicleta num frio de congelar pinguim!!!  Mas só o que posso dizer é que mais uma vez foi ruim mas foi bom…

apartamento do Terrazas del Calafate

Lago Argentino no visual do apartamento


Glaciar Perito Moreno

“grampones”

essa Antártica viajou comigo por 3 meses para ser gelada pelo gelo antártico

voucher do meu Cross Bike

“Em terra de Saci uma calça dá para dois”

Durante os três dias que estive em El Calafate eles se mantiveram ensolarados.  Mas eu diariamente acompanhava a previsão e sabia que na data da minha saída de lá o tempo iria mudar.  Mas dessa vez meu retorno seria todo por asfalto.  Eu pretendia passar de Rio Gallegos e só parar em Puerto San Julian.  Seriam cerca de 620km.  Inicialmente pensei em fazer um trajeto mais aventureiro e seguir pela tosca Ruta Provincial 9, que me levaria diretamente da Ruta 40 para a Ruta 3 e economizaria cerca de 200 km.  Mas fui veementemente desaconselhado por todas as pessoas a quem pedi sugestões de itinerário.  Eu não queria ter de voltar tudo até Rio Gallegos para depois então subir a Ruta 3.  Mas diante de tantas recomendações para não ir pela RP 9, e devido ao mau tempo que se anunciava, decidi acatar os aconselhamentos e seguir pelas vias mais “normais”.

Dia seguinte lá estava eu retomando minhas rotineiras tarefas de acomodar toda a bagagem na moto. Vi que o tempo estava realmente sombrio, mas havia em mim uma ponta de esperança (quase uma certeza) de que logo adiante eu deixaria para trás essa desagradável condição climática.  Dessa vez, assim como fiz na minha despedida de Ushuaia, me preparei para a chuva e o frio.  Não queria passar pelo mesmo desconforto que tive no meu percurso entre Rio Turbio e El Calafate.

Logo que saí dos arredores da cidade a chuva começou a apertar.  Junto com ela veio o frio.  Eu estava com a roupa térmica ligada por baixo do conjunto de cordura mas em alguns minutos comecei a achar que ela tinha apresentado defeito.  Não estava aquecendo o suficiente para aquele frio.  O controle do termostato estava lá por dentro, por baixo da jaqueta e não me era possível aumentar ou mesmo ver se os leds estavam acesos.  O vento já incomodava bastante e a chuva havia se transformado num temporal.  Em alguns minutos uma espécie de neblina se instalou e somando-se às outras condições começou a dificultar demais a condução da moto. 

Fui sendo aos poucos obrigado a reduzir a velocidade a fim de tentar manter um mínimo de segurança.  Até que me vi guiando a 60 km/h, no meio do nada, numa constante parede de água, sentindo frio e sendo sacudido pelo vento.  Decidido vi que teria de parar, não estava seguro continuar.

Segui naquele sufoco como pude, nem sei por quanto tempo.  Mais adiante passei por uma placa que dizia “La Esperanza 30 km”.  Não era possível enxergar o painel da moto para verificar o odômetro, mas eram só 30 km!  Só que a 60 km/h (ou até menos) a coisa custou uma eternidade para chegar.  Mas o nome era bastante apropriado, era minha esperança que em La Esperanza houvesse abrigo para mim.  

Digo isso porque durante essa viagem vi por diversas vezes placas indicativas de nada, absolutamente nada.  Havia a placa indicando o nome do lugar e só, apenas a placa em puro deserto!
Muitos minutos adiante mais uma placa indicando La Esperanza a 20 km.  Eu pensei: só andei dez quilômetros?  Não pode ser!  Mas depois de muito tempo mais uma placa com a indicação de 10 km.  A coisa estava sofrida, difícil de acontecer.  Me sentia como aquele burrico que anda atrás de uma cenoura que jamais alcançará porque está pendurada em uma varinha amarrada a ele próprio.  La Esperanza nunca chegava!  Mas depois de muita aflição surge na minha frente uma espécie de edificação.  Digo surge porque devido à massa de água que despencava, as coisas só eram percebidas a poucos metros.  Era um posto YPF.  Me aproximei do frentista e perguntei se havia algum hotel por ali.  Ele apontou para um restaurante no outro lado da pista.  Aparentemente La Esperanza se resumia a isso: um posto de combustíveis de um lado da estrada, e um restaurante do outro lado.  

Cruzei a pista e fui até o restaurante.  Àquela altura dos acontecimentos eu já queria garantir um quarto para passar a noite.  Ainda estava cedo.  Apesar do interminável tempo que levei até ali só havia rodado 160 km.  Quase a quarta parte do que havia planejado para aquele dia, mas naquelas condições estava impossível continuar.  Era preciso parar, mesmo àquela hora, ainda tão cedo.  Certamente ainda não era nem uma hora da tarde.  Se o tempo melhorasse eu poderia até mesmo seguir sem pernoitar ali.  Nesse caso a noite só traria o problema do frio mais intenso mas não da escuridão noturna porque ela simplesmente não acontece.  Mas havia também a possibilidade de o tempo permanecer daquela forma.  Queria então já garantir meu espaço antes que outros o fizessem e eu ficasse de fora!

à direita o posto; com telhado azul o restaurante e no alto os dois galpões

Dentro do restaurante a temperatura estava agradável, contrastando-se favoravelmente à que deixei do outro lado da porta que se fechou atrás de mim.  Estava encharcado e com bastante frio, intimamente torcia muito para que houvesse uma vaga para mim.  Dei uma breve olhada por todo o salão e verifiquei de imediato que se tratava de uma espécie de misto de restaurante com armazém de secos e molhados.  Além naturalmente de se prestar também às tarefas de recepção do “hotel”.  


Cheguei junto ao jovem que estava do outro lado do balcão e perguntei se havia “una habitacion” para eu passar aquela noite.  O cara “congelou”, virou estátua, e imóvel sem mexer absolutamente nada além dos olhos fitou-me fixamente com uma fisionomia que de imediato não consegui traduzir bem mas me pareceu que era de espanto, como se não acreditasse no que acabara de ouvir.  Em seguida me pareceu um tanto absorto, como se estivesse num pensamento tão profundo que margeou um rápido transe.  Depois, ainda sem mexer um músculo sequer, foi vagarosamente descendo o olhar esquadrinhando e assimilando meus trajes até chegar às minhas botas que já centralizavam uma considerável poça d’água em formação.  Imediatamente (ainda antes de me responder e de se mexer) através do vidro da janela buscou com os olhos a minha moto que com galhardia mantinha-se imponentemente altiva, como um puro-sangue indiferente ao temporal que caia lá fora.  Enquanto isso, fruto da calefação, eu ia aos poucos diminuindo a intensidade dos meus involuntários tremores de frio e olhando para ele aguardava pela resposta à minha pergunta.  Me pareceu que seria uma resposta simples: um sim ou um não.  Há ou não há um apartamento vago.  Objetivamente simples.


Mas tudo o que consegui dele para aquele momento foi um “vou verificar” antes de sumir pela porta que dava acesso da área do balcão às entranhas do estabelecimento.  Fiquei por ali me abrigando da tempestade enquanto torcia por uma resposta positiva.  Nesse meio tempo fui abordado por um senhor que também estava fazendo uma pausa por ali e que me mostrava uma foto minha feita em seu celular.  Ele exibia a foto como quem apresenta um troféu.  Bastante empolgado ele dizia que ficou muito impressionado como eu suportei aquele vento com toda aquela chuva.  Insistia em chamar a atenção para o quanto a moto estava inclinada para o lado mesmo na reta.  Dizia que estava vendo a hora do vento me derrubar e que se posicionou estrategicamente atrás de mim por vários quilômetros para me resguardar de ser abalroado pois disse que ele mesmo só me viu quando já estava extremamente próximo de mim.  Eu pensei comigo: “e eu não vi nada disso…”.  No momento em que aquela foto foi feita eu tinha meus olhos totalmente dedicados a tentar enxergar alguma coisa adiante de mim naquele penoso trajeto dentro de um temporal patagônico.  Pedi a ele que transferisse a foto por bluetooth do aparelho dele para o meu celular.  Ele sorriu e não sei se não compreendeu, mas enquanto eu percebia o regresso do rapaz do balcão, ele da mesma forma súbita que surgiu também desapareceu.  Fiquei sem o registro daquela angustiante situação.


Cheguei junto ao balcão e perguntei se havia ou não vaga para mim, se eu iria ou não poder pernoitar por ali.  Ele me disse que estavam preparando o quarto para eu ir conhecer.
Pensei comigo: “estranho, será que o hóspede anterior acabou de deixar o quarto e ainda não houve tempo para arrumar?”.   


Lá dentro do restaurante a temperatura era outra, havia calefação e também várias pessoas.  Isso por si só já deixa o ambiente agradável.  Mas eu estava encharcado e apesar do frio ter ficado lá fora meu corpo ainda estava gelado.  Como eu tinha de aguardar a arrumação do quarto pedi ao rapaz um chocolate quente na tentativa de me aquecer mais rapidamente.  Vi quando ele pegou uma xícara e a encheu de leite.  Em seguida foi junto àquela máquina de café expresso “afogou” no meu leite aquele bico por onde sai vapor.  Depois de deixar algum tempo borbulhando interrompeu o negócio e fez movimentos de me trazer a xícara com o leite já bem quente.  Mas enquanto ele dava a volta no balcão eu pensava: “e o chocolate, é só leite puro?”.  Quando ele apoiou aquela produção sobre a mesa eu vi que no pires ao lado da xícara haviam duas estreitas barras de chocolate.  Devo ter passado alguns segundos olhando para aquilo antes de compreender que tudo agora dependia apenas de mim.  Peguei então os lingotes de chocolate e cuidadosamente os mergulhei no leite quente.  Mexendo, mexendo e em alguns segundos eu tinha em minhas mãos minha xícara de chocolate quente.


Depois de uns vinte minutos o rapaz me chamou para conhecer o apartamento.  Eu já havia decidido que ficaria por lá.  Depois de estar aquecido voltar para aquele tempo implacável lá de fora?  Sem chance!  Me levantei da mesa e fui me dirigindo para o interior do salão mas vi que o cara estava caminhando em direção oposta, indo para a porta de saída.  Não entendi nada mas voltei para junto dele.  Ele me explicou que era lá fora, em outra edificação.  Legal… gostei… depois de aquecido tem de voltar lá pra fora…


Na verdade (vim a descobrir depois) não se tratava exatamente de um hotel mas eu ainda não tinha conhecimento dessa particularidade.  E convenhamos, mesmo que soubesse não havia opção.  Ou era aquilo ou a chuva e o vento gelado lá de fora.  Existe um ditado que diz: “o que não tem solução solucionado está”.  Localizados fisicamente ao lado do restaurante existiam dois galpões com oito ou dez quartos cada.  Entramos no primeiro galpão e depois de percorrer todo o corredor ele abriu a última porta e disse que o apartamento era aquele.  Alguém já ouviu falar na visão do inferno?  Bem que podiam ter quartos por lá pois eu iria preferir…  de imediato compreendi a indecisão do cara em me dizer se havia ou não vaga para mim.  Ele deve ter pensado: “esse Mauricinho chega nessa roupa de astronauta, numa BMW, nunca vai conseguir ficar num lugar assim…”  O quarto tinha três camas-beliche.  Os colchões não tinham lençóis nem os travesseiros tinham fronhas.  Numa delas não existia nem mesmo a forração natural dos colchões.  Era a espuma aparente.  Os travesseiros eram inacreditavelmente encardidos e as paredes do quarto eram grossas de tanta sujeira acumulada.  Não havia TV, apenas as ferragens do suporte e o banheiro acompanhava fielmente a mesma linha do quarto.  Enquanto eu olhava para o quarto o cara olhava para mim.  Percebi que uma das camas tinha um espécie de tecido pretendendo ser confundido com um lençol e sobre ele uma toalha dobrada.  Vi que havia um aparelho de calefação a gás e que já estava aceso.  Perguntei se estava no máximo e ele foi até lá e regulou o negócio.  Lembrei-me do mau tempo que fazia lá fora e imediatamente disse a ele que iria ficar com o apartamento.  Pelo menos ali eu estaria abrigado…


Fui até a moto e retirei só a bagagem necessária para passar aquela período até o dia seguinte.  Já havia decidido que não iria encarar o chuveiro daquele banheiro.  Já tinha tomado dois banhos naquele dia: um banho no aconchegante banheiro do hotel de El Calafate, e outro banho na chuva que peguei…
Depois de deixar minhas coisas no apartamento percebi que a única ocupação que teria por ali seria a TV do restaurante.  Mas eu estava um tanto fatigado pelo castigo daquele curto porém atribulado percurso.  Olhei para a cama coberta pelo tecido colocado sobre a espuma do colchão e não tive como evitar um pensamento de comparação com a box king size de lençóis bem branquinhos que havia deixado para trás naquela manhã.  Mas, “a necessidade faz o sapo pular” e eu pensei comigo mesmo enquanto olhava em volta de mim: “é o que tem pra hoje…”.
Peguei a surrada toalha que havia sido deixada aos pés da cama e a coloquei sobre o “travesseiro” a fim de evitar qualquer contato direto com aquele objeto.  Deitei assim mesmo como estava, sem retirar nenhuma peça de minha indumentária a não ser as botas e descansei por longas horas.


Mais tarde voltei ao restaurante para comer alguma coisa.  A chuva permanecia intensa, sem nenhuma mudança.  Haviam vários carros parados no estacionamento em frente.  Era difícil dizer, mas já devia ser final de tarde ou início da noite pois as pessoas faziam refeições o que me sugeriu ser hora do jantar.  Como já disse antes, há mais de um ano que não uso relógio e tinha deixado meu celular no apartamento, mas provavelmente deveriam ser umas sete horas da noite ou algo muito perto disso.  Todas aquelas pessoas ali, fazendo refeições, não era simplesmente uma coincidência.  Certamente era hora do jantar.  Pedi meu jantar e me foi colocado um prato de uma espécie de ensopado de frango com pele e tudo e mais um monte de outras coisas, umas submersas e outras boiando.  Acho que eram vegetais, sei lá.  Olhei em volta e o fato de estarem todas aquelas pessoas ali comendo funcionaram para minha cabeça como uma espécie de credencial do estabelecimento.  Criei coragem e mandei tudo pra dentro.


Minha moto permanecia lá na chuva, no mesmo lugar onde a havia deixado quando parei.  Não retirei quase nada da moto porque além de não ser necessário para minha estada, também me evitaria passar mais tempo debaixo de chuva desamarrando tudo que estava sobre ela.  Perguntei ao rapaz se ela poderia ficar ali mesmo, se não havia risco de mexerem em nada.  Ele disse que jamais houve reclamação de cliente mas se eu quisesse poderia botar a moto sobre uma espécie de passarela da calçada ao lado que vai para os dois galpões.  Essa passarela nada mais é do que uma estreita calçada que interliga a calçada do restaurante às portas dos galpões.  Forma uma espécie de “Y” onde na extremidade singular fica a calçada do restaurante e nas outras duas a porta de cada edificação.  O resto do terreno me pareceu que um dia já foi um jardim, mas naquele momento era apenas de terra simples.  E àquela altura já tinha virado um lamaçal pastoso.  No centro desse “Y” havia além dessa lama toda um grande arbusto que escondia totalmente a passagem para o segundo galpão.  Mas quem estivesse hospedado por lá quando fosse sair do restaurante já iria naturalmente optar por seguir pelo caminho da esquerda na bifurcação desse “Y”.  Havia entretanto uma interligação, também de cimento, que unia as duas pontas junto às portas, fechando a parte superior do “Y”.  Achei que ali seria o local ideal para deixar a moto pois como havia acesso direto e exclusivo para cada porta, não impediria o trânsito das pessoas para nenhum dos dois galpões.  Fiz isso.  Voltei até a moto, subi na calçada e abri o descanso lateral.  Mas a largura da passarela era insuficiente para a distância necessária que vai da base do pneu até a base do descanso.  Não poderia apoiar o descanso naquela lama pois não suportaria o peso da moto e afundaria direto.  Além do fato de que a altura da passarela era bastante superior (cerca de 20cm e mesmo que o terreno fosse firme a moto certamente tombaria porque iria ficar inclinada demais.  Vi que o piso entre os galpões era de rípio e manobrei a moto um pouco para dar distância suficiente para o descanso ficar no cimento da passarela.  Mas como a chuva não dava trégua, assim que foi possível tranquei o guidom e desci da moto.  Mas fiquei preso no espaço entre a moto e os dois galpões.  Precisei montar na moto novamente e descer pelo outro lado sendo obrigado a pisar naquela lama para sair dali.


A noite foi tranquila apesar de tudo.  É verdade que não pude me mexer muito pois queria evitar que a toalha saísse de cima do “travesseiro” durante meu sono.  Mas confesso que foi bem melhor do que imaginei a princípio.  Duro mesmo foi a mágica que tive de fazer para usar o vaso sanitário na manhã seguinte.  Dispensa comentários…


objeto para ser usado como travesseiro

Conflito de Identidade

A chuva diminuiu bastante a sua força, mas permaneceu durante toda a noite.  O dia seguinte já não era mais futuro, estava ali, se iniciando.  Era presente.  Fui até lá fora para verificar se minhas coisas ainda estavam sobre a moto e, é claro, ver também se minha moto ainda estava lá do jeito que deixei na noite anterior.  Depois de tranquilizar-me com o resultado positivo desta verificação era então preciso seguir meu caminho e tirar o atraso.


Na verdade essa ideia de atraso merece uma breve explicação: eu não tinha nenhuma data fixa antes de 4 de janeiro.  Somente neste dia precisaria estar em Urubici para o lançamento do evento do Bicho Véio, moto clube gaúcho do qual sou o embaixador no Rio de Janeiro.  Ainda era dia 19 de dezembro e eu estava relativamente perto, a cerca de 4200km de Foz do Iguaçu.  Já tinha entretanto decidido que a viagem tinha acabado, agora eu estava apenas voltando.  Aquelas várias opções que povoaram a minha cabeça, de voltar pelo Chile, Carretera Austral, compra de pneus em Osorno ou Santiago, Bariloche, natal com os amigos argentinos Flor e Facu em Neuquén etc. já tinham sido todas descartadas por mim.  Eu agora queria era voltar.  Tinha dezesseis dias disponíveis para chegar em Urubici.  Dava de sobra e com muita folga.  Talvez a pouca produtividade do dia anterior tenha reforçado em mim a sensação de estar atrasado.  Mas na verdade havia outro estranho motivo (certamente o principal) que me empurrava de volta ao Brasil.


Na minha programação original eu iria passar o natal em Buenos Aires e a virada do ano em Montevidéu.  Mas, tratando-se da pessoa que sou e como não podia deixar de ser, fui mudando essa ideia inúmeras vezes durante os três meses de viagem até ali.  Mesmo afastado há tanto tempo eu me comunicava com meus amigos quase diariamente através do Facebook.  Já havia recebido do Sampaio o convite para passar o natal com sua família em Foz do Iguaçu e do Junior para estar com eles em Cascavel na chegada de 2013.  Isso também recorrentemente vinha à minha cabeça.  Mas o que me fez decidir, “bater o martelo” de que deveria retornar foi uma situação nova para mim.  Um estranho motivo.  O fato de estar há três meses longe de casa não era problema para mim.  Mas o fato de estar há tanto tempo sem pronunciar meu próprio idioma foi (sem que eu percebesse) bagunçando minha identidade.  Escrever o português não substitui falar o português.  Eu conversava a todo instante com pessoas no Brasil, mas sempre por meio do teclado do telefone ou do computador.  Todos os sons que saíam da minha boca eram em espanhol.  Viajar sozinho pela América do Sul tem dessas coisas.  Você escreve, lê, pensa na sua língua original.  Mas quando fala não há brasileiros para ouvir então tem de ser em espanhol.  Isso foi causando uma considerável desordem na minha cabeça que eu cheguei ao ponto de por algumas vezes me pegar pensando em espanhol.  A todo instante, quando falava comigo mesmo, só adiante me dava conta de que estava falando em espanhol.  Tenho o hábito de fazer minhas orações diárias em cima da moto e por mais de uma vez iniciei a reza pronunciando mentalmente: “Padre nuestro…”  Na tormenta de ontem passei por uma grande pedra na beira da estrada na qual estava pintado em grandes letras brancas o nome “Jesus”.  Lembro que mentalmente li “Ressus” (com a pronúncia espanhola).
Pode parecer besteira mas isso foi tomando em mim uma dimensão tal que me senti como se estivesse perdendo minha própria referência.  Essas coisas aconteciam independentes de minha vontade.  Era como se pelo meu afastamento o tempo estivesse roubando minha identidade e dissipando minha personalidade.  Era hora de voltar!


Esse foi o estranho e verdadeiro motivo da minha decisão e do meu súbito regresso.


Mas voltando à minha saída do “hotel” em La Esperanza, eu estava ali feliz por ter visto que tudo estava conforme havia deixado na véspera: moto e bagagem.  Voltei para meu quarto e catei minhas coisas, as pus na moto e depois de vestir a capa de chuva dei um esquisito adeus para aquele alojamento.  Foi uma mescla de alívio por estar saindo dali, tipo “até nunca mais”, com um emocionado “muito obrigado por existir e ter me abrigado daquela tempo terrível que fazia lá fora”.  Eu sei, um tanto paradoxal, mas me fez rever meus conceitos e valores…


Já do lado de fora a chuva agora era tipo padrão, sem aqueles efeitos “hollywoodianos” da véspera.  Na moto tudo acondicionado e em mim capa de chuva, luvas, capacete, tudo ok.  Liguei a moto e fui saindo mas vi que pela manobrada de ontem a moto tinha ficado meio em diagonal à calçada/passarela.  Sair de ré estava difícil não só pela posição dela mas também porque como a moto não tem marcha a ré seria preciso meter o pé naquela lama com firmeza suficiente para empurrar a moto para trás.  Tarefa praticamente impossível de ser executada pois a lama estava ainda mais escorregadia pela incessante chuva que caía desde a véspera como também pela diferença de altura entre o piso da passarela e o piso ao lado dela (onde apoiaria meu pé).  Vi que a saída era engatar a primeira marcha e contornar aquela espécie de canteiro central seguindo todo o “Y”.  No centro desse canteiro havia aquele grande arbusto que me impedia um pouco de visualizar o piso adiante na segunda parte do “Y”, mas era o jeito.  Segui bem lentamente pois estava complicado achar lugar para pousar os pés e dar equilíbrio à moto.  Cheguei o mais perto que me foi possível da parede do segundo galpão para tentar numa única manobra vencer aquele ângulo agudo e fazer a curva para entrar na segunda perna do “Y”.  Eu estava naquela espécie de união das duas extremidades que fechava a parte superior do “Y”.
Já na primeira tentativa, depois de ter iniciado meu ingresso na segunda perna, a roda dianteira escorregou e desceu para a parte externa, parando apoiada na terra vinte centímetros abaixo.  Tudo o que eu não queria que acontecesse.  Tentei puxar de volta pelo guidom e nada.  Tentei baixar o descanso mas como a roda dianteira estava bem abaixo não havia altura suficiente.  Ou seja não tinha como acionar o descanso e apoiar a moto para que eu pudesse descer dela e, “no braço”, tentar subir a roda de volta.  Não tinha como seguir e descer para a terra porque além de ser uma espécie de “tiro no pé” pois certamente iria atolar na lama, havia um outro arbusto que me impediria de ir adiante.  Vi que mais uma vez não sairia sem ajuda da situação em que me encontrava.


Estava na chuva, sentado na moto, atrás de um arbusto que me isolava da visão da rua, sem poder sair de cima dela porque não era possível achar apoio.  O arbusto me atrapalhava mas tentei girar o corpo para avistar o posto e fazer sinal para alguém mas minha coluna não permitiu nenhum movimento.  Pensei em buzinar mas minha civilidade me fez lembrar que eram cerca de seis horas da manhã e com certeza haviam outras pessoas dormindo.  A ajuda que estava buscando poderia se transformar em problemas…

Fiquei ali parado sob chuva nem sei por quanto tempo, acho que uns vinte minutos.  De repente sai de uma porta lá da casa do restaurante uma mulher com uma toalha nas costas e se encaminha para um anexo que me pareceu ser um banheiro.  Chamei e pedi que ela buscasse um homem que pudesse me ajudar a sair dali.  Ela olhou e ignorou completamente minha súplica, desaparecendo por trás da porta do banheiro.  Mais outros vinte minutos e ela reaparece de banho tomado e olha para mim.  Voltei a pedir o auxílio dela, disse que sem ajuda não conseguiria sair dali, que ela por favor buscasse um homem para me ajudar a erguer a roda da moto.  Ela simplesmente respondeu que “no hay ningún hombre”.  E desapareceu definitivamente.  Aí está uma verdadeira dama… (juro que foi o que pensei dela).


Permaneci
muitos e longos minutos ali sentado sobre a moto até que saiu do “meu” galpão um cara com uma garrafa térmica na mão.  Pedi a ele se seria possível me ajudar e expliquei a situação.  Ele foi até a frente da moto e acertou as coisas deixando a roda dianteira sobre o piso de cimento.  Agradeci e fui saindo, cuidando para a roda dianteira não voltar a descer para a parte externa da passarela.  Tinha de ter cuidado também com a roda traseira para não escorregar para a parte interna.  Depois de vencida essa curva a coisa ficou fácil e fui seguindo até chegar na calçada e finalmente descer para o asfalto.

Paguei minha conta e finalmente segui meu caminho de saída da Patagônia.


Logo que der posto mais um pouco…….

Cone Sul passando pelo Deserto do Atacama

Clique nas fotos para ampliá-las

Curitiba
Ponte da Amizade, fronteira Brasil – Paraguai

Deixando o país, aduana Brasil / Argentina

Estradas argentinas: muito boas mas sem acostamento

Seguindo por uma auto-estrada para o noroeste argentino

Encontro na auto-estrada com motociclistas de Córdoba

Jujuy, o trecho mais bonito do noroeste argentino


Era muito bom quando avistávamos um posto de gasolina.

Levando combustível para garantir a travessia da Cordilheira dos Andes

Quebrada Humahuaca: espetacular, uma maravilha natural

Purmamarca: uma cidade super pitoresca e incrivelmente aconchegante. A presença da civilização Inca é intensa

Na falta da garagem no hotel vai a varanda mesmo

Aqui a altitude já castigava o corpo

Salar Grande. Aqui tudo é feito de sal, até a casa lá atrás

Um verdadeiro mar de sal. Aqui um dia foi água do oceano represada pelas movimentações das placas tectônicas. A água secou e ficou o sal.

Susques: quase 3900 metros de altitude. Impossível não sentir os efeitos

Aqui a situação estava, digamos que pouco confortável. E eu atribuindo todo o desconforto físico à altitude. Depois de jantar no hotel fiquei bom e descobri que o meu mal era fome…

Aduana Aregentina em Paso de Jama, no cume da Cordilheira dos Andes

Muito sol, mas muito frio. Acho que foi o ponto mais frio de toda a viagem

Deserto do Atacama: o lugar mais árido do planeta Terra. Aqui nada vive. Não há planta, não há animal, não há inseto. Nada.

Metade Chile e metade Bolívia. Vulcão Licancabur

True Rider MC nas estradas do mundo. Em cinco meses de atividades já foram mais de 30.000 km rodados. Bem rodados!

Entrada das ruínas de Pukara, em San Pedro de Atacama

Subida para as ruínas. É duro para quem não é cabrito ou Inca
Aqui onde estou são 2600m de altitude.

Esses caras tinham mesmo que chegar à extinção. Viver que nem cabrito da montanha mata qualquer um…
Mas a sensação é realmente forte. 

Ver o mundo lá em baixo e imaginar onde se está.

True Rider MC no topo do mundo

Imaginar que foi a civilizaçãio Inca, os aborígenes locais que colocaram cada pedra dessas, que eles viveram e morreram nessas casas, é indescritível…

Enfim de volta ao hotel

Adicionar legenda
De volta ao deserto do Atacama, o deserto mais alto do mundo. Ao fundo a arte feita pelos… por quem? 

Coisa de doido…

La Mano del Desierto. Uma escultura no meio do nada, feita pelo escultor Mario Irarrázabal

Taltal. Uma cidadezinha chilena muito linda às margens do Oceano Pacífico


Diorlando e um momento histórico: primeira vez que se molha com as águas do Pacífico

Nem sempre os caminhos eram asfaltados



Chile: uma positiva surpresa, muito bonito esse país

Chegando a Santiago





Descobri que tenho que ter uma dessas também. Tem caminhos que não pude seguir por falta de equipamento adequado

Hard Road. Nossos anfitriões em Santiago: Guido e Carolina

Deixando o Chile, novamente rumo à Cordilheira dos Andes

No Chile as placas têm uma apresentação contrária à nossa: primeiro o mais distante e por último o mais perto

Porto terrestre perto de Los Andes. Muitos quilômetros de fila de caminhões

Subindo a cordilheira pelos Caracoles

Divisa Chile – Argentina

Novamente longe do asfalto

Subindo rumo ao Aconcágua

Aconcágua: 6959 metros de altitude

Puente de Los Incas




Parada obrigatória em Buenos Aires

Acredite quem quiser: esse cara é pastor (de uma igreja, não de ovelhas)

Cruzando o Rio da Prata rumo ao Uruguai

Esse “barquinho” leva 450 passageiros nos andares superiores e 55 veículos nos inferiores

Montevidéu


De volta a Buenos Aires, Av. 9 de Julho

Casa Rosada, Buenos Aires

Entrando no túnel subfluvial, que liga as cidades de Santa Fé e Paraná, na Argentina, e que passa sob o rio Paraná

Interior do túnel subfluvial

Oscar: um amigo que ganhamos na cidade de Saladas, Argentina

Oscar “tirando onda” na Budega

Inicialmente vou apenas botando informações bem básicas e algumas fotos.

A falta de tempo durante a viagem está grande e tem ainda o fato de que nem todo hotel que ficamos tem wi-fi.

O que posso dizer é que a viagem está ótima apesar de alguns contratempos. Mas nada que sequer tenha feito marola.

Projeto Nordeste 2 – Campina Grande Motofest – Convenção Nacional do Brazil Rider’s



TÓPICO AINDA EM CONSTRUÇÃO

Projeto Nordeste 2 – ilustrado

ATENÇÃO: todas as distâncias são aproximadas!!!!!

Não sabíamos ao certo quanto tempo iríamos levar nessa viagem, mas estava previsto para durar mais ou menos um mês.

Fiz o planejamento em cima desse prazo, desse período de tempo.

Como de costume, depois de ter feito o roteiro básico, duas reuniões foram feitas na minha casa para apresentação do cronograma e ajustes e adaptações às vontades de cada um.

Sabíamos que tínhamos de estar em Campina Grande (PB) nos dias 23 e 24 de outubro pois iria ocorrer o 4º Campina Grande Motofest do amigo Álvaro Lucena, presidente do Rota 230 MC, e também aconteceria a 4ª Convenção Nacional e Internacional do Brazil Rider’s, entidade dedicada aos motociclistas estradeiros, da qual também sou membro.

Marcamos de sair no sábado dia 10 de outubro de 2009.

Viajar com Diorlando eu já estava acostumado, mas ter a presença de uma figura exótica e nada convencional como é o Fioravanti era ainda uma grande interrogação. Eu já tinha feito algumas viagens mais curtas na companhia dele: até Alcobaça e Porto Seguro na Bahia, Pirapetinga em Minas Gerais e Campinas em São Paulo, além das pequenas pelas cidades fluminenses. Mas passar cerca de trinta dias com ele era algo que só saberíamos como seria depois, quando o convívio fosse ficando rotineiro, transformando uma viagem longa numa espécie de Big Brother.

Minha moto tem incluído nela um sistema de intercomunicação piloto/garupa e, ainda, um outro sistema de comunicação via rádio PX, a chamada Faixa Cidadão. Sempre imaginei o quanto seria mais seguro e simplificador se todos estivéssemos equipados com um PX na moto. Propus ao Diorlando que ele comprasse um aparelho e instalasse na sua moto, expondo as facilidades e vantagens desse equipamento no comboio. Em alguns dias ele apareceu lá em casa para instalarmos o rádio na moto dele. Fioravanti quando soube quis um também, mas como só conseguiu receber o aparelho na véspera da viagem não foi possível fazer a instalação na moto dele antes da nossa partida. Deixamos para instalar em Itaparica ou Arembepe, cidades onde ficaríamos mais tempo pois lá faríamos dois pernoites em cada.

O dia da partida estava chegando. O planejamento todo feito.

A programação era:
10/10
Saída de Niterói e pernoite em Teixeira de Freitas (BA) – 900km;
11/10 e 12/10
Saída de Teixeira de Freitas e pernoites em Mar Grande (Itaparica – BA) – 720 km;
13/10 e 14/10
Saída de Mar Grande e pernoites em Arembepe (BA) – Ferry Boat + 60 km;
15/10
Saída de Arembepe e pernoite em Aracaju (SE) – 280km;
16/10
Saída de Aracaju e pernoite em Maceió (AL) – 280km;
17/10 e 18/10
Saída de Maceió e pernoites em Maragogi (AL) – 130km;
19/10
Saída de Maragogi e pernoite em João Pessoa (PB) – 270km;
20/10 e 21/10
Saída de João Pessoa e pernoites em Natal (RN) – 200km;
22/10
Saída de Natal e pernoite em João Pessoa (PB) – 200km;
23/10 e 24/10
Saída de João Pessoa e pernoites em Campina Grande (PB) – 120km;
25/10
Saída de Campina Grande e pernoite em Caruaru (PB) – 150km;
26/10
Saída de Caruaru e pernoite em Paulo Afonso (BA) – 370km;
27/10
Saída de Paulo Afonse e pernoite em Feira de Santana (BA) – 380km;
28/10 e 29/10
Saída de Feira de Santana e pernoites em Lençóis (BA) – 310km;
30/10
Saída de Lençóis e pernoite em Valença (BA) – 370km;
31/10
Saída de Valença e pernoite em Ilhéus (BA) – 230km;
01/11
Saída de Ilhéus e pernoite em Canavieiras (BA) – 120km;
02/11 e 03/11
Saída de Canavieiras e pernoites em Porto Seguro (BA) – 210km;
04/11 e 05/11
Saída de Porto Seguro e pernoites em Alcobaça (BA) – 240km;
06/11
Saída de Alcobaça e pernoite em Linhares (ES) – 320km;
07/11
Saída de Linhares e chegada em Niterói (RJ) – 650km.

Por experiência própria costumo deixar uns dias de reserva para imprevistos e ajustes no cronograma. Por isso não completei os trinta dias, deixei essa folga para se necessário ser utilizada oportunamente. Por mim ficavamos mais tempo, mas o Diorlando e o Fioravanti tinham de estar de volta pelos compromissos de trabalho. Eles costumam dizer que eu sou um vagabundo, que não tenho nada para fazer já que sou aposentado, mas eu discordo veementemente. Na minha ótica os vagabundos são eles pois eu estou viajando porque tenho tempo livre, eles é que estão deixando de trabalhar para viajar, ou seja para vagabundear.

Pois bem. Chegou a véspera da viagem e como era de se esperar os imprevistos (um tanto previsíveis) aconteceram. O Diorlando ainda estava cheio de coisas pendentes, numa correria danada, o que me fez ver que era melhor adiar a saída em um dia para que ele pudesse resolver tudo o que deveria ter resolvido antes mas não o fez. Marcamos então para sair no domingo.

Eu não quis já sair gastando um dos dias de reserva assim de cara, então avisei à turma que achava melhor diminuirmos a nossa estada na Ilha de Itaparica de dois para um pernoite. Se não fosse pelos “vagabundos” poderíamos repor esse dia perdido em algum ponto da viagem. Mas eles estavam temerosos com tantos dias afastados do trabalho (vagabundos!!!).

Manhã de domingo. Marquei com Fioravanti em Icaraí, e com o enrolado do Diorlando no “posto da boneca” em Itaboraí, a fim de ganhar tempo pois ele mora em Alcântara que fica no meio desse trajeto.


Meus amigos Piggy e Duck que não puderam fazer essa viagem porque não tinham como se afastar do trabalho (não são vagabundos), foram nos encontrar nesse posto para fazer nosso “bota fora”.

Depois de uma pequena “social” na lanchonete do posto tivemos que nos despedir do nosso casal amigo para seguirmos nossa viagem em direção ao nordeste brasileiro. Nossa meta para aquele dia era dormir em Teixeira de Freitas, coisa que não consegui fazer a turma alcançar na viagem de janeiro, nove meses antes. Entretanto dessa vez, sem a presença do presidente My Boy, eu estaria mais a vontade para cobrar o tempo e o ritmo.

Chegamos em Teixeira de Freitas já era noite, mas conseguimos manter o planejamento. Foi uma viagem tranquila e muito agradável nesse primeiro dia.

Quem viaja comigo já sabe que reservo os percursos maiores para os primeiros dias quando faço um planejamento de viagem longa. Isso acontece porque são os dias iniciais quando ainda não houve fadiga da viagem, e também não há nada de novo para se apreciar no trajeto já que são arredores de onde moramos.

Em relação ao cumprimento do cronograma eu sou realmente muito rigoroso. Entendo que como foi tudo discutido e apresentado previamente, lá na hora do “vamos ver” não cabe mais descontração e tempo perdido nas paradas. É momento de fazer valer o compromisso assumido. Depois, quando já estivermos usufruindo dos paraísos naturais do nosso país, aí sim a hora da bagunça e da preguiça chegou. Mas nesses trajetos que considero apenas como deslocamento, é preciso se ter o comprometimento de se fazer cumprir o combinado para que não tenhamos de perder um tempo que poderia estar sendo utilizado numa linda praia porque ficamos “enrolando” no primeiro ou no segundo dia. Fora o fato de que vai dar o maior trabalho ter de ajustar todo o planejamento. Parece que é simples, que seria só adiantar tudo em um dia, mas não é. Quando faço esses programas verifico as cidades do trajeto e levo em consideração o dia da semana em que vamos passar por lá. Por exemplo se vou para o sul e vou ter de cruzar a cidade de São Paulo, só faço quando isso acontece num final de semana. Você já imaginou o que é cruzar toda aquela marginal do Tietê num fim de tarde de um dia de semana? Na hora do rush? É melhor uma sessão de tortura chinesa. Já se for para o nordeste acontece o inverso, dou preferência ao dia de semana pois existem cidades turísticas que se formos pernoitar na sexta-feira ou no sábado corremos o risco de não achar lugar para dormir. Considero esses aspectos (entre outros) na hora de planejar e claro depois na hora de cobrar o cumprimento da meta diária. Mas é óbvio que tudo tem seu limite para que se mantenha o maior grau de segurança possível. Se alguém estiver cansado ou com qualquer outro problema (físico ou mecânico) já é razão para que deixemos o planejamento de lado. Mas caso contrário…

Piggy tinha-nos dado a dica de um hotel de beira de estrada em Teixeira de Freitas onde ele e Duck haviam estado numa viagem que fizeram a Porto Seguro no ano anterior. Liguei então para Piggy e tentei obter mais informações e detalhes para facilitar a localização. Como já era noite seria ótimo já se saber para onde ir do que ficar ainda procurando lugar para dormir. Eu estava justamente querendo nos poupar de entrar na cidade. A nossa estada por lá visava apenas o pernoite assim estava tentando não nos embrenharmos muito, pensando na facilidade e na rapidez da saída no dia seguinte.

Apesar de já ter passado por Teixeira de Freitas algumas dezenas de vezes, nunca havia entretanto dormido por lá. Não tinha referência própria de hotel. Todas as vezes que cruzei aquela região eu sempre que passava por lá ou estava ainda cedo para pernoitar ou, quando ia com um grupo menos homogêneo, já estava no início do dia seguinte pois já tínhamos pernoitado em alguma cidade antes.

As dicas de Piggy foram precisas, mas o hotel ao qual que ele nos encaminhara estava inativo. Lembrei-me então de um outro posto que conhecia e nos dirigimos a ele. No mês anterior eu estivera por lá, com Piggy, Duck e Fioravanti, quando voltava de Alcobaça, também no sul da Bahia. Finalmente e sem muita dificuldade estávamos acomodados para nosso descanso noturno o que nos possibilitaria percorrer a nossa próxima “perna” da viagem. A meta do dia seguinte era pernoitar em Mar Grande, na Ilha de Itaparica, distante cerca de 700 km de onde estávamos.

TÓPICO AINDA EM CONSTRUÇÃO

ignorar o material abaixo

1 – sábado 10/10
Percurso do dia 900 km
Pernoite em Teixeira de Freitas
Destino para amanhã Vera Cruz (Ilha)
Distância para amanhã 720 km via BR 101 Sto. Ant. Jesus (mais longo porém mais rápido)

* Não pudemos sair no sábado. Nossa saída ficou para amanhã.

2 – domingo 11/10 e segunda 12/10
Percurso do dia 720 km
Pernoite em Vera Cruz
Destino para amanhã Arembepe
Distância para amanhã 60 Km (Ferry-Boat + Tour por Salvador)

* Domingo -Saímos cedo e rodamos até Teixeira de Freitas conforme programado. Estamos com um dia de defasagem em relação ao projeto original. No dia seguinte acordamos às 5 horas e rodamos até a ilha de Itaparica.

* Segunda – Fizemos um longo passeio a pé pela ilha e às três horas pegamos o Ferry-Boat para Salvador. Desistimos da segunda noite na ilha de Itaparica para que pudéssemos “entrar no tempo” do planejado. Chegamos em Arembepe conforme programado.

























3 – terça 13/10 e quarta 14/10
Percurso do dia 60 km (Ferry-Boat + Tour por Salvador)
Pernoite em Arembepe
Destino para amanhã Aracaju
Distância para amanhã 280 km




4– quinta 15/10
Percurso do dia 280km
Pernoite em Aracaju
Destino para amanhã Maceió
Distância para amanhã 280 km
Obs.: indo pela estrada estadual AL 101 mais interessante














5 – sexta 16/10
Percurso do dia 280 km
Pernoite em Maceió
Destino para amanhã Maragogi
Distância para amanhã 130 km
Obs.: indo pela AL 101 até Barra de Santo Antônio. Atravessar com a balsa e continuar pela AL 101 até Maragogi











6 – sábado 17/10 e domingo 18/10
Percurso do dia 130 km
Pernoite em Maragogi
Destino para amanhã João Pessoa
Distância para amanhã 270

7 – segunda 19/10
Percurso do dia 270 km
Pernoite em João Pessoa
Destino para amanhã Natal
Distância para amanhã 200 km

8 – terça 20/10 e quarta 21/10
Percurso do dia 200 km
Pernoite em Natal
Destino para amanhã João Pessoa
Distância para amanhã 200 km

9 – quinta 22/10
Percurso do dia 200 km
Pernoite em João Pessoa
Destino para amanhã Campina Grande
Distância para amanhã 120 km

10 – sexta 23/10 e sábado 24/10
Percurso do dia 120 km
Pernoite em Campina Grande
Destino para amanhã Caruaru
Distância para amanhã 150 km

11 – domingo 25/10
Percurso do dia 150 km
Pernoite em Caruaru
Destino para amanhã Paulo Afonso
Distância para amanhã 370 km


12 – segunda 26/10
Percurso do dia 370 km
Pernoite em Paulo Afonso
Destino para amanhã Feira de Santana Distância para amanhã 380 km via BR 410 (Ribeira do Pombal/Tucano – 35 km)

13 – terça 27/10
Percurso do dia 380 km
Pernoite em Feira de Santana
Destino para amanhã Lençóis (Chapada Diamantina)
Distância para amanhã 310 km

14 – quarta 28/10 e quinta 29/10
Percurso do dia 310 km
Pernoite em Lençóis
Destino para amanhã Valença
Distância para amanhã 370 km
Obs.: Entrar na BA 046 em Itaberaba para Sto. Ant. Jesus


15 – sexta 30/10
Percurso do dia 370 km
Pernoite em Valença
Destino para amanhã Ilhéus
Distância para amanhã 230 km

16 – sábado 31/10
Percurso do dia 230 km
Pernoite Ilhéus
Destino para amanhã Canavieiras
Distância para amanhã 120 km

17 – domingo 1/11
Percurso do dia 120 km
Pernoite em Canavieiras
Destino para amanhã Porto Seguro
Distância para amanhã 210 km

18 – segunda 2/11 e terça 3/11
Percurso do dia 120 km
Pernoite em Porto Seguro
Destino para amanhã Alcobaça
Distância para amanhã 240 km

19 – quarta 4/11 e quinta 5/11
Percurso do dia 240 km
Pernoite em Alcobaça
Destino para amanhã Linhares
Distância para amanhã 320 km

20 – sexta 6/11
Percurso do dia 320 km
Pernoite em Linhares
Destino para amanhã Niterói
Distância para amanhã 650 km

21 – sábado 7/11
Percurso do dia 650 km
Chegada em Niterói

Obs.: Deixei um dia de segurança para eventuais contratempos ou alterações.

Agosto em Bonito – MS

Depois que voltamos do nordeste em janeiro, deixamos meio que combinado de irmos a Bonito. A data ainda não estava marcada mas pelo tipo de atrativos locais sabíamos que deveria ser num mês quente. Encarar passeio de bote, mergulhos, flutuações e banhos de rio no frio só mesmo pra quem é masoquista. Só poderíamos ir depois de pelo menos uns dois meses de intervalo pois eu sou o único aposentado e nesse nosso grupo alguém tem que pelo menos fingir que trabalha.
Passados fevereiro e março estaria chegando a hora de botarmos nosso plano em ação. Entretanto em abril fui a Porto Seguro com meu filho Bruninho, Piggy e Duck e dois meses depois, em junho, fomos eu, My Boy, Diorlando e Cometa 09 a São Joaquim, pela Serra do Rio do Rastro em Santa Catarina e depois ainda demos uma esticada até o Rio Grande do Sul. Lá voltamos a falar no assunto mas mesmo assim ainda não havíamos chegado a marcar a data.
Talvez em virtude de turbulências paralelas que duraram cerca de trinta dias, a ida a Bonito foi combinada por My Boy durante essa fase. Eu já havia marcado a visita a um evento motociclístico em Teresópolis, inclusive reservado hotel e depositado o valor para minha estada naquela cidade. Senti vontade de ir a Bonito também, mas eles sairiam no mesmo sábado em que eu subiria a serra para Teresópolis. Ainda tentei argumentar de que o momento não era próprio, estávamos no inverno e lá faz muito frio nessa época, mas não houve jeito. A decisão fora tomada durante aquela turbulência (talvez até por causa dela) e agora já era tarde para alterar. Paciência…
O dia chegou e cada um foi para o seu destino. À noite fiz contato por telefone com My Boy e soube que já estavam em Passos (MG) curtindo um evento local. Eles tinham a ideia de passar o domingo na cidade e sair de lá na segunda-feira cedo. Fiquei com “água na boca” de fazer essa viagem até Bonito. Domingo no café da manhã no hotel em Teresópolis, novo contato via telefone e eles me disseram que iriam sair de Passos depois do almoço, descartando aquela ideia de dormir uma segunda noite por lá. Queriam ganhar tempo. A distância do Rio de Janeiro até a cidade alvo do Mato Grosso do Sul é considerável, são cerca de 1900 km. Eles haviam rodado pouco mais de 600 km e apesar de terem saído às sete horas da manhã só chegaram em Passos bem depois das nove da noite. Queriam então transferir o tempo que usariam para estar a toa para tempo dedicado ao trajeto rumo a Bonito. Eu também faria isso se só tivesse nove dias para todo o programa.

Momento da decisão

Eram quase nove horas quando, enquanto tomava café da manhã no hotel em Teresópolis, decidi realmente que iria a Bonito. Entretanto eu estava com meu filho que voltaria às aulas no dia seguinte, teria que levá-lo para casa antes de ir. Desci para o Rio, pela serra, passando pela Rio-Petrópolis, Linha Vermelha, toda a Linha Amarela e fui até a Barra da Tijuca deixar o Bruninho na casa dele. Saí da Barra pouco antes do meio dia. Peguei toda a Linha Amarela de volta, novamente a Linha Vermelha e finalmente entrei na Via Dutra rumo a São Paulo, caminho para o Mato Grosso do Sul.
Minha ideia era seguir até São Paulo e de lá seguir pela rodovia Castelo Branco (SP 280) até quase chegar em Itatinga onde viraria à direita na SP 209 para Botucatu e lá passaria para a rodovia Marechal Rondon. A meta era passar de São Paulo ainda no domingo pois pegar aquela marginal do Tietê num dia de semana é o mesmo que pedir para morrer.
Ainda no café lá em Teresópolis eu perguntei a Vilma proprietária da Warrior o que ela achava desse meu trajeto. Ela disse que se fosse iria por Campinas. Alertou de que mesmo tendo de fazer várias de trocas de rodovias até chegar na Rondon ela achava bem melhor que ir até São Paulo para depois subir a Castelo Branco. Isso me deixou cheio de dúvidas, mas eu tinha até a parada de São José dos Campos para decidir.

Costumo sempre que vou para a direção sul seguir pela Dutra só até Taubaté. Meu caminho padrão é entrar na rodovia Carvalho Pinto (SP 070) e se for para os lados de Campinas seguir até Jacareí onde está a entrada da rodovia D. Pedro I (SP 065), ou continuar pela Carvalho Pinto direto até a Ayrton Senna para entrar na Marginal do Tietê se a intenção for seguir para a capital paulista ou ir ainda mais ao sul. Eu tinha consciência de que depois que eu deixasse a Dutra só haveria o posto do Frango Assado em São José dos Campos antes da entrada da D. Pedro. Se eu pretendia pedir informações para facilitar minha decisão teria de ser ainda na Via Dutra. Iniciei então uma tentativa de obter ajuda de caminhoneiros usando o rádio CB. Todos os que eu estabeleci contato me diziam para ir pela rodovia Castelo Branco direto e depois pegar a rodovia Raposo Tavares (SP 270) até a divisa com o Mato Grosso do Sul onde ela voltaria a ser a rodovia federal BR 267. Entretanto eu já tinha verificado para um amigo que pretendia ir a Bonito e sabia que assim que a BR 267 entrasse no MS encontraria mais de 250 km desconfortáveis, de pista ruim com buracos e ondulações além daquelas malditas valas formadas pelos caminhões pesados. Mesmo que eu atendesse às orientações dos caminhoneiros e seguisse pela Castelo Branco eu não pretendia ir direto até a divisa, eu sairia na SP 209 em direção a Botucatu e seguiria pela rodovia Marechal Rondon. A minha dúvida era somente de como seria melhor para se chegar na Marechal Rondon, se por São Paulo (via Castelo Branco) ou se por Campinas (via D. Pedro I).
Os caminhoneiros me recomendavam ir pela Castelo Branco, mas a Vilma, que passa a vida viajando com o ônibus da Warrior havia me dito para ir por Campinas. Acho que nunca fiquei tão indeciso numa escolha de roteiro.
Quando parei para o meu costumeiro abastecimento no posto do Graal de Itatiaia perguntei aos frentistas mas não obtive nenhuma resposta que me desse segurança. Um deles entretanto foi perguntar a um caminhoneiro que também disse para ir até São Paulo e lá pegar a Castelo Branco. Todos estavam me direcionando para o caminho que eu havia planejado, mas o conselho da Vilma não me saía da cabeça. Em Aparecida parei no posto Arco Íris para tentar resolver esse impasse. No último pedágio me recomendaram pedir informações por lá. A funcionária do caixa do posto me disse que todos os viajantes que passavam por ali em direção a Campo Grande iam por Campinas. E agora? Mais dúvidas… mais conversas com caminhoneiros pelo rádio CB e nada decidido. O que eu havia percebido é que os caminhoneiros preferiam a Castelo Branco, mas os demais não. Minha decisão não poderia acontecer depois de Jacareí onde está a saída da Carvalho Pinto para a D. Pedro. Lá eu teria de escolher entre seguir direto ou virar para Campinas.
Chegando no abastecimento do Frango Assado em São José dos Campos como de costume nenhum dos frentistas daquele posto soube dar qualquer informação. Estava abastecendo minha moto quando atrás de mim parou uma BMW LT 1200 cujo piloto parecia ser um viajante como eu. Ele foi a pessoa que como por encanto esclareceu toda a divergência entre as recomendações que recebi. Me fez decidir ir por Campinas quando, com forte sotaque paulistano, disse que o trecho da Castelo Branco de São Paulo até um pouco além da entrada para Botucatu era muito perigoso para nós motociclistas pois é repleto de caminhões. A distância a ser percorrida nas duas opções era praticamente a mesma e as pistas do roteiro por Campinas eram todas lisas e novas. Finalmente me acalmei e achei a segurança que buscava, enfim uma indicação que me convenceu.
E a Vilma estava certa…

Entrei na Rodovia D. Pedro I, velha conhecida minha, e fui curtindo aquela bela estrada. Inicialmente tinha a intenção de dormir pela região de Campinas, um pouco depois das entradas principais da cidade visando não enfrentar muito engarrafamento no dia seguinte quando acordasse pois seria segunda-feira e certamente o fluxo de veículos estaria bem maior que naquele fim de tarde de domingo. Campinas concentra, centraliza mesmo, uma boa quantidade das estradas paulistas. Existe até uma frase que diz que “Campinas é o lugar onde todos os caminhos se encontram”.
Quando passei por lá ainda estava dia claro, devia ser algo em torno de cinco horas da tarde então resolvi continuar um pouco mais.

No final da D. Pedro I peguei a Via Anhangüera (SP 330) imaginando dormir por Americana ou talvez Limeira. Sem perceber fui seguindo direto até chegar na rodovia Washington Luís (SP 310) onde entrei em direção a Rio Claro.
Bom, quem sabe durmo por lá?
Deixei Rio Claro também para trás. Segui até o ponto de entrada para a excepcional SP 225 que em cerca de 150 km finalmente me faria a ligação com a Marechal Rondon (SP 300). Esse entroncamento acontece em Bauru, cidade onde a SP 225 e a SP 300 se cruzam. Fui seguindo direto pela SP 225 que de Itirapina até Jaú chama-se Rodovia Engenheiro Paulo Nilo Romano, e de Jaú até Bauru leva o nome de Rodovia Comandante João Ribeiro de Barros. Agora já era noite mas eu estava tão bem disposto, tão alerta e sem nenhum “pingo” de sono ou cansaço que nada me fazia pensar em parar. Passei direto por Itirapina e Brotas. A escuridão noturna já estava realmente presente, eram cerca de dez horas eu acho quando avistei ao longe um posto da Policia Rodoviária. Já estava rodando havia mais de uma hora sem que tivesse passado por algum posto de gasolina. Perguntei ao policial que me recebeu na pista se tinha algum posto por perto, e ele apontou para um luminoso cerca de cem metros adiante. Abastecida a moto, lembrei-me que ainda não tinha comido nada além daquele café da manhã em Teresópolis e de um pão de queijo naquela parada no posto Arco Íris em Aparecida. Resolvi então dar uma esticada até a lanchonete do posto para comer alguma coisa.

Sem sair de perto

Desde que saí naquela manhã essa foi apenas a segunda vez em que me afastei da moto nos abastecimentos. Todas as outras vezes em que parei me limitei a abastecer a moto e quando muito uma “passadinha” no banheiro. Decidi então que deveria dedicar um tempinho também ao abastecimento do meu organismo. Um café expresso, uma esfirra de frango e um pequeno chocolate Talento. Esse foi o saldo dessa refeição. Dali do posto fiz uma ligação para Piggy e contei para ele onde estava e o que estava fazendo. Depois de ser carinhosamente chamado de maluco, louco, doido entre outros termos impublicáveis, algumas amenidades foram também faladas.
Trinta minutos depois saí do posto decidido a dormir em Bauru. Pela agilidade que oferece na entrada e saída, eu queria um motel de beira de estrada e o pessoal do posto havia me dito que só naquela cidade eu encontraria um. Segui então pela SP 225 e deixei Jaú, Itapuí, Pederneiras e Guaianás para trás até que cheguei nos arredores de Bauru. Cerca de 10 km antes havia passado uma placa informando que a SP 300 estava adiante. Imaginei que no momento em que chegasse a saída da 225 para a 300 fosse existir uma placa indicando. Assim como a Carvalho Pinto, a Ayrton Senna, a D. Pedro I, a Anhangüera, a Washington Luís, na verdade quase todas as rodovias estaduais paulistas a SP 225 é uma estrada em excelente estado de conservação, feita daquele asfalto bem escuro, em pista dupla com duas faixas de rolamento cada, sinalização horizontal perfeita com pintura das faixas e refletores do tipo “olho de gato” que parecem estar acesos. Um sonho. A Marechal Rondon é o trecho paulistada de algumas rodovias importantes como a BR 267 e principalmente a BR 262 que corta o Brasil de leste a oeste. Era de se esperar por uma informação que indicasse a rampa de ligação entre essas duas mega estradas. Mas por mais inacreditável que possa parecer isso não existe.
Passei por baixo de uma ponte daquelas que se percebe que é uma grande rodovia que está lá em cima, mas como não havia nenhuma placa indicando fui em frente. Logo a seguir a imponente estrada se transformou numa acanhada pista vicinal, em mão dupla e com o asfalto rachado e cheio de ondulações, daquelas que nós cariocas conhecemos bem. Todavia ainda era a SP 225, por isso resolvi continuar mais um pouco pois considerei a possibilidade de que aquele estado primoroso que a estrada tivera até aquele ponto fosse para atender ao fluxo entre Bauru e a região de Campinas e que logo mais à frente fosse surgir a entrada para a SP 300. Eu não estava maluco, pelo menos não muito já que estava guiando há mais de 14 horas sem parar, mas sabia que realmente não estava maluco e que tinha visto passar um aviso de que a SP 300 se aproximava, não era lógico que não existisse uma placa indicando a chegada dela. Mas apesar de não ser nada lógico era a verdade.
Avistei fortes e piscantes luzes amarelas características de carro de serviço lá adiante no meio da escuridão total. Me aproximei cautelosamente e vi que era uma caminhonete de apoio parada dando socorro a um carro com problemas mecânicos. Perguntei ao motorista pela rodovia Marechal Rondon e, como cheguei a suspeitar, era justamente aquela que passei por baixo. Agora aqui pensando enquanto escrevo, me parece mais do que óbvio que só poderia ser ela, mas naquele momento, sozinho, ou melhor, absolutamente sozinho, naquele breu, não havia espaço para um erro daquela proporção. Se eu entrasse numa rodovia daquele porte e não fosse a correta só Deus sabe onde eu iria achar o próximo retorno e o quanto eu iria, àquelas horas, me embrenhar por caminhos diversos ao que eu pretendia. Foi melhor errar numa pista simples onde pude simplesmente virar o guidom da moto e voltar.
Tudo isso eu considerei naqueles poucos segundos que se passaram entre avistar a ponte, a subida para a pista que estava lá em cima e a decisão de seguir em frente deixando tudo isso para trás. Se tivesse entrado no acesso teria acertado, mas se fosse a rodovia errada…
Entrei na SP 300, rodovia Marechal Rondon. A estrada que me levaria ao centro-oeste brasileiro. Estava entretanto pretendendo pernoitar por ali mesmo, bastava aparecer o primeiro motel na beira da estrada conforme me foi dito que aconteceria.
Atento e em velocidade reduzida fui seguindo pela rodovia. Bauru foi gradativamente ficando para trás e não avistei motel nenhum. Certamente eles deviam estar lá, mas como durante a passagem por aquela cidade a Marechal Rondon a todo instante oferece saídas para pistas laterais usadas para serviço, ficou difícil observar e ainda guiar pelas pistas principais. O fato é que não achei o que queria em Bauru. Continuei então seguindo na direção oeste. No abastecimento seguinte eu perguntei ao frentista que me disse que talvez em Lins eu encontrasse algum hotel na beira da estrada. Lins fica distante cerca de 100 km de Bauru.
Pouco antes da entrada para Avaí há um pedágio e lá aproveitei para confirmar a informação do frentista. Eu não estava com sono tampouco estava cansado, então não haveria nenhum risco adicional aos naturais de uma viagem noturna.
Assim segui até Lins, mas quando fui chegando na área urbana daquela cidade percebi que teria de me afastar muito da estrada entrando demais na cidade. Novamente decidi continuar. Araçatuba fica a mais ou menos 95 km de Lins e é uma cidade com bastante estrutura. Poderia ser lá meu pernoite, quem sabe? E ainda tinha a pequena Promissão que estava a cerca de 20 km dali.
A essa altura a noite já havia ficado para trás e estava entrando pela madrugada. Já passava muito da meia noite. A estrada era só minha, além das luzes do painel da moto eu só avistava o que meu farol iluminava, absolutamente mais nada, uma escuridão muito louca. Nem lua havia no céu. Não tinha mais ninguém usando a estrada eu era o único a cruzar aquelas terras naquela madrugada de domingo para segunda-feira.

Mais uma cobrança de pedágio logo após a entrada para Guaiçara e o funcionário me disse que em Promissão havia um motel logo na entrada da cidade, coisa de menos de 1 km de desvio da pista principal. Pensei então que havia chegado o local do meu pernoite. Na verdade eu acho que eu estava era protelando o momento da minha parada. Eu estava tão alerta e inteiro que não estava mesmo querendo parar. Já estava guiando há mais de 16 horas sem parar mas não sentia nenhum efeito do que se poderia chamar de desgaste natural. As estradas pelas quais havia passado até agora eram tão boas que achei que deveria aproveitar para continuar mesmo madrugada adentro. Eu sabia que quando entrasse no Mato Grosso do Sul a mesma estrada deixaria de ser pedagiada e passaria a ser uma rodovia federal, provavelmente com a manutenção que nós já sabemos como é feita. Além do fato de que passaria a ser de mão dupla. Se eu queria ganhar tempo devia aproveitar meu estado tranquilo e as excelentes condições das rodovias paulistas. Só mesmo naquelas estradas para se aventurar àquelas horas.
Assim que paguei o pedágio saí rapidamente e com a moto ainda em primeira marcha ouvi um forte estalo do lado direito do motor. Achei estranho pois foi alto o barulho, parecido com aquele que ocorre quando engatamos a primeira marcha, entretanto tudo parecia estar funcionando normalmente e fui seguindo em frente e deixando a praça do pedágio desaparecer na escuridão. Quando atingi a última marcha percebi que não havia acendido a luz que indica que a sexta está engrenada. Pensei que talvez a lâmpada pudesse ter queimado. Dei uma batidinha com os dedos no velocímetro para ver se funcionava mas nada feito. Ainda rodei por algum tempo mas estava intrigado com aquilo e achei que deveria parar para ver o que poderia estar acontecendo. Quando apertei a embreagem a fim de reduzir para quinta o motor apagou, morreu. O farol e a iluminação do painel continuavam bem, mas o motor apagado. Ainda estava em certa velocidade pois estava exatamente reduzindo para quinta marcha, então ainda com a mão na embreagem fiz contato no botão de start para acionar o motor de arranque. A moto pegou tranquilamente e pude voltar a acelerar. Novamente na última marcha a luz não acendeu. Fiz o mesmo procedimento de redução e a moto também repetiu o que fizera antes: morreu assim que apertei a embreagem. Resolvi que deveria parar no acostamento como quase fizera antes. Apertei o botão a moto pegou e fui com ela no embalo até o acostamento. Reduzi todas as marchas até entrar o neutro. Soltei então a embreagem e o motor continuou ligado normalmente em marcha lenta. Achei que tudo estivesse bem e saí para a estrada de novo. Mais uma vez cheguei na última marcha e nada da luzinha acender. Apertei a embreagem para ver se a moto continuava ligada o que me indicaria que poderia ser apenas a luz queimada. Mas o motor novamente apagou. Voltei a ligar a moto e mais uma vez parei no acostamento. Durante algum tempo fiquei ali sentado na moto, ela ligada em ponto morto, pensando no que fazer. Eu era o único ser humano naquela local àquela hora da madrugada. O pedágio já tinha ficado bem distante de mim, eu já não conseguia nem ver a luzes das cabines. Muitas vezes, em diversas situações, usamos a expressão de que estamos apenas “Deus e eu”. Posso garantir que dessa vez realmente só estávamos nos dois por lá. Não dava pra ouvir nada além do som do motor ressoando na mata que acompanha a lateral da rodovia. Esse período em que estive sentado sobre a moto ali parada e ligada me pareceram longas horas. O que fazer, o quê? A decisão dependia só de mim, não havia ninguém mais ali. Se eu continuasse poderia acontecer algo pior, sei lá. Imaginei que aquele estalo que ouvi fosse algo de errado com a caixa de marchas e fiquei com medo de que ela travasse com a moto em velocidade e eu pudesse vir a perder o controle. Mas por outro lado eu não poderia ficar eternamente ali parado esperando amanhecer. A temperatura ambiente não era nada agradável, já fazia bastante frio. Eu tinha que fazer alguma coisa.
Hoje as motos são tão eletrônicas que pensei em agir como se fosse um problema daqueles insolúveis que vez por outra acontecem nos computadores e que só são solucionados quando damos um ”boot” na máquina. Resolvi arriscar e fazer o mesmo com a moto. Decidi que iria desligar o motor para “zerar” tudo. Eu tinha plena consciência de que ele poderia não mais ligar e eu ter de passar a noite ali, mas eu preferia esse risco ao da moto travar comigo em cima dela a mais de 100 km/h. Decidido girei a chave desligando o motor. O que vi a seguir foi um nada. Isso mesmo: um nada. Não via nada e não ouvia nada. Foi mais ou menos como um hiato na minha vida. Eu não estava em lugar nenhum, nada existia além de minha respiração e meu coração. E eu mesmo nem me via. Cheguei a não ter nem certeza de que ainda estava vivo. Era como se estivesse de olhos fechados e ouvidos tapados. Só era possível ouvir os sons que vinham de dentro, minha respiração e o fluxo sanguíneo produzido pelos meus batimentos cardíacos. Foi uma sensação muito forte e estranha. Difícil de descrever com a mesma dose de impacto e tensão. Acho que pela ansiedade de saber se a moto iria voltar a funcionar somada às condições naturais do lugar fizeram daquele momento um interminável vazio de tudo que conhecemos e sentimos. Ali eu era o tudo e o nada, eu era tudo o que existia ali mas ao mesmo tempo não era nada, não existia, muito estranho mesmo. O meu corpo ficou arrepiado por inteiro, uma sensação constante de intenso susto. Eu abria bem os olhos e não era possível ver nada, nada mesmo. Arregalava os olhos e não via nem minhas mãos, estava ali vivendo uma sensação totalmente inédita, surrealista, absurdamente inacreditável, muito intensa e forte. Absoluto silencio e escuridão total. Cheguei a me tocar para ver se realmente estava ali, vivo. Foram apenas alguns segundos eu acho, mas gigantescos segundos.
Tateando voltei a girar a chave da moto, o painel acendeu normalmente e o farol iluminou o planeta. Apertei o botão de contato e o motor da moto assumiu aquela batida descompassada característica das Harleys-Davidsons. O bichão é valente, não nega fogo. Saí e fui fazendo a troca de marchas, segunda, terceira, quarta, quinta e finalmente a sexta. Olhei para o painel e lá estava a luzinha verde com a forma do algarismo seis. Tudo havia voltado ao normal. Não sei o que aconteceu, acho que uma marcha pode ter “pulado” e por isso enganado o sensor da sexta marcha e como resultado disso o computador da moto ficou confuso alterando o comportamento geral. Mas o fato é que eu já estava novamente cortando o asfalto em direção ao centro-oeste do Brasil.
Assim que avistei a entrada de Promissão reduzi e virei em direção à cidade. Realmente logo apareceu um motel do lado direito. Parei na cabine de entrada e pedi que a recepcionista me informasse o valor para um pernoite. Fiquei assustado. Ela disse que teria de me cobrar R$ 95 e que como ainda não eram duas horas da madrugada ainda haveria uma taxa de R$ 20 o que transformaria o pernoite em R$ 115. Tentei argumentar de que era apenas um pernoite, que eu estava sozinho, mas ela me disse que era o único motel da cidade e que estava acontecendo um rodeio por lá, por isso esse preço. Agradeci dei meia volta e retornei ao meu objetivo principal: rodar com minha moto na direção de Bonito.
Dali até Araçatuba são 80 km mais ou menos. Certamente pela dimensão daquela cidade não faltariam ofertas de locais para pernoite, mas eu já estava meio que voltado a ir direto até a divisa.
Chegando em Araçatuba nem procurei lugar pra ficar. Faltavam apenas 160 km até Três Lagoas, primeira cidade do Mato Grosso do Sul. Ainda passaria por Andradina, última cidade paulista, mas nem quis saber, segui direto.

Passava pouca coisa das três horas da madrugada quando cruzei a ponte da eclusa da usina de Jupiá. Estava nos últimos metros do território paulista, prestes a entrar no centro-oeste brasileiro. Havia rodado naquele dia 18 horas direto fazendo um total de 1348 km em nove rodovias diferentes. Parei no primeiro posto BR, em frente ao Cristo da cidade, e abasteci a moto já visando a saída no dia seguinte. Cerca de 2 km adiante entrei no motel indicado pelo frentista daquele posto.

Acordei um pouco depois das sete e trinta. Saí direto sem café e uma hora e meia depois estava parado num posto saboreando uma tônica com um estranhíssimo pão de forma com manteiga. Claro que antes de tudo rolou aquele cafezinho no copo.

Dali segui em direção ao mais profundo centro-oeste brasileiro antes de se transformar em pantanal. Minha meta era Campo Grande, a cidade capital do MS.
As condições da BR 262 no estado do Mato Grosso do Sul me surpreenderam. Confesso que esperava uma situação bem pior. Apesar de ser uma estrada federal com pista única e em mão dupla, bate de dez a zero no asfalto da Marechal Rondon que se apresentou repleto de pequenos buracos e ondulações apesar da administração da Via Rondon e das quatro praças de pedágio em que fui obrigado a deixar R$ 15,60 no trecho de Bauru até a divisa.
Pode até ser que seja devido à ligação de Campo Grande com São Paulo, mas o fato é que foi uma agradável surpresa. Sinceramente se eu soubesse que a estrada estava assim certamente teria continuado e não teria parado para dormir em Três Lagoas. Mas agora pensando com responsabilidade, ainda bem que eu não sabia e parei.
Eu queria fazer uma surpresa para o grupo que já estava indo. O trajeto deles era cento e dez km maior que o meu, mas eles saíram um dia antes de mim. Imaginei que eles já estivessem bem na minha frente. Depois eu me dei conta de que na verdade o meu percurso é que terminou ficando ainda maior que o deles pois eu saí de Teresópolis que fica 100 km ao norte do Rio, no sentido oposto. E ainda teve a ida e volta por parte da linha vermelha o que representou um total de 30 km; ida e volta por toda a extensão da linha amarela, mais 50 km; e ainda a Av. Ayrton Senna e parte da Av. das Américas, tudo isso ida e volta. Assim eu é que terminei fazendo um trajeto maior em mais de 100 km. Por isso eu realmente achava que estava ainda bem atrás deles. Percurso maior e tendo saído um dia depois, só mesmo aquela minha aventura noturna para tentar chegar perto do ponto em que eu imaginava que eles estavam.

Eu me mantive constante, sempre a uma velocidade entre 100 e 120 km/h. Muito raramente ultrapasso os 120 km/h e se isso acontece é sempre por pouquíssimo tempo como uma ultrapassagem por exemplo. Não adianta ninguém tentar me manter acima dessa velocidade pois não me sinto confortável e reduzo logo. Quando estou sozinho então jamais passo dos 120 km/h e isso não contribuía em nada para que eu pudesse alcançá-los, mas por outro lado o fato de eu estar viajando sozinho fazia com que minhas paradas fossem bem mais breves e, ainda, o meu ritmo contínuo e uniforme favoreciam para encurtar um pouco o tempo de minha viagem.
Passei por Campo Grande antes do meio dia. Dei uma volta pela cidade apreciando a terra do meu amigo Alexandre Lacorte e depois de uma abastecida geral segui para a saída no sentido de Bonito.
De lá minha direção já não seria mais oeste, assumiria uma rota de descida em diagonal na direção sudoeste. A BR 262 já não era mais a via principal, já havia ficado para trás. Agora seria a BR 419, que faz parte do sistema da rodovia BR 060, estrada pela qual estava rodando naquele momento. Novo sentido novas referências. Até aqui Campo Grande era a grande meta, agora deveria seguir no sentido de Sidrolândia. Apesar da semelhança o nome da cidade não tem ligação nenhuma com a produção de sidra, deve-se ao seu fundador o Catarinense de Lages, Sidrônio Antunes de Andrade.
Depois da passagem pela pista que corta o centro da cidade a meta agora seria a pequena Nioaque.
No trajeto entre Sidrolândia e Nioaque vi vários animais mortos, atropelados, uma pena. Foram macacos, tatus, aves e até um tamanduá. Estava observando os enormes campos planos e com aquela plantação quase toda comprometida, ressentida pela recente ausência total de chuvas, quando vi que uma figura atravessava a pista em que eu ia passar. Era uma grande ave estranha com as pernas compridas e peladas, assim como seu longo pescoço. Ela vinha naquele compasso calmamente desfilando sobranceira, trazendo aquela expressão com um olhar de quem está espiando por cima de um muro alto. Entretanto toda aquela pose se desfez quando percebeu que por mais que eu tentasse não atingi-la eu não conseguiria evitar. Perdeu toda a altivez e desesperadamente batendo as asas sem eficácia alguma saiu apavorada correndo para fora da pista. Apesar do susto para ambos a cena foi muito engraçada. Mais adiante desviei de atropelar um tatu, mas esse foi fácil. Depois no abastecimento em Nioaque soube que aquela ave provavelmente se tratava de uma ema ou filhote de ema.

A chegada em Nioaque é curiosa: você vem pela estrada e chega numa pequena praça onde está o nome da cidade e mais nada. A estrada é interrompida por essa pracinha e depois dela há uma outra estrada em sentido transversal formando um T. Não há indicação nenhuma para onde se deve ir, se direita ou esquerda. Ou se arrisca ou, com um pouco de sorte, se pergunta se houver alguém ali por perto. Normalmente as cidades crescem em volta da rodovia, nesse caso não, a rodovia desaparece, é interrompida. E por coincidência ou não diz-se que Nioaque é uma palavra indígena que significa clavícula quebrada.

Cerca de 50 km depois passei pela cidade de Guia Lopes da Laguna que foi o ponto onde deixei a rodovia federal e parti em direção a Bonito pelos 60 km da estadual MS 382.

Cheguei na cidade por volta das três horas da tarde e fui direto me hospedar. Fiquei numa pousada com pequenos chalés muito legais. Logo que pude telefonei para meu velho amigo Diorlando que ainda estava no trabalho. Depois de instalado na pousada mandei-lhe um e-mail com duas fotos minhas na entrada da cidade. Ele entretanto nem imaginava que eu tinha ido para Bonito. Quando eu lhe disse que estava lá ele achou que fosse piada minha pois no dia anterior eu havia falado com ele de Teresópolis. Pedi então que ele verificasse a caixa de entrada dos seus e-mails. O que ouvi em seguida foi: – Você é um alucinado!!!! Alucinado!!!!

Depois de acalmar meu amigo que ainda não conseguia compreender como era possível eu num dia estar, ao meio dia, no Rio de Janeiro e no outro às três estar falando ao telefone de Bonito no Mato Grosso do Sul, saí para curtir o lugar. À noite quando já estava no chalé consegui falar com My Boy. Soube ali que havia chegado bem na frente deles pois eles ainda estavam pernoitando em Campo Grande. Resolvi não dizer nada que havia ido para Bonito. Ele me dizia que eu estava perdendo o passeio, que era tudo lindo e que eu deveria pegar um avião e encontrar com eles pois havia vaga no carro que acompanhava o grupo. Sem dizer que estava lá passei o endereço da pousada para que eles fossem se hospedar, menti dizendo que havia ligado para lá e já havia feito reservas para todos.
No final do dia seguinte apareceram por lá: My Boy, Maurício, Cláudia, Abud, Regina e Junior, e eu fui recebê-los na rua. Surpreso quando me viu ali em pé diante dele My Boy perguntou se eu tinha resolvido e finalmente ido de avião.
Eu apontando para minha moto parada na garagem do hotel disse:

– Olha meu avião ali!

No final nem foi realmente mentira porque depois daquele telefonema na véspera, quando então soube que eles ainda não estavam em Bonito, fiz mesmo as reservas para eles.

Janeiro 2009 no Nordeste

Em outubro de 2008 fiz uma viagem pelo interior de Minas Gerais, acompanhado dos amigos Diorlando e Amora, também integrantes do Road Kings MC. Minha idéia era rodar pelas estradas ignoradas pela maioria. Nada de highways que ligam os grandes centros e não dão oportunidade de conhecer os locais por onde estamos passando. Escolhi somente pequenas estradas com cidades pitorescas e lugares bonitos. Montei um trajeto por estradas estaduais, secundárias, fugindo das grandes rodovias exatamente para apreciar o que sempre nos escapa quando nos deslocamos pelas “BRs”. Resolvemos sair sem destino certo, apenas com uma idéia geral que ia se ajustando e se consolidando a cada dia da viagem. O Amora é natural de Araçuaí (MG) e essa era a única coisa prevista: passaríamos por lá para ele reencontrar velhos parentes. Rodamos sempre por pequenas estradas costurando lugarejos, vilas e cidades com dimensões bastante reduzidas. Algumas delas com menos de 4 mil habitantes. Foram 92 cidades visitadas em mais de 2500 km. Essa viagem estava sendo tão agradável que combinamos de fazer outra em janeiro e depois a cada dois ou três meses.
Infelizmente não conseguimos chegar até Araçuaí pois a rodovia que nos ligaria de Diamantina até lá estava em obras, com mais de 50 km de terra e cascalhos, e nossas motos não suportariam esse tipo de piso. Devido a essa frustração de lá mesmo prometi ao Amora que no trajeto de janeiro 2009 eu incluiria a ida até sua cidade natal. O Diorlando por sua vez tem uma irmã que mora em João Pessoa (PB) e suspirou que um dia poderíamos programar uma outra viagem e ir até lá para vê-la.
O tempo foi passando, entramos em dezembro e estava na hora de pensar na viagem de janeiro. Gostei daquela possibilidade de ir até a Paraíba. Me lembrei que já havia prometido ao Michel, integrante do MC Rota 230, que iria mais cedo ou mais tarde visitar a sede do seu motoclube que fica em Campina Grande. O MC Rota 230 facção RJ é afilhado do Road Kings. Estavam então formados, na minha cabeça, os três pontos fundamentais que deveriam ser alcançados pelo roteiro: chegar a João Pessoa, passar em Campina Grande e ir a Araçuaí. Dos três o único aposentado sou eu então o tempo disponível não seria muito. Só poderíamos sair na segunda-feira dia 5 de janeiro. Seria mais lógico incluir no projeto o final de semana dos dias 3 e 4, ou até mesmo o dia 2 (sexta-feira enforcada pelo feriado da quinta-feira dia 1), mas justamente no domingo dia 4 de janeiro minha mãe estava completando 79 anos e eu almoçaria com ela. Como data de retorno ficou determinado o domingo dia 18. Diorlando deveria voltar a trabalhar já no dia 19 e o Amora tinha uma neta para chegar ao mundo com a data da cirurgia marcada para dia 20.
Contando com 14 dias fiz um rascunho do roteiro calculando a distribuição de distâncias a serem percorridas acomodando-as com os pernoites necessários. Marquei uma reunião em minha casa para apresentar a minha proposta inicial e bastante superficial do roteiro, onde anunciei aos dois (Diorlando e Amora) que daria para atender às aspirações de ambos. Aprovada a idéia de seguirmos até a Paraíba e passarmos na terra do Amora fiquei então de montar o roteiro definitivo com cálculo de distâncias a serem percorridas em cada dia. Esse cálculo era necessário pela escassez de tempo dedicado ao programa. No dia 19 de janeiro já teríamos de estar de volta. Então era necessário prever o tempo de deslocamento em cada trecho da estrada, cidades com atrações que mereciam uma visita mais detalhada, considerar o tempo gasto nessas visitas, escolher as cidades para pernoite etc. Ao contrário da viagem anterior ao interior mineiro que rotulamos de “Sem Destino”, essa teria de ser muito bem planejada se pretendíamos cumprir todas as etapas no tempo disponível.
Nova reunião na semana seguinte aconteceu na casa do Amora onde apresentei as planilhas de meu planejamento. A princípio percebi que ficaram assustados com a dimensão do trajeto, mas aos poucos foram se acostumando. Para irmos a João Pessoa seguiríamos pela BR 101, e para passar por Araçuaí teríamos de vir pela BR 116. Em cima dessas certezas montei um percurso de 7300 km. Logo foi descartado por eles por acharem muito extenso. E olha que eu havia deixado o dia 18 como dia de reserva para algum eventual imprevisto. Mas mesmo assim acho que assustei os caras…
Sempre que monto alguma viagem gosto de ir por um caminho e voltar por outro. Agindo assim não se tem aquela sensação de fim de festa. A impressão que fica é de que se está sempre indo.
Talvez por não ter participado da anterior para Minas, My Boy nunca demonstrou interesse nessa viagem mas a dois dias da data da saída ele aderiu ao grupo que passou a ser então de quatro pessoas. Com a participação dele não pude exercer minha condição de “sargentão” cobrando tempo e percursos destinados para cada dia. Não ficaria nada bem. Além de bom amigo ele é meu presidente… assim, todo o trabalho de planejamento anterior foi sendo diariamente remendado e algumas cidades que estavam no roteiro inicial foram sendo deixadas para uma próxima oportunidade.
Os caminhos a serem percorridos já me eram bastante familiares pois nessas quase 4 décadas sobre duas rodas já os havia usado inúmeras vezes. Nunca tinha entretanto feito tudo numa única empreitada, numa só tacada como fizemos agora.
Foram cerca de seis mil km rodados e mais de 2000 imagens registradas.
Dia 5 de janeiro de 2009. A pretensão de sair cedo ficou no espaço. Marcamos de nos encontrar num posto no Largo da Batalha (Niterói) por ser um ponto central para três de nós (eu, My Boy e Amora) e de lá sairíamos, às 7h30min, para encontrar o Diorlando noutro posto já no caminho, em Itaboraí. O dia amanheceu com um céu carregado, pesado, com chuviscos ocasionais. Fui o primeiro a chegar no posto. Algum tempo depois aparece My Boy. Comecei a ficar intrigado pois de nós três o que mora mais perto desse posto é o Amora, pela lógica deveria ser o primeiro a chegar. O tempo foi passando e nada dele aparecer. Depois de um tempo considerável recebo uma ligação dele perguntando onde nós estávamos que ainda não tínhamos aparecido. Ele estava em outro posto (em Icaraí) nos aguardando já a bastante tempo. Até Amora chegar e nós conseguirmos sair foram mais de trinta minutos. Seguimos para Itaboraí a fim de encontrar com Diorlando. Acertados os ponteiros, os quatro juntos, só saímos para estrada lá pelas nove horas da manhã.
Pela planilha o nosso primeiro pernoite deveria ser em Teixeira de Freitas – BA. O almoço era previsto para região metropolitana de Vitória – ES. Sempre que faço um planejamento considero a possibilidade de um imprevisto e monto uma outra opção mais curta. Nesse caso o nosso percurso para esse dia não seria de 880 km até Teixeira de Freitas mas de 730 km até São Mateus (150km menos).
Finalmente já estávamos na estrada. Os três com capas de chuva, menos eu. Acho que tenho qualquer trauma de infância pois tenho uma enorme aversão à capa. Só a coloco em casos muito extremos. Vale lembrar que nessa época além do estado de Santa Catarina, o Rio de Janeiro e a zona da mata mineira sofreram muito com as chuvas. Só no norte do Rio milhares de pessoas ficaram desabrigadas pelas inundações. O tempo estava chuvoso com o céu carregado. Quando passamos pela ponte sobre o rio Ururaí pudemos ver muitas casas com água ainda pela altura das janelas, uma tristeza. Paramos para o primeiro abastecimento na região de Campos. My Boy não dispensa um cafezinho e foi logo se direcionando para a lanchonete do posto após abastecer a moto. Amora “desapareceu” no banheiro e eu e Diorlando fomos encontrar My Boy que já estava sentado a uma mesa devorando várias fatias de queijo e já num segundo café. Depois algum tempo Amora aparece com um prato de almoço nas mãos dirigindo-se para a balança a fim de pesá-lo. Mas como assim, como assim? Ainda estamos em Campos! Antes de Campos! Nosso almoço era em Vitória!
Depois que tudo aquilo foi consumido voltamos para a estrada. O Rei My Boy ia puxando o comboio e eu na minha habitual função de cerra-fila. A velocidade e as paradas eram determinadas por ele. Eu ficava apenas alerta para a cada 200km ir avisá-lo que deveríamos parar para abastecer as motos de Amora e Diorlando que têm uma autonomia menor. Nessas paradas eu e My Boy também aproveitávamos para abastecer as nossas.
Passamos por fora de Vitória para não perdermos mais tempo. Seguimos direto para nossa meta que seria, a essa altura dos acontecimentos o plano B: São Mateus. Eu particularmente ainda nutria uma pequena esperança de conseguir chegar a Teixeira de Freitas (quanta ingenuidade!). Novas paradas, novos cafés, novos banheiros… não houve como evitar: anoiteceu e só estávamos em Linhares. Eu não me conformava.
Eu já havia feito tantas vezes esse trajeto e não era possível agora levarmos tanto tempo para rodar tão pouco. Não sou de correr pelas estradas. Raramente estou acima de 120km/h, e se isso acontece é sempre numa ultrapassagem. Minha velocidade padrão é 100/110km/h. Mas dessa vez foi demais, levar um dia inteiro para dormir em Linhares foi difícil de assimilar. De imediato avisei aos meus amigos e companheiros de viagem que provavelmente já estávamos gastando o dia de reserva na primeira “perna” do percurso. Lembrei que certa vez voltando do nordeste dormi em Porto Seguro e de lá vim direto para o Rio. Lembro-me que acordei às quatro da manhã e no início da noite estava passando por Itaboraí. Nessa ocasião fiz uma constante de 120km/h.
Chegamos anoitecendo. Linhares estava com chuviscos finos e esporádicos. Minha pressa em sair logo da região sudeste era exatamente para deixar esse tempo carregado para trás o mais cedo possível. Exatamente por isso quando fiz o planejamento reservei para os dois primeiros dias os dois maiores percursos. Nesses trajetos iniciais não havia nada de turístico para se ver e além do que estaríamos mais descansados por serem os primeiros dias de viagem. Seria exatamente o momento de se ganhar tempo. Mas toda essa “racionalidade” ficou pelo caminho…
Assim que chegamos em Linhares paramos num posto de gasolina e ali mesmo já fizemos novos amigos. Em pouco tempo My Boy aparece com um pratão de carne de sol fatiada. Ficamos nessa “social” até a hora do posto fechar. O dono da lanchonete foi super prestativo. Enquanto nós nos preparávamos para sair e encontrar onde dormir, ele pegou sua moto procurando hotel e depois nos guiou até o que escolheu para nós.
No hotel dividimos o grupo por dois em cada quarto. Diorlando disse que estava traumatizado com o nível sonoro emitido por Amora durante a noite e anunciou que a não pretendia passar por novo sofrimento (haviam dormido no mesmo quarto num evento em Teresópolis). Assim ficamos eu e Amora num quarto e My Boy e Diorlando em outro.
Apesar da “serraria” na cama ao lado a noite foi boa, confortável e revigorante. Realmente o cara é poderoso, deixa o rugido de um leão no chinelo.
Vale aqui fazer um parêntese sobre aquela noite no evento de Teresópolis: quando fomos dormir, como os quartos eram duplos, o grupo foi se dividindo em pares. Eu fiquei com meu filho, fiel companheiro de tantos mil km; My Boy com Fátima; Piggy com Duck e Diorlando ficou com Amora. O mais curioso é que no dia seguinte Diorlando amanheceu chamando Amora de Peludão e este chamando Diorlando de Bambi. Não sei o que ocorreu, mas esses apelidos perduram até hoje…
Em Linhares acordamos cedo, às cinco da manhã, para ver se daria para repor o tempo perdido na véspera. Diorlando que dormiu no freezer amanheceu resfriado (qualquer quarto que My Boy durma se tiver ar condicionado em poucos minutos chega a zero grau). Devido ao horário o café do hotel ainda não estava servido então fomos a uma padaria resolver esse problema. Depois de “abastecidos” saímos em direção à Bahia. O tempo estava ótimo, nublado mas firme o que não permitia que o calor nos incomodasse. A estrada estava perfeita, sem buracos, bem sinalizada, uma beleza. Mas mesmo assim logo percebi que a meta de pernoitar na Ilha de Itaparica ou em Salvador não seria fácil de cumprir. A cada parada a turma se descontraía e tudo era motivo para muitas brincadeiras e gozações. Até mesmo Peludão (Amora) que estava sentindo algumas dores entrava no clima da bagunça. Foram muitas paradas. Paradas para café, paradas para banheiros, paradas para abastecimento, paradas para café, paradas para banheiro… No nosso planejamento o local de almoço seria em Itabuna, mas só chegamos por lá a tempo de pernoitar. Resolvemos dormir numa rede de posto/hotel que “acompanha” a BR 101. Os quartos eram vizinhos e havia uma porta interna que ligava um ao outro. Mesmo sem a chave, com um pouco de habilidade, conseguimos abrir essa porta transformando os dois quartos eu um só ambiente o que favoreceu a descontração e a bagunça do fim do dia. Na hora de dormir Bambi (Diorlando), que ainda sofria com o efeito do freezer de My Boy, passou para meu quarto e Peludão ficou com My Boy. No início da noite fechamos a porta de ligação para tentar escapar dos trovões noturnos de Peludão. Depois dessa primeira noite com ele, My Boy disse que dormiu ao lado de uma serra cega cortando uma tora de madeira.
Choveu a noite quase toda. Quando acordamos o tempo estava instável porém sem chuva, mas logo começou uma garoa que se transformou numa forte chuva. Tínhamos a idéia de dar uma esticada até Ilhéus. Eu e My Boy estivemos lá no carnaval de 2008, mas Bambi e Peludão não conheciam Ilhéus. Seria um desvio de 70 km, ida e volta, saindo da BR 101. Mas como chovia entendemos que seria improdutiva uma visita turística naquela cidade. Optamos por deixar a visita para outra oportunidade e aguardar o fim da chuva jogando conversa fora. Por volta das 11h30min a chuva parou e saímos com a intenção de dormir na Ilha de Itaparica. My Boy pediu que eu guiasse o grupo por conhecer bem a Bahia. Nesse primeiro trecho pegamos duas ou três fortes pancadas de chuva de poucos segundos cada. Quando se aproximava o momento do abastecimento das Shadows entrei num posto de gasolina e logo ouvi um longo barulho característico de acidente. Enquanto avançava olhei para a estrada e não vi nada de anormal. Olhei então para o retrovisor e não acreditei: vi My Boy estatelado no chão embaixo da moto. Quando ele reduziu escorregou e caiu no asfalto engordurado da entrada do posto e se arrastou por mais de vinte metros, ele e a moto. Graças a Deus e às proteções usadas por ele como cotoveleiras, colete, calça de couro, luvas e botas só sofreu pequenos arranhões e uma possível fratura ou luxação no dedo mindinho. A moto sofreu alguns pequenos danos, mas depois da intervenção do Didi Bambi (Diorlando) as coisas foram acertadas para que pudéssemos seguir em frente. Mas o ritmo havia sido quebrado então resolvemos almoçar por lá mesmo. Depois da certeza de que nada de sério havia ocorrido com My Boy, começamos uma nova sessão de brincadeiras e gozações que contagiaram a todos e terminamos por fazer mais amigos.
Depois do almoço saímos em direção a Itaparica onde pretendíamos fazer nosso pernoite. O caminho para o nordeste brasileiro, se for feito pelo litoral (BR 101), tem como opção mais econômica para se chegar a Salvador a passagem pela Ilha de Itaparica. O trajeto natural é pelas redondezas de Feira de Santana, usando-se a BR 324 (conhecida como Bahia/Feira) para chegar a Salvador. Mas se em Santo Antônio de Jesus deixarmos a BR 101 e pegarmos a BA 028 em direção a Nazaré e depois a BA 001 para Itaparica economizamos mais de 100 km além de passarmos pela Ilha, um paraíso da natureza.
Devido ao tombo de My Boy a nossa média horária ficou ainda mais prejudicada. Toda vez que eu acelerava mais um pouquinho, tentando estabelecer algo em torno de 100 km/h como padrão, o comboio ia ficando para trás o que me obrigava a diminuir novamente. E foi assim que por volta das oito e meia da noite chegamos em Mar Grande, na ilha de Itaparica. Como sempre acontecia a cada parada nossa, logo fomos cercados por várias pessoas. Umas para admirar as motos e outras para nos ajudar e oferecer pousadas. Depois de muita divergência entre as opções e seus respectivos valores de diária, eu avisei que um primo meu mora lá e é dono de uma pousada. Me prontifiquei de ir falar com ele mas uma parte do grupo queria garantir logo o lugar. Então eu disse que o que ficasse resolvido estaria bom pra mim também e saí para fazer uma visita a meu primo. Minha moto é muito pesada e quando passei por um piso mais arenoso atolei com meu “caminhão”. Descobri que não existe a menor chance de se desatolar uma Electra Glide sozinho. Esperei que percebessem que eu estava demorando demais e depois de um bom tempo vi o Diorlando à minha procura. Depois de desatolarmos voltamos e a pousada já estava alugada por My Boy e Peludão. Banho tomado fomos para a praça onde comemos em um restaurante regional. Nessa descontração mais brincadeiras e gozações entre nós. Aí um rapaz se aproximou achando que éramos um grupo de boiolas e veio com uma conversa estranha pedindo a My Boy uma camisinha emprestada. Notamos logo a intenção do cara e nos aproveitamos da situação para tirar um sarro da cara dele, que acabou entendendo e se afastou do grupo. Nem é preciso dizer que isso foi motivo de mais gozações entre nós. Estávamos na Bahia e já passava do meio dia…
Fomos dormir por volta das onze e meia e levantamos no outro dia às oito horas. Essa pousada que My Boy na véspera queria tanto garantir a vaga terminou por não nos servir o café da manhã. Saímos então à procura de uma padaria. Peludão como sempre fazendo das suas artes: tomou café de canudinho enquanto comia um queijo no palito. My Boy reclamando porque não encontrava café sem açúcar. Eu e Diorlando nos divertimos muito apreciando a atuação dos dois. Depois do café fomos dar uma volta a pé pela praia e na volta viemos pelas ruas internas. Visitei locais onde parentes meus tinham casas. Fiquei muito impressionado com o tamanho de uma amendoeira que ficava no jardim da casa onde nasceu meu avô paterno. Quando eu era garoto brincava de subir nessa árvore e agora vendo o quanto ela estava enorme tive a certeza de que muito tempo se passou desde aquela época.

Voltamos para a pousada, pegamos nossas motos e seguimos viagem. Passamos por Itaparica que é a parte mais antiga da ilha. Conquistamos novas amizades por lá, visitamos a parte histórica e então paramos para um refrigerante num barzinho de frente para o mar. Dali rumamos para o terminal de Bom Despacho para pegar o Ferry-Boat para Salvador. Finalmente estávamos no nordeste. Estava começando nossa aventura por aquelas terras.
Chegando a Salvador fomos passeando pela cidade. Como já havia morado lá pude levar o grupo com facilidade pelas ruas que me são bastante familiares. Tiramos algumas fotos na cidade baixa com o Elevador Lacerda ao fundo, depois rodamos um pouco e fomos então para o Farol da Barra, cartão postal de Salvador. Logo que chegamos foi um alvoroço só. Todos queriam fazer perguntas sobre nossa viagem e sobre nossas motos. Encontramos outros motociclistas de motoclubes locais que logo se aproximaram e foi uma boa troca de experiências e informações. Mais amigos conquistados nessa nossa viagem. Eles fizeram questão de nos convidar para o 0800 de um deles. O administrador do museu que fica no forte sob o farol apareceu e nos franqueou a entrada para o gramado do largo em frente. Disse para subirmos com nossas motos para que fotos fossem tiradas. As pessoas ficavam em nossa volta, muita gente, muita gente mesmo. Foi uma situação nunca vivida por nenhum de nós. As fotos eram tiradas e as pessoas se amontoando para nos ver. Éramos o centro total de todas as atenções. Coisa de louco. Ficamos nessa até as 16h.
Saindo do Farol da Barra fomos passeando pela orla de Salvador apreciando as praias desde a da Barra até a praia de Itapuã. As mais famosas e conhecidas que estão entre essas duas são as praias de Ondina, do Rio Vermelho, de Amaralina e da Pituba, mas existe uma que vale a pena fazer um breve comentário que é a praia de Placaford. A Bahia, salvo engano, é o estado brasileiro com maior extensão de litoral, de praias. O norte do município de Salvador era muito pouco desenvolvido na década de 60. A estrada litorânea era usada apenas como acesso ao aeroporto da cidade. Naquela época não havia quase residências nem comércio. Mas as praias estavam lá, muito bonitas. A extensão desde a cidade até Itapuã é grande, composta de muitas praias interligadas entre si formando uma única faixa de areia. Um trecho desse enorme litoral, no bairro de Piatã, é particularmente agradável por situar-se num local abrigado por recifes o que proporciona águas calmas e mornas com piscinas naturais na maré baixa. Muitos coqueiros e dunas altas completam o cenário. Mas naquela época, devido ao precário desenvolvimento local, não havia muita coisa para se usar como ponto de referência para localização dessa parte da praia a não ser um grande painel publicitário da Ford. As pessoas então marcavam de ir à praia em frente a placa da Ford, na placa Ford. Daí veio o nome da praia de Placaford.
Chegando em Itapuã viramos à esquerda e pegamos a Estrada do Coco. Nossa meta agora era chegar em Arembepe onde pretendíamos pernoitar. Arembepe ficou conhecida por ter sido ali que surgiu a primeira comunidade hippie do Brasil. Lá o movimento da Sociedade Alternativa sobrevive até hoje. A vila hippie ainda está lá onde não há circulação de carros nem o uso de eletrodomésticos. São casas rústicas feitas de madeira e palha. No auge do movimento hippie, na década de 70, famosos como Janis Joplin, Roman Polanski, Mick Jagger, Caetano Veloso, Gilberto Gil e Renata Sorrah passaram longas temporadas por lá.
Logo que chegamos a Arembepe fui para a praça principal a fim de sondar com os moradores locais os preços e condições das pousadas. Obviamente a praça estava repleta de hippies cabeludos alguns vendendo artesanato outros apenas olhando a vida passar. My Boy quando viu aquilo pareceu ter tido a visão do inferno. Ficou paralisado sobre a moto já devidamente parada no recuo da praça. Titubeando balbuciou algo que me pareceu uma pergunta: – São favelados? Quase tive uma crise de tanto rir. Eu já estava esperando encontrar aquelas figuras, já conhecia o lugar, mas apesar de ter prevenido antes acho que para ele o choque com aquela realidade foi maior. Bambi e Peludão em segundos se misturaram e já estavam tirando fotos abraçados aos hippies. Peludão que tem escassez de telhas tirou até uma foto com a cabeleira de um hippie sobre sua própria cabeça. Foi uma farra na praça. Saí a pé para ver duas pousadas que nos indicaram mas não gostei. My Boy parecia uma mosca de padaria presa no balcão de vidro, pra lá e pra cá procurava incessantemente um lugar para tomar um café. Peludão ficou que nem pinto no lixo de papo com os hippies enquanto Diorlando Bambi foi a uma loja pedir novas indicações de pousadas. Quando nos reuníamos novamente na praça uma morena que passava pela praça aproximou-se e perguntou se estávamos à procura de pousada. Ela tinha uma indicação e nos deu o cartão. Ligamos para lá e o dono, um alemão careca apreciador de belas morenas, veio de carro nos buscar e ensinar o caminho. Chegando lá ficamos deslumbrados com o lugar. Uma pousada linda com uma bela piscina, quadra de esportes, uma beleza. Ficamos num chalé de dois ambientes com ar refrigerado central. Nem é preciso dizer que logo a algazarra entre nós começou. My Boy brigando com o controle remoto do ar refrigerado tentando chegar a zero grau e nós três apreciando com muito humor essa peleja particular entre o homem e a máquina. Nisso o Max (dono da pousada) aparece perguntando se nós iríamos querer comer alguma coisa. Esse cara deve ser paranormal e leu nossos pensamentos. Como o clima era de total descontração logo o alemão “entrrrou no roda do bagunça” e foi logo sendo chamado de Hans Donner, apelido que perdurou até nossa partida no dia seguinte.
Só conseguimos ir dormir às 23h. Era muita gozação um com o outro. Bambi teve de dormir com a cabeça envolvida por um lençol para tentar não ouvir as risadas e mais tarde a serraria de Peludão. Parecia um filhote de múmia com baiana do acarajé. A noite foi boa e revigorante. No dia seguinte tomamos um farto café da manhã à sombra de um gigantesco caramanchão. A buzina da minha moto que já vinha “morrendo” um pouco a cada dia emudeceu totalmente na véspera então depois do café meu amigo Diorlando fez mais uma das suas mágicas e restabeleceu o bom funcionamento dela. Arrumadas as bagagens pagamentos feitos e então, com tristeza, nos despedimos de Max. Certamente mais um amigo que fizemos nessa nossa viagem. Gente muito boa esse alemão. Passando novamente por aquelas terras certamente vou repetir a dose.
Novamente na estrada agora rumo a Aracaju. Passamos por lugares lindos como Praia do Forte, Costa do Sauípe, Porto Sauípe entre outros. Na entrada da Costa do Sauípe há um trevo onde paramos para fazer fotos e filmagens. My boy foi muito zoado pois ficava o tempo todo segurando as calças para elas não caírem. O suspensório que as sustentava havia se rompido naquele tombo que levou em Gandu. Não vai aqui quase nenhuma conotação maldosa, mas acho que devido à proximidade estabelecida nas noites em que dividiram os quartos, Peludão se encheu de compaixão e comprou agulha e linha em um armarinho de Porto Sauípe e costurou o suspensório de seu fiel companheiro de quarto enquanto almoçávamos…
Dali continuamos na Estrada do Coco que depois vira Linha Verde e finalmente entramos no estado de Sergipe.
Num determinado trecho dessa estrada os três estavam com combustível na reserva e minha moto ainda tinha meio tanque. Com o habitual clima de gozação iniciou-se uma espécie de barganha por um litro de gasolina do meu “caminhão pipa”. Eu entretanto sabia que estávamos próximos de um posto. Eles bastante apreensivos pediram para parar a fim de conferir no mapa se o caminho estava certo. Não adiantou eu insistir de que não havia erro nenhum e que estávamos perto de um posto. Pararam e me intimaram a mostrar o mapa. My Boy aproveitou a parada no acostamento para sua “regada” costumeira numa árvore. Ele dizia que assim estava contribuindo para irrigar a terra e diminuir a seca no nordeste. Depois de convencidos de que nossa rota estava certa voltamos para estrada e com pouco mais de 10 km o primeiro posto apareceu. Nunca vi olhos tão arregalados para um simples postinho de beira de estrada. Aproveitamos para beber alguma coisa pois o calor era imenso e precisávamos nos manter hidratados. Desde que saímos de Salvador havíamos abandonado a BR 101 e seguimos pela BA 099 que meio que acompanha a 101 só que vai pelo litoral. O visual é fabuloso e as cidades muito interessantes. Em Indiaroba está a divisa com o estado de Sergipe e 28 km mais adiante, em Estância, essa estrada acaba e encontra a BR 101. Dali até Aracaju foi um pulo, cerca de 65km. Chegamos na nossa meta daquele dia por volta das 19 horas. Apesar de no Nordeste não existir horário de verão ainda estava claro por lá. My Boy queria ir até a praia de Atalaia e a vontade real foi atendida. Paramos num restaurante de frente para o mar onde ficamos curtindo o lugar. Bebemos e comemos por lá mesmo até que apareceu um garoto que ficou nos fazendo perguntas e mais perguntas. Todo o tempo que passamos naquele restaurante o garoto ficou ao nosso lado fazendo perguntas. Peludão que já vinha sucessivamente reclamando de dor na bunda virou para o garoto e perguntou:
– Quanto você quer pela sua bunda? Você quer me vender sua bunda? O garoto fechou a cara, ficou todo desconcertado e respondeu qualquer coisa negando. Aí Peludão percebeu que havia falado besteira e tentou consertar:
– Não você não entendeu, eu te dou a minha e você me dá a sua. O garoto novamente disse qualquer coisa já demonstrando irritação. Quando eu vi que a coisa estava virando um grande mal entendido expliquei que o que ele queria na verdade era trocar a bunda dele por uma que não estivesse doendo pela longa viagem e consegui contornar a coisa sem que fôssemos todos parar na delegacia…
Depois de aproveitarmos aquela localidade de Aracaju saímos para ver onde seria possível dormir. Rodamos muito sem achar vagas pois era alta temporada. Já quase meia noite quando achamos um hotelzinho na saída da cidade. Só conseguimos dormir depois de uma hora da madrugada. No dia seguinte após o café saímos em direção a Alagoas. Diorlando Bambi estava cada vez mais ansioso por estar se aproximando o momento de rever sua irmã. Nossa meta era dormir em Maceió e fomos curtindo cada trecho da estrada desde Aracaju. Cinco quilômetros depois de São Miguel dos Campos, já no estado de Alagoas, saímos da BR 101 e pegamos a rodovia estadual AL 220 em direção a Barra de São Miguel e a Praia do Francês. Quem for por aqueles lados não deve deixar de visitar esses lugares. Coisa de cinema. O litoral é cercado por um cinturão de pedras, um tipo de quebra mar natural de recifes o que faz com que se forme uma gigantesca piscina por onde circulam barcos e jet skis além dos banhistas naturalmente. A distância entre esse cinturão e a beira da areia é de trezentos metros ou mais e a extensão é de muitos quilômetros acompanhando toda a praia dando toda condição de segurança para todos dividirem aquele espaço com civilidade. O lugar é tão mágico e aprazível que sem que percebêssemos ficamos por ali até o anoitecer. Maceió já estava bem perto o que nos deixava mais tranqüilos. Entretanto por mais que quiséssemos adiar o momento de sair dali havia chegado. Ainda tínhamos um trecho de estrada até Maceió, cidade onde pretendíamos pernoitar.
Chegamos por lá já eram mais de 20h30min. Paramos num quiosque na praia de Pajuçara onde a atração principal era tapioca. Tinha tapioca doce, salgada, mais de 50 sabores, de tudo que é tipo. Ficamos na tapioca até tarde quando então partimos para nossa habitual romaria em busca de pouso. Procuramos onde dormir ali por perto mesmo mas não encontramos nenhuma pousada ou hotel com vaga disponível. Começamos então a aumentar a área de busca. Procuramos em tudo que foi canto e não encontrávamos onde ficar. Saímos então eu e My Boy para um lado e Diorlando e Amora para outro, mais para os lados da saída da cidade. Íamos nos falando pelo celular, quem achasse primeiro avisaria aos outros. Eu e My Boy não conseguimos nada, já eles dois acharam um motel distante mas que não tinha boa distribuição e acomodações piores ainda, mas por garantia eles deixaram meio que reservado dizendo ao funcionário que iriam nos chamar. Em matéria de achar onde dormir essa foi a nossa pior noite em toda a viagem. Por ser alta temporada, Maceió, janeiro, verão, estava tudo lotado. Até os motéis estavam cheios. E ainda coincidiu de chegarmos por lá num sábado. Voltamos todos ao ponto de encontro marcado, na praia de Pajuçara, a fim nos reunirmos e decidirmos o que fazer. Estávamos chegando a conclusão mais que óbvia de que só nos havia restado a opção do tal motel ruim. Nisso aparece na nossa frente a Rosa, a Mulher Gato, uma velha freqüentadora de eventos. Ela nos disse que seu motorhome estava num estacionamento próximo e nos convidou para irmos até lá. Depois de um bom papo trocando as novidades motociclísticas nos ofereceu suas instalações pois iria dormir no apartamento de uma amiga local. Entretanto como a devolução das chaves ficou complicada pela hora prevista de nossa saída no dia seguinte, optamos por não aceitar essa impagável cortesia. Continuamos então nossa peregrinação agora já na direção norte, ainda em Maceió mas já no sentido Pernambuco. Passamos por Cruz das Almas onde há maior número de motéis mas não tivemos sucesso. Rumamos então para aquele motel distante que Diorlando e Amora haviam deixado meio que reservado. Quando chegamos por lá o alagoano do tal motel nos diz que já havia alugado as “nossas” vagas. Pronto: estávamos na rua. Só nos restavam as nossas barracas ou o banco da praça. Esse motel ficava no fim de uma rua sem saída e de terra. Manobramos as motos e quando voltávamos de lá fomos parados por um homem que bebia cerveja com outros na beira da calçada de um boteco. Esse cara era o gerente de uma bela pousada na beira do mar e ficou consternado de nos ver voltando do motel. Ele disse que percebeu que estávamos sem ter onde dormir. Ofereceu então, ao preço de trinta reais, a sala principal da pousada incluído o café da manhã. Ele colocaria colchonetes no chão para nós. Nem foi preciso falar a segunda vez. Fomos direto para lá. O lugar era lindo, de frente para uma praia repleta de coqueiros, coisa de propaganda turística, um paraíso.
Depois de “instalados” ficamos no deck da piscina num caramanchão com mesas e redes jogando conversa fora. My Boy descobriu um banheiro dentro desse caramanchão e foi fazer uso dele. Peludão logo se prostrou numa das redes. Diorlando percebeu que My Boy estava sentado no trono do banheiro e pela porta entreaberta ficou tentando fotografar o rei naquela tarefa, mas não obteve sucesso na missão. Essa foi uma noite de muita descontração e gozações mútuas. Acho que pelo alívio de finalmente termos achado um lugar para dormir. Mas depois de muito papo apesar do momento muito agradável fui me deitar. My Boy veio em seguida e Peludão e Bambi ficaram nas redes pois fazia muito calor. Lá dentro havia um banheiro que dava para essa sala e um outro com chuveiro numa área reservada aos empregados. Peludão quis tomar seu banho e foi usar esse banheiro. Nisso, sem que percebêssemos, o vigia (ignorando que o chuveiro estava sendo usado) trancou a porta de acesso ao salão. Depois de algum tempo começamos a ouvir gritos e batidas na porta. Era Amora que havia ficado preso lá dentro. Assim que conseguimos que o vigia lhe devolvesse a liberdade, ele voltou para sua rede onde pretendia passar a noite. Nem é preciso dizer que isso foi motivo de grandes e longas gozações. Por volta das quatro da manhã caiu uma forte chuva, daquelas brabas mesmo (apesar de rápida). Os dois que dormiam lá fora nas redes vieram correndo, expulsos pela água. O gerente que também estava nas redes lá fora terminou dormindo na sala como nós. O hotel estava tão cheio que até o dormitório dele fora alugado. Ele deitou num dos sofás e em pouco tempo começou a sinfonia, um dueto, ou melhor, um duelo entre ele e peludão. Coisa de doido, até os vidros das janelas vibravam com a potência do som…
Quando amanheceu pudemos realmente ver a beleza do lugar o que nos deu muita vontade de ficar por lá. Mas mesmo assim sabíamos que tínhamos de seguir viagem. Tomamos um farto café da manhã e logo que vagou um quarto o gerente nos transferiu para lá para que pudéssemos tomar banho, trocar de roupa, escovar os dentes etc.

Despedidas feitas, muitos agradecimentos ao gerente Araújo com a nossa promessa de retorno por lá na próxima viagem e às nove horas estávamos novamente na estrada. Seguimos pela litorânea AL 101 que é menos movimentada e muito mais agradável e bonita. Entretanto quando se chega ao estado de Pernambuco essa estrada vira a PE 060 e vai se afastando do litoral e se embrenhando sertão adentro. Nossa meta era ir direto para João Pessoa, capital do estado da Paraíba. Já saímos do Rio de Janeiro com a intenção de não pernoitarmos no estado de Pernambuco.
Fazia muito calor e várias vezes ficávamos ansiosos pela “chegada” de um posto para beber alguma coisa. Estava realmente muito abafado e quente aquele dia. Numa dessas paradas Peludão não se sentiu bem e entendemos que, visando ao conforto e à segurança, seria melhor prolongar um pouco o tempo daquela parada à sombra de algumas árvores que existiam ali ao lado do posto. Em pouco tempo a cena se traduzia num pequeno dormitório: Peludão achou alguns papelões e não teve dúvida, se espalhou sobre eles dando início a sua habitual “sinfonia”; eu peguei na moto o meu colchão inflável e deitei, mesmo com ele vazio; Diorlando se ajeitou em cima da moto mesmo.
Em poucos minutos nós três estávamos curtindo um descanso numa deliciosa sombrinha. Para nós esse foi um dos pontos altos da viagem, que recordamos com alegria e satisfação. Enquanto isso, lá no sol, My Boy fazia a corte para a moça que vendia café no posto, relatando as suas proezas motociclísticas, a viagem à Rota 66 etc. De vez em quando ele de lá gritava que nós estávamos parecendo um cemitério de velhos, ali deitados no chão, que ele sim era o tal que não precisava descansar… De cá nós gritávamos para ele ficar quieto, nos deixar em paz e vir descansar também mas ele estava mais interessado em provar sua resistência do que vir se unir ao grupo que a essa altura já estava no terceiro sono. Peludão parecia que estava em casa, com aquela habitual produção de trovões e rugidos que deixariam qualquer leão africano humilhado.
Não sei ao certo quanto tempo dormimos, mas foi o tempo necessário para acordarmos novos depois de um sono restaurador. A noite anterior tinha sido confusa, tensa com aquela busca por onde pernoitar, e mal acomodada em colchonetes no chão da sala da pousada. Esse descanso no período mais quente do dia foi uma das coisas mais inteligentes que fizemos, seria muito arriscada a nossa jornada para esse dia se a fizéssemos cansados. Quando começamos a nos levantar, My Boy que ainda permanecia lá no sol ainda jogando conversa fora com a moça do café, percebeu que acordamos e começou a gritar de lá que o cemitério de velhos abriu a porta e as assombrações estavam fugindo. Tudo muito engraçado, mas estabeleceu-se uma diferença: ao contrário de nós três somente ele não havia descansado.
Voltamos para a estrada e My Boy seguia puxando o grupo. Apesar do intenso calor daquele dia rodávamos tranqüilos observando as paisagens do sertão brasileiro. Deixamos Alagoas e entramos em Pernambuco. Pouca coisa mudou, sinceramente nem dava para perceber que estávamos em outro estado, a pobreza era a mesma. Depois de passarmos pelo município de Cabo de Santo Agostinho finalmente chegamos pela BR 101 nos arredores de Recife. Aquele clima provinciano e tranqüilo aos poucos foi desaparecendo. O fluxo de veículos foi ficando cada vez mais forte. As placas de sinalização indicando as saídas e entradas de acesso para as vias secundárias iam se multiplicando nos trazendo à realidade urbana. Para completar o quadro começou a chover. Em um determinado ponto, numa bifurcação de pistas, My Boy ficou indeciso, na dúvida para que lado seguir e para não entrar na pista errada optou por dar uma freada forte abrigando sua moto bem no “bico” da divisória, naquele “triângulo” pintado no chão. Peludão que vinha logo atrás dele assustou-se pois não esperava por aquela repentina freada e quase caiu, chegando a travar a roda dianteira de sua moto no piso sujo com a areia que normalmente fica acumulada naqueles pontos da pista. Eu e Diorlando que vínhamos ainda depois dele ficamos “de fora”, parados literalmente no meio da pista, expostos ao trânsito intenso da rodovia BR 101. Foi um momento de muito perigo e tensão.
Depois de alguma argumentação saímos daquela situação voltando ao nosso destino do dia que seria João Pessoa. Passamos direto por Recife e já na saída da cidade My Boy parou para abastecimento e, claro, um cafezinho. Essa parada levou muito tempo. Muito mais tempo do que era necessária. Comecei a suspeitar de que My Boy estava sentindo os efeitos da noite anterior que foi muito mal dormida. Ele só desgrudou da garrafa térmica de café depois de consumir a última gota. Nós três estávamos ali a postos, apenas esperando por ele para seguirmos a nossa viagem. Depois de muito tempo por conta do café, agora foi a procura de um banheiro o motivo de nova protelação do momento da saída. Quando finalmente começamos a nossa última movimentação do dia já era também o último movimento do sol em direção ao ponto poente.
Em menos de 30 minutos estávamos naquele ponto do dia que dizemos ser o lusco-fusco. Logo a seguir chegou a escuridão da noite.
My Boy nessa hora já demonstrava sentir os efeitos da noite mal dormida e do desperdício daqueles tão proveitosos momentos de descanso que nós três desfrutamos enquanto ele contava vantagem para a moça do café.
A estrada ficou infernal, em pista única, em mão dupla e sem acostamento devido às obras de duplicação. O fluxo de trânsito era incrível, com um veículo atrás do outro numa atividade incessante. Parecia uma eterna e infindável composição ferroviária com todos os seus faróis nos incomodando sobremaneira e de forma contínua. Na nossa pista estávamos também “encaixados” numa outra “composição” e não podíamos nem acelerar nem reduzir devido ao risco de sermos derrubados pelo tráfego. A coisa foi feia e muito tensa. Era nítido que My Boy estava exausto o que nos deixava também muito tensos e preocupados pois além daquela situação que por si só já é muito complicada ainda tínhamos o agravante de saber que ele estava além do limite razoável de segurança para guiar uma motocicleta devido ao seu estado. Entretanto ali, naquela situação, não havia nada que se pudesse fazer. Tínhamos de seguir junto com o excessivo trânsito daquela estrada. Não havia nem onde pararmos, não havia acostamento. À nossa esquerda estava o fluxo contrário e à nossa direita, quase raspando em nossas pernas, centenas de placas com setas e avisos de pista em obras além de um contínuo monte de entulho que fazia as vezes de muro para delimitar o fim da pista.
Para piorar ainda era início de final de semana, sexta-feira à noite, o que fez com que cada vez mais a estrada se superlotasse de veículos aumentando o tempo para que finalmente chegássemos a João Pessoa.
Esse foi um dos momentos mais tensos e marcantes dessa parte da viagem.
Finalmente quando chegamos em João Pessoa, My Boy logo ligou para o Álvaro Lucena, presidente do MC Rota 230 e avisou que estávamos num determinado posto na entrada da cidade, um posto que tinha uma grande churrascaria, para que ele fosse nos ajudar a achar um hotel. Nós ainda não o conhecíamos pessoalmente, apenas por telefone, e ficamos aguardando por uma abordagem pois seria mais fácil ele nos reconhecer: quatro motociclistas juntos com as motos cheias de bagagem etc.
Passados alguns minutos vem uma figura em nossa direção e começa a falar com My Boy. Ele achando ser o Álvaro falava sobre nossa viagem, comentou a dificuldade que havíamos passado na estrada entre Recife e João Pessoa etc. Ficaram os dois em altos papos até que ele aponta para nós e vem trazendo o cara em nossa direção. Quando os dois param na frente de nós três My Boy fala para nós: – Este aqui é o Álvaro, presidente do Rota 230, e vai nos auxiliar aqui em João Pessoa… quando o cara interrompe e diz que ele não se chamava Álvaro não, e que não era presidente de nada, que ele era o motorista daquele rabecão que estava abastecendo ali no posto. Ele apenas veio falar com My Boy por admirar nossa coragem além de gostar muito de motos…
Depois de nos despedirmos do motorista do rabecão e após as inevitáveis gozações e risadas My Boy volta a ligar para o Álvaro que por sua vez diz já estar no posto da entrada da cidade, que tem uma grande churrascaria, mas que não estava conseguindo nos achar. Depois de muito procurarmos por ele, e ele por nós, foi que a coisa se esclareceu: nós estávamos em João Pessoa e o Álvaro em Campina Grande.
O jeito foi nos virarmos por nossa conta mesmo e deixarmos esse encontro para a noite seguinte.
Diorlando ligou para a irmã que mora naquela cidade e pediu que o Bandeira (marido dela) fosse nos auxiliar na busca por um hotel. Já era noite alta, quase madrugada, e estávamos querendo uma noite de sono decente a fim de recuperarmos o descanso não conseguido na noite anterior. Rodamos seguindo o carro do Bandeira e quando vimos estávamos parados em frente a um pequeno hotel na zona de João Pessoa. Não era a zona boêmia ou a zona hoteleira, era a zona zona mesmo. Cercado de bonecas e “primas”. Questionamos com o Bandeira por que ele nos levou a um hotel justamente ali, se era para fazermos serviço completo. Ele argumentou que nós havíamos pedido um hotel baratinho…
Mais alguns minutos cruzando a cidade e fazíamos o check in no Hotel JR, um bom hotel de João Pessoa. Diorlando foi dormir na casa da irmã.
No dia seguinte eu, Peludão e My Boy fomos de ônibus à praia de Cabo Branco onde encontraríamos Diorlando e a família. Foram bons momentos à sombra de um quiosque onde por fim almoçamos.
Mas, como era mesmo o nosso propósito, tínhamos de voltar para a estrada. Nossa meta para o dia estava a pouco mais de 100km de distância: Campina Grande.
Bandeira nos deixou no hotel e seguiu com Diorlando para que todos nós nos aprontássemos. Saímos de João Pessoa depois das 18h. Era verão, janeiro de 2009, e o sol ainda estava brilhando.
A BR 230, que liga João Pessoa a Campina Grande é uma beleza. Muito bem conservada, com asfalto em ótimas condições. O que pouca gente sabe é que, apesar dessas excelentes condições desse trecho da estrada, a BR 230 corta o norte do Brasil do leste ao oeste, passando inclusive pelo estado do Amazonas onde lá recebe o nome de Transamazônica. É isso, a Rodovia Transamazônica é uma parte da BR 230.
Já era noite quando chegamos em Campina Grande. Paramos na entrada da cidade numa pequena lanchonete e aguardamos pela chegada do Álvaro, que agora iria finalmente nos encontrar.
O Álvaro Lucena é o presidente do MC Rota 230 e como todo bom motociclista muito atencioso e prestativo com os companheiros. Rodamos pela cidade na escolha de hotéis e finalmente aprovamos o Titão Plaza Hotel. Como já estava tarde deixamos para estarmos juntos com mais calma no dia seguinte.
Após o café da manhã fomos para a loja do Álvaro onde My Boy trocou troféus dos moto clubes com nosso anfitrião e depois ficamos num papo muito gostoso. Se não fosse o fato de eu ser o único aposentado essa viagem teria sido muito mais tranqüila, menos corrida, mas os outros três companheiros tinham data de retorno para retomarem as atividades, sendo assim tínhamos de seguir em frente.
No projeto que fizemos, Campina Grande era a nossa cidade limite, a partir dela já iniciaríamos a nossa volta. Mesmo com muita coisa ainda para ser vista e muito lugar para ser visitado. Como disse anteriormente, quando eu planejo uma viagem raramente volto pelo trajeto da ida pois assim tenho sempre a impressão de estar sempre indo, mesmo quando estou voltando.
O nosso caminho de volta já não seria mais pelo litoral, com base na BR 101. Atravessaríamos o agreste nordestino e perto de Feira de Santana chegaríamos então ao nosso novo eixo que agora seria outro: a BR 116.
Mas ainda estávamos distantes daquela rodovia, nossa meta para aquele dia era a cidade de Paulo Afonso na Bahia. O Álvaro ligou para um integrante do MC Cavalo Doido naquela cidade e avisou da nossa chegada por lá no final do dia.
Descemos pela BR 104, passamos por Caruaru onde pegamos a BR 232 até São Caetano e de lá entramos na BR 423 que corta o sertão pernambucano, passando por Garanhuns (terra do Lula) e depois cruza em diagonal o agreste alagoano.
Ainda em território pernambucano fizemos uma parada para abastecimento em Iati. Da mesma forma que ocorreu em outras paradas nessa viagem, de pouco adiantou a minha insistência de que deveríamos sair logo, abreviando a nossa pausa já que ainda tínhamos muito chão até Paulo Afonso na Bahia. Estávamos ainda em Pernambuco e faltava cortar todo o estado de Alagoas, em sentido oblíquo, o que aumenta muito a passagem por aquele estado. O que eles não estavam sabendo é que estávamos entrando nos arredores do famoso Polígono da Maconha, onde nem a polícia se aventura muito, não existindo nem posto policial por aquelas bandas. Eu estava tentando evitar que ficasse muito tarde para não aumentar ainda mais o nosso risco. Mas não houve argumento capaz de afastar My Boy do balcão da lanchonete e do décimo copinho de café. Depois ele ainda foi fazer graça com um burrico que puxava uma pequena carroça até que finalmente subimos nas motos para seguirmos adiante. Passava de quatro horas da tarde.
Sempre que situações desse tipo ocorriam eu enfrentava um dilema: My Boy é o presidente do moto clube e na verdade ele é quem deveria determinar o tempo de cada parada. Não ficava nada bem eu ficar cobrando dele maior rapidez. Mas quem fez o planejamento fui eu e só eu sabia se estávamos ou não no tempo ou atrasados. E para piorar quando eu percebia que ele estava enrolando para voltar para a estrada eu entendia isso como uma necessidade dele de descontrair e descansar. Se eu insistisse muito poderia botar a segurança em risco, mas se demorasse mais um pouco também incorreria em aumento do perigo pois passar por aquelas bandas de dia já não é muito tranqüilo imagine à noite. E simplesmente não havia a menor chance de parar no meio do caminho para pernoite. Naquele trecho da nossa viagem a única opção era Paulo Afonso, se por ventura parássemos em qualquer outro lugar entre o ponto em que estávamos e aquela cidade seria uma espécie de suicídio coletivo. Todos que passam por essa parte da rodovia e a conhecem, sabem que furar um pneu por ali é um risco muito grande de, no mínimo, ficar abandonado e a pé na pista apenas com a roupa do corpo.
Finalmente, com um pouco de insistência velada, já estávamos rodando sobre o asfalto grosso porém em boas condições. Depois de algum tempo deixamos Águas Belas para trás e logo estávamos cruzando a divisa entre Pernambuco e Alagoas. A paisagem era triste, somente terra árida e sem vegetação quase nenhuma. Parecia um outro planeta.
Assim que passamos pela entrada de Ouro Branco, já em terras alagoanas, a velocidade do comboio foi caindo aos poucos. Faltava pouco mais de 100 km até a divisa com a Bahia. Entretanto pouco a pouco o ritmo da viagem ia diminuindo e quanto mais perto ficávamos de Paulo Afonso mais devagar íamos. A noite veio chegando exatamente na parte mais crítica do trajeto. A escuridão noturna nos alcançou e fez com que My Boy diminuísse ainda mais a velocidade. Os poucos veículos que transitavam por ali naquele momento passavam rápido por nós, ninguém queria “dar mole” de passar devagarinho por aquelas bandas àquelas horas. Num determinado momento um veloz comboio de três carretas em sentido contrário ao nosso nos “metralhou” com uma chuva de pedras levantadas pelo deslocamento de ar causado pela passagem delas. Foi uma coisa muito surrealista, muitos segundos de muitas pedradas no pára-brisas, nos faróis e em nossos corpos e capacetes. Parecia que não ia parar aquela saraivada de pedradas. Depois da passagem das três a coisa se acalmou, mas não foi o suficiente para retomarmos o ritmo ideal, mantivemos a velocidade (ou a falta dela) determinada pelo líder.
Saímos daquele posto em Iati pouco depois das quatro e chegamos em Paulo Afonso depois das oito horas. Levamos quatro horas para rodar 170 km. E justamente na parte mais violenta do agreste alagoano, mas graças a Deus tudo terminou bem.
Quando chegamos na entrada de Paulo Afonso avistei uma placa de bem-vindo e pedi para pararmos para fazer umas fotos. Foi difícil vencer a resistência mas acabamos conseguindo umas fotos com os quatro junto à placa.
Quando finalmente entramos na cidade fomos interceptados pelo Joel Torquato, do MC Cavalo Doido, que nos aguardava há quase duas horas. Torquato logo nos levou a uma praça onde existem vários barzinhos e pizzarias, local cheio de gente onde pudemos nos abastecer com alimentação e bebidas. Foi muito legal aquele momento.
De lá nos levou a um hotel de acomodações novas e limpas para que pudéssemos enfim descansar.
No dia seguinte pela manhã ele passou pelo nosso hotel para nos levar para visitar e conhecer as instalações da CHESF – Companhia Hidro Elétrica do São Francisco, mais precisamente o Complexo de Paulo Afonso que é composto de cinco usinas: Paulo Afonso I, II, III, IV e Apolonio Sales (Moxotó). Mas Peludão reclamava de dores nas costas. Isso não representou problema para o amigo Joel Torquato: de imediato pegou o celular e em poucos minutos uma massagista entrava pelo quarto. Algum tempo depois Peludão saía com um largo sorriso no rosto e já sem sinal de dores. Fomos então para a usina onde visitamos todos os pontos relevantes, apontados pelo companheiro do Cavalo Doido que também é funcionário da CHESF. Foi uma manhã muito interessante e extremamente agradável e descontraída. Seguramente não teria sido dessa forma se não fosse pela presença e ajuda do amigo Torquato. A ele dou o crédito dos bons momentos vividos por nós na nossa estada em Paulo AfonsoDespedidas feitas, eram 13 horas quando seguimos rumo sul pela BR 110 com destino previsto para Feira de Santana, cerca de 380 km de lá. Descemos a BR 110 passando por Jeremoabo no cruzamento com a BR 235. Mais adiante em Cícero Dantas paramos num posto na beira da estrada para abastecer as motos e beber algum líquido pois o calor estava fortíssimo. Estávamos cruzando o alto sertão da Bahia.
Minha idéia era seguir até Ribeira do Pombal, onde entraria à direita na pequena BR 410 que interliga a BR 110 com a BR 116, e de lá seguir até Feira.
Quando chegamos na entrada da BR 410 tomamos um susto, eram tantos buracos que eles se agrupavam transformando tudo numa grande tragédia, parecia o interior da cratera de um vulcão. Não dava para saber onde era rodovia e onde não era. Mas foi possível perceber que aquela situação era só ali no início, nos primeiros 100 metros pois podíamos ver que logo adiante o asfalto era novinho. Vencida aquela imensa cratera seguimos no rumo da BR 116. O dia estava claro, sem nuvens e com o sol brilhando. Enquanto rodávamos por aquele asfalto perfeito e visivelmente novo, alguns buracos foram aparecendo no meio da pista. Eram buracos grandes em sua maioria, do tamanho dessas tampas de bueiros redondas. À medida que passávamos pelos buracos ficava perceptível que aquele asfalto recente fora feito direto sobre o leito de barro, sem nenhuma camada de preparo anterior. Não podia dar em outra coisa: o próprio trânsito fazia com que o asfalto se descolasse do piso inferior e as “panelas” iam se formando. Em menos de cinco minutos já eram dezenas, centenas de crateras. Nossa tarefa era ir serpenteando pelo asfalto liso entre os buracos como num campo minado. Toda a extensão da BR 410, essa estrada de ligação, é de 35 km mas garanto que nos pareceu muito mais.
Chegando finalmente chegamos na BR 116 eram cinco horas e faltavam ainda 165 km até Feira de Santana. Fazendo uma média de 80 km/h em duas horas estaríamos lá. Seguimos tranqüilos pela estrada e mais uma vez ocorreu aquele episódio de desaceleração do comboio. A coisa foi se repetindo e quando chegamos no meio do percurso, em Serrinha, perguntei se agüentariam seguir até Feira. Ninguém, absolutamente ninguém foi claro o suficiente para se formar uma opinião que representasse a vontade coletiva. A coisa foi ficando estancada e tive de pedir novamente uma posição clara pois cada vez ficava mais tarde e logo iria escurecer. A situação não seria a mesma da ocasião anterior, pois estávamos numa rodovia movimentada e com bastante edificações em suas margens, mas de toda forma teríamos de decidir pois ficar ali parado é que não podíamos. Então, não sei se por acanhamento de reconhecer seus próprios limites perante o dos outros, ninguém vetou a idéia de continuarmos até Feira de Santana.
Estava faltando algo em torno de quarenta minutos para chegarmos quando começou a escurecer. Nesse ponto eu puxava o comboio e já vinha tentando manter uma média mais coerente com o nosso propósito do dia, mas não conseguíamos manter o comboio unido devido às constantes ultrapassagens pelos caminhões que fazem uso rotineiro da BR 116. Nessas situações é cada um por si. Eu ultrapassava e aos poucos, um por um, cada um fazia sua própria ultrapassagem. Seguíamos na seguinte ordem: eu puxando, Peludão em segundo, My Boy em terceiro e Diorlando fechando. Já estava quase totalmente escuro, naquele ponto em que os faróis ainda não iluminam direito tampouco há claridade do sol. Estávamos entre o chamado lusco-fusco e a noite propriamente dita. O trânsito de caminhões era muito intenso e não dava para se ter uma perfeita visão do nosso comboio através dos espelhos retrovisores. O que dava para perceber é que esperávamos muito tempo para My Boy aparecer quando eu e Peludão fazíamos uma ultrapassagem e em seguida tínhamos a pista livre adiante. Muito tempo mesmo. Era nítido que ele estava dividindo o comboio em duas duplas, o que traduzia uma situação de extremo cansaço por parte dele. A luz dos faróis dos veículos ultrapassados me impediam de entender e decifrar quem era quem naquele panorama, eu estava confiante na atuação do cerra-fila que, por força da função, viria até mim para me avisar se ocorresse algum problema. A cada ultrapassam era a mesma coisa, Peludão logo aparecia atrás de mim e uma longa espera para que o farol de My Boy surgisse à frente do recém ultrapassado.
Eu me perguntava: por que não houve a manifestação clara e explícita de que preferia ficar lá em Serrinha quando a questão foi colocada? Por que não assumir um cansaço natural e inerente ao ser humano? É uma condição própria e individual que deve ser anunciada ao grupo sem constrangimentos ou acanhamento, pois varia de indivíduo para indivíduo ainda em resultado de como foi seu descanso prévio etc. É preciso ser muito franco para não botar a segurança própria em risco ou até mesmo a do grupo todo. E não deu outra: numa dessas longas esperas pela aparição de My Boy, quem surge em velocidade é Diorlando avisando que havia acontecido alguma coisa com My Boy. Ele nos alcançou e se limitou a gritar – My Boy! My Boy! Fez a volta e disparou em direção a onde My Boy deveria estar. Eu imaginei o que qualquer um imaginaria diante desse dramático anúncio: que havia ocorrido um grave acidente com My Boy. Eu e Peludão fizemos o retorno ali mesmo e seguimos no encalço do Diorlando que já tinha desaparecido na escuridão. Depois de algum tempo avistei um pequeno farol parado no acostamento à esquerda. Pude perceber que era a moto do Diorlando e iluminava a moto de My Boy que estava parada à sua frente. Vi ainda que os dois estavam de pé junto às motos. Uma onda de alívio me invadiu como um sopro gelado na coluna, foi uma sensação muito forte e estranha, mas ver que My Boy ali de pé mexendo na moto foi muito tranqüilizador perto do que vinha imaginando ter acontecido. A aflição do Diorlando quando veio nos avisar, sem dizer nada além de “My Boy! My Boy!”, numa estrada de trânsito intenso de caminhões, nos deu margem para imaginarmos muitas coisas… mas graças a Deus parecia estar tudo bem.
Paramos no acostamento à nossa direita aguardando uma oportunidade de cruzarmos a pista a fim de nos unirmos a eles. Quando finalmente paramos atrás deles pudemos então saber que algo havia batido na mão esquerda de My Boy e ele teve de parar a moto. Eu não sabia se agradecia a Deus pela pouca gravidade final do ocorrido ou se “matava” o Diorlando pela forma com que ele nos avisou. A dúvida foi tanta que deu tempo suficiente para que eu simplesmente a ignorasse. Fui ver se estava tudo bem com My Boy. Ele estava nervoso e com a mão doendo. Um dedo parecia ter sofrido uma contusão mais grave, estava muito vermelho e já um pouco inchado. Ele dizia que tinha sido um pneu de um caminhão que havia estourado ao lado dele e um pedaço da borracha o havia atingido. Eu particularmente não acredito muito nessa possibilidade, apesar de ser possível. O espelho esquerdo e o manete da embreagem foram atingidos. O espelho trincou o vidro e o manete amassado de forma que mesmo todo apertado a ponto de encostar no punho, a embreagem não era suficientemente acionada para aliviar a tração da moto. Foi preciso que o Diorlando fizesse um ajuste no cabo para que ela pudesse voltar a atuar convenientemente.
Nós procuramos pelos pedaços de pneu do caminhão e não achamos nada. My Boy insistia na história do pneu, mas eu fiquei achando que o que havia acontecido não tinha nada a ver com pneu. Para mim foi um contato com um caminhão que vinha em sentido contrário. Quem roda muito pelas estradas brasileiras já deve ter visto várias vezes caminhões com pontas das cordas que amarram as carga serpenteando livres e dando verdadeiras chicotadas no ar. O que eu acho que aconteceu foi que uma chicotada dessas acertou a ponta esquerda do guidom que fica exatamente voltada para a pista contrária. Normalmente essas cordas ainda têm um nó na extremidade evitando assim que ela vá se desfiando. Uma chicotada dessas faz um senhor estrago se pegar em alguém ou mesmo num veículo que vem em sentido contrário. Mais tarde Diorlando me confidenciou que My Boy vinha muito na beirada da pista, quase invadindo a pista contrária quando espreitava para ultrapassar, chegando a rodar sobre a faixa divisória pintada no asfalto. Essa informação veio reforçar a minha descrença na versão do pneu estourado. Eu já tive a oportunidade de ver um pneu externo de caminhão estourando dessa forma, explodindo mesmo. O deslocamento de ar é enorme, faz um estrago muito grande capaz até de derrubar quem está ao lado, além de deixar rastro e vestígios espalhados pelo chão. Nós não achamos nada. Não se pode descartar também a possibilidade de em virtude do extremo cansaço ele ter dado uma “apagadinha” e esbarrado no veículo que vinha em sentido contrário.
Mas isso também pouco importava naquele momento, e aderimos à hipótese do pneu defendida por My Boy. Assim que foi possível seguimos para Feira de Santana.
Quando chegamos por lá Diorlando precisava ir ao banco fazer um pagamento. Procuramos uma agência para ele executar sua tarefa e em seguida fomos atrás de um hotel. Rodamos muito auxiliados por um guia turístico local, que com sua própria moto nos conduzia de hotel em hotel mas não achávamos vagas. Finalmente ele nos levou a dois que dispunham de vagas. My Boy gostou de um e Diorlando de outro. Terminamos ficando em hotéis separados. Peludão que habitualmente dividia o quarto com My Boy ficou com ele em um e eu e Diorlando em outro.
Fomos nos instalar em nossos aposentos, mas não sem antes combinarmos de sair mais tarde para comermos alguma coisa. Ainda estava cedo, eram cerca de oito horas quando eu e Diorlando estávamos em frente ao hotel deles aguardando para sairmos. Peludão surge sozinho e diz que My Boy não ia, que ia ficar descansando e pediu para levar um pedaço de pizza para ele.
Rodamos um pouco pela cidade e finalmente fomos a uma boa pizzaria. Foi uma grande e muito gostosa descontração enquanto comíamos a nossa pizza. Muitas risadas e muitas histórias. Tão agradável que nem vimos a hora passar e quando percebemos já estava fechando a pizzaria. Voltamos para nossos hotéis. Eu e Diorlando deixamos Peludão no hotel dele e fomos para o nosso.
No dia seguinte foi a minha vez de pagar contas. Fui a pé para a rodoviária onde haviam alguns caixas eletrônicos. Na passagem vi uma especializada em troca de óleo de carros e fui perguntar ao baiano se ele tinha óleo Motul pois eu gostaria de fazer a troca na minha moto:
– Bom dia, vocês têm óleo Motul?
– Mutum?!?!
– Não meu amigo mutum não, Motul.
– ????
– É um óleo sintético, da marca Motul.
– Olha seu moço esse aí nós num tem não, mas tem aquele Lubrax ali, num serve não?
Agradeci e sai sorrindo sozinho.
Quando eu e Diorlando chegamos no hotel dos outros dois para seguirmos viagem encontramos Peludão arrumando a bagagem na moto. Ele nos disse que na noite anterior quando chegou da pizzaria com o jantar de My Boy, não conseguiu entrar no quarto. Disse que bateu, bateu e bateu e nada de My Boy abrir a porta. Esperou pensando que ele poderia estar no banheiro e repetiu a tentativa um pouco depois. Nada, não houve nenhuma movimentação lá dentro do quarto. Preocupado, achando até que ele pudesse ter morrido lá dentro, Peludão desceu até a recepção e contou ao funcionário o que estava acontecendo. Ele por sua vez subiu junto e esmurrou a porta sem sucesso. Desceu e depois voltou com a chave reserva do apartamento. Quando abriram a porta My Boy estava “desacordado” no décimo sono. Peludão disse que ainda o chamou algumas vezes para que ele pudesse comer, mas depois desistiu vendo que ele estava realmente muito cansado e precisando daquele sono.
De repente surge My Boy, de cara nova, descansado, voltando àquele ar zombeteiro que só ele sabe ter. Ali de cara limpa como se nada tivesse acontecido na noite anterior. Rimos mais um pouco e fomos abastecer as motos para continuar nossa viagem.
Quando já estávamos de saída do posto uma equipe da TV local nos abordou e fez uma longa entrevista com cada um de nós. My Boy quase chegou ao êxtase, ele não consegue disfarçar a euforia que sente quando tem a oportunidade de relatar sua história motociclística. Encerrada a entrevista pudemos então seguir rumo ao nosso destino do dia que seria Jequié, localidade conhecida como a Cidade Sol.
Era um bonito dia, ensolarado e tranqüilo de tráfego na BR 116. Seguimos sem problemas e num excelente astral. Quando chegamos em Milagres parei no posto Elite a fim de abastecermos as motos e apreciarmos a pequena montanha rochosa com uma formação que nos dá a impressão de estarmos vendo uma santa rezando.
Já dentro da loja de conveniência do posto percebo My Boy disfarçando alguma coisa. Ele não saía de perto do balcão do caixa. Na hora pensei que ele já estivesse jogando conversa fora na menina que o atendia. Fui até ele e perguntei o que fazia ali e como resposta veio a afirmação de que ele era homem, preferia ficar perto das mulheres do que ficar admirando outro homem.
Não entendi nada e fiz uma cara de interrogação. Ele por sua vez falou: “Olha ali, olha o Peludão!”. Me virei e vi Peludão ao lado de um gigante. Um cara com bem mais de dois metros de altura. Peludão parecia uma criança careca ao lado do cara. Ele estava atônito, impressionado com o tamanho do cara de quem ele em altura alcançava no máximo o ombro. Confesso que tive uma certa dificuldade de convencer Peludão a sair de perto do cara, parecia uma criança diante da vitrine de uma loja de brinquedos.
Depois de muitas risadas e gozações voltamos para a estrada. Jequié não estava longe e chegaríamos cedo mesmo tendo saído de Feira de Santana pouco depois do meio-dia.
Faltava pouco para as cinco da tarde quando paramos num posto na entrada da cidade. Como de costume logo fomos cercados por curiosos que sempre perguntam a mesma coisa: de onde viemos, para onde estamos indo, qual o consumo da moto e quanto custa a moto. Apareceu um cara com um desses triciclos a pedal vendendo picolés. Fizemos a festa. Devido ao calor e à variedade de sabores foi um picolé atrás do outro. O cara foi ganhando intimidade e em pouco tempo Peludão estava pedalando o triciclo do cara pra lá e pra cá.
Terminado o nosso descanso saímos então em direção ao centro da cidade em busca de local para nosso pernoite. Lá no posto um funcionário havia nos indicado um determinado hotel. Entramos na cidade e fiz o trajeto indicado para vermos o tal hotel, entretanto quando passamos em frente a ele não deu tempo de parar na porta e fui obrigado a passar um pouco. Mas imediatamente enquanto passava apontei para o hotel e Diorlando e Peludão que vinham atrás de My Boy conseguiram parar a tempo. Eu e My Boy subimos na calçada à direita e ficamos esperando os dois que foram ver se havia disponibilidade de vagas para nós. Cheguei a pensar em fazer um retorno para me juntar a eles, mas estava difícil, era uma curva de uma rua muito movimentada. Achei melhor aguardar os dois ali mesmo junto com My Boy.
Após um longo período de espera eles apareceram com tudo acertado, com dois quartos duplos reservados. My Boy não gostou, achou que o hotel estava longe da praça principal da cidade e queria procurar outro hotel. Peludão e Diorlando se entreolharam sem entender direito. Não lembro qual dos dois argumentou que já tinham acertado tudo e que não ficaria nada bem simplesmente ir embora, até porque haviam algumas pessoas na recepção desejando alojamento. Diante da habitual colocação de My Boy de que “se quiserem ficar aqui tudo bem, ninguém é obrigado a ir, só acho que deveríamos procurar outro…”, optamos por sair à procura de outro. Nós já conhecíamos bem essa conversa e sabíamos ler nas entrelinhas.
Decidiram então que iam avisar ao cara que quando vieram nos informar da reserva, que nós dois tínhamos resolvido em outro hotel, inclusive já pagando.
Segundo eles o cara percebeu que era mentira mas ficou por isso mesmo.
Rodamos um pouco na busca de onde ficar. Tudo cheio. Rodamos mais um pouco. Cheio, sem vagas. Na praça só tinha um hotel com vaga mas era muito caro e sem garagem. Diorlando resolveu sair em busca de outras opções enquanto aguardávamos por ali. Voltou depois de algum tempo com a informação de que havia um hotel duas ruas atrás da praça que parecia ter vaga. Nisso Peludão fala que se era para ficar fora da praça então poderíamos ter ficado naquele primeiro. My Boy responde para então irmos para lá. Peludão retruca que para lá não volta porque depois de reservar eles tiveram que mentir para o cara fazendo aquele papelão. My Boy então diz que não tinha mandado ninguém reservar nada, que eles fizeram por conta própria e porque quiseram. Foi a centelha na pólvora, o tempo fechou. Aquele clima agradável deu lugar a uma pesada nuvem negra sobre nós. Depois de trocas de “amenidades” entre My Boy e Peludão, após as coisas serem botadas pra fora, ficou aquele clássico silêncio que só foi quebrado quando um de nós falou para irmos ver o tal hotel. Optamos por ficar lá mesmo, àquela altura dos acontecimentos até o banco da praça estava servindo.
Da mesma forma instantânea que teve seu início, o entrevero entre os dois chegou ao seu final e fomos então nos acomodar. O hotel tinha quartos simples mas uma boa garagem e, como disse, seria ele ou o banco da praça.
Depois de instalados, banhos tomados, fomos dar uma volta até a praça onde pude apresentar aos três o acarajé. Gostaram tanto que teve até repeteco. Ficamos conversando ali sentados até o momento do fechamento dos quiosques da praça às dez horas da noite quando então voltamos para o hotel. No dia seguinte finalmente seguiríamos para Araçuaí, em Minas Gerais, terra do Peludão.

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– em breve continuará…